MANUEL ALVES FILHO
Um dos maiores desafios da ciência nos últimos anos tem sido o desenvolvimento de tecnologias para a produção de veículos (ou carreadores) que permitam a liberação controlada de fármacos no organismo humano. O objetivo dos pesquisadores é bastante ousado: encontrar alternativas que possibilitem a redução das doses dos medicamentos, tornando-os ao mesmo tempo mais eficazes. Como conseqüência dessa conjunção de fatores, haveria não apenas uma economia significativa no processo de produção, mas também uma diminuição dos eventuais efeitos adversos causados pelos remédios, como os relacionados aos seus níveis de toxicidade. Ficção científica? Nada disso. Cientistas da Unicamp, distribuídos por várias áreas do conhecimento, estão trabalhando nesse sentido. Eles estudam a encapsulação de fármacos em nano e micropartículas, que teriam a propriedade de transportar a droga até o órgão ou célula doente, administrando-a de forma gradual e controlada. Resumindo, esses especialistas dedicam-se a sistemas extremamente pequenos para alcançar grandes objetivos.
As pesquisas conduzidas na Unicamp têm se mostrado extremamente promissoras, como revela a professora Maria Helena Andrade Santana, da Faculdade de Engenharia Química (FEQ). Antes de falar sobre os estudos que estão sendo realizados pelo seu grupo, ela explica o que são essas minúsculas partículas, que funcionam como cápsulas capazes de transportar os fármacos. De acordo com ela, existem as nano e as micropartículas. O que diferencia uma da outra é o tamanho, embora ambas sejam invisíveis a olho nu. A primeira está na ordem do bilionésimo do metro e a segunda, do milionésimo. Elas podem ser produzidas a partir de uma infinidade de polímeros naturais e sintéticos ou de lipídios, estes últimos semelhantes a pequenas esferas de gordura chamadas lipossomas.
A equipe da professora Maria Helena lida justamente com os processos de fabricação desses veículos. “Fazemos o projeto da partícula, de modo que ela atenda às necessidades da aplicação”, afirma. A primeira exigência a ser cumprida, diz a docente, está relacionada ao tamanho do fármaco. Se ele for grande, obviamente precisará de uma cápsula maior para comportá-lo. Além disso, é preciso adequar esse veículo à via de administração. Se for por meio oral, o “envelope” contendo a substância ativa pode ser maior do que em relação à intravenosa. Entretanto, terá que resistir à acidez do estômago, de modo que chegue íntegro ao intestino e, a partir desse ponto, seja dissolvido e passe a liberar o fármaco de forma controlada.
A pesquisadora da FEQ esclarece que cada rota de administração requer uma partícula com características específicas. Assim, se o medicamento tiver que ser aplicado pela via nasal, para tratamento da asma, por exemplo, a cápsula tem que ser maior do que cinco mícrons, para que fique retida no ponto onde o remédio deve ser liberado. Já se a administração for através da pele, cujos poros medem cerca de 30 nanômetros, a partícula tem que ser bem menor e com uma propriedade adicional: precisa ser elástica, de modo que se deforme para penetrar no organismo e depois se reconstitua já no seu interior, onde fará a liberação controlada.
De acordo com a professora Maria Helena, existem diversas maneiras de se produzir essas partículas, assim como variadas formas de encapsular os fármacos. Um dos materiais mais estudados para servir de veículo aos fármacos são os lipídios que formam os já mencionados lipossomas, por causa das suas características. Eles mimetizam as células em estrutura e função. Quando são muito pequenos ou contêm polímeros na sua superfície, o sistema imunológico não consegue identificá-los. “Isso permite que o lipossoma chegue a certos locais que uma partícula polimérica não conseguiria atingir. Por outro lado, a cápsula feita de polímero tem um reservatório maior para o fármaco e é mais estável. A escolha da partícula vai depender da aplicação desejada e das vantagens que um material oferece sobre o outro”, esclarece.
Outra superioridade do fármaco encapsulado sobre o fármaco livre está na dirigibilidade que pode ser obtida com o emprego das nano e micropartículas. O alvo natural das cápsulas, conforme a docente da FEQ, é o sistema imunológico. Quando o interesse é que os envelopes atinjam outra área do organismo, a saída é adicionar um anticorpo na superfície do envelope. Numa comparação livre, esse anticorpo funciona como um radar que encaminhará a partícula até o ponto desejado - um tumor cancerígeno, por exemplo. Nesse ponto, a partícula é ancorada por meio de uma interação química do tipo antígeno-anticorpo. Já a liberação do medicamento no local exato do tumor ocorre por difusão, erosão, acidez ou calor.
“Quando você consegue ser tão específico no tratamento de uma doença, é possível restringir a quantidade de fármaco a ser empregada, visto que há um melhor rendimento. Isso traz benefícios não só para os pacientes, mas também para a indústria farmacêutica, que pode reduzir alguns custos de produção. No caso do câncer, a quimioterapia sempre traz resultados adversos para as pessoas, pois é um procedimento que também atinge células sadias. Com a liberação controlada de fármacos, a tendência é que as células doentes sejam prioritariamente atacadas, o que minimiza os efeitos deletérios”, afirma a professora Maria Helena.
Recém-chegada de um congresso internacional, a docente da FEQ conta que as últimas estimativas dão conta de que aproximadamente 400 empresas estão trabalhando com a liberação controlada de fármacos no plano mundial. Dessas, 60% estão localizadas nos Estados Unidos, 30% na Europa, 5% na Ásia e África e 5% nas outras Américas. Dois grandes problemas enfrentados até aqui, de acordo com ela, dizem respeito ao custo e ao escalonamento da produção. Mas dados recentes revelam que a cada duas semanas surge um novo processo nessa área.
No laboratório na FEQ, ratifica a pesquisadora, os pesquisadores trabalham com praticamente todas as rotas de administração, exceto a ocular. Estão sendo enfatizadas as rotas não-invasivas, tais como a oral, pulmonar, nasal e transdérmica. Os trabalhos envolvem desde o desenvolvimento tecnológico até a busca de soluções para os problemas de engenharia de escalonamento de processos. O desenvolvimento de um medicamento de liberação controlada requer um esforço multidisciplinar, destaca professora Maria Helena. Normalmente, trabalham de forma associada químicos, físicos, biólogos, engenheiros, farmacêuticos e médicos. Atualmente, a equipe da FEQ, em colaboração com o laboratório de imunologia e alergia experimental da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), está trabalhando com uma vacina antialérgica.
Os cientistas cultivam o microorganismo, para depois retirar e purificar o extrato que dará origem ao antígeno. Este último é encapsulado em micropartículas, que são caracterizadas em relação às suas propriedades físico-químicas e enviadas à FCM para os testes em animais. “Os resultados dessa pesquisa ainda são preliminares, mas pode-se dizer que são muito animadores”, revela a professora Maria Helena. Junto com a Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, o grupo da FEQ também trabalha no desenvolvimento de uma vacina gênica contra tuberculose, utilizando lipossomas. Por fim, um kit-diagnóstico para doenças auto-imunes utilizando lipossomas polimerizados está sendo desenvolvido com a participação de pesquisadores do IQ, FEQ e FCM.
Doses menores, maior eficácia
O encapsulamento de fármacos, como ficou claro no texto de abertura, é um trabalho de caráter multidisciplinar. Graças aos esforços de especialistas de diversas áreas, as pesquisas brasileiras já emitem sinais de amadurecimento e consolidação. De acordo com o professor do Instituto de Química (IQ) da Unicamp, Nelson Durán, também coordenador da Rede Brasileira de Nanobiotecnologia, existem hoje no mundo não mais do que 12 medicamentos comerciais que se valem desse tipo de tecnologia. Ou seja, mesmo países como os Estados Unidos, que investem bilhões de dólares em estudos similares, ainda estão dando os primeiros passos nesse segmento. “Nós estamos um pouco atrás dos norte-americanos, mas eles estão na nossa alça de mira”, analisa.
A equipe comandada pelo professor Nelson Durán trabalha tanto com fármacos novos quanto com os já conhecidos. Os que integram o primeiro grupo estão mais voltados ao tratamento do câncer. Os demais têm alcance social ainda maior, pois deverão ser empregados no combate a doenças tropicais, como a leishmaniose e o mal de Chagas, para ficar em dois exemplos. “Se nós não fizermos isso, ninguém fará. As multinacionais não estão preocupadas em produzir medicamentos para esse tipo de enfermidade”, afirma. Também nesse caso, a idéia da utilização das nano e micropartículas é reduzir as doses e aumentar a eficácia dos fármacos.
O docente do IQ explica que quando um fármaco livre é administrado no organismo, ele tem um pico de ação, que é reduzido drasticamente com o passar do tempo. Assim, quando uma pessoa toma um antibiótico, o procedimento tem que ser repetido a cada seis ou oito horas para que o tratamento seja efetivo. No caso do fármaco encapsulado, o princípio ativo é liberado lentamente e de forma controlada, de modo que as doses podem ser reduzidas. “Ou seja, em vez de dar vários comprimidos ou aplicar diversas injeções no paciente, basta uma só administração”. Mas o aspecto mais interessante da liberação controlada, na opinião do professor Nelson Durán, está na possibilidade de dirigir o fármaco para o local exato que se pretende tratar.
“Desde que você consiga caracterizar a superfície da partícula, é possível fazer com que ela se encaminhe para onde você quiser. A grande sacada é enganar o sistema imunológico, para que ele não atue contra esse corpo estranho. Em outras palavras, é como se a nanocápsula não estivesse lá”, esclarece. No Brasil, conforme o docente, a indústria farmacêutica está mais interessada em encapsular fármacos já conhecidos. O encapsulamento serviria, nesse caso, para fazer um upgrade dos medicamentos antigos. O especialista do IQ conta que existem drogas que apresentam um elevado grau de toxicidade quando administradas livremente. Protegidas por uma partícula, porém, elas tendem a ter essa propriedade minimizada.
Um exemplo dessa aplicação é um estudo que a equipe do professor Nelson Durán vem desenvolvendo em torno de um medicamento que era utilizado no tratamento da tuberculose. Por ser muito tóxico, o produto foi praticamente descartado pela medicina. “Nosso desafio é encapsular esse fármaco, de maneira que ele mantenha a sua capacidade antibiótica, mas tenha a toxicidade reduzida”. Uma preocupação que tem tomado conta da indústria farmacêutica no Brasil é a posição que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) terá diante dessa nova geração de fármacos, uma vez que até o momento nenhum produto nacional dotado da tecnologia do encapsulamento foi encaminhado para a análise do órgão. De acordo com o professor Nelson Durán, os laboratórios temem investir dinheiro no desenvolvimento de um medicamento e posteriormente enfrentar problemas para colocá-lo no mercado. “Como as empresas têm optado por investir em drogas já conhecidas, acredito que os testes de segurança realizados pela Anvisa exigirão menos tempo. No entanto, se esse processo for muito demorado, há o risco de a inovação se perder, pois produtos estrangeiros similares poderão surgir nesse meio tempo”, adverte.
Meio ambiente Para os especialistas na área de nanobiotecnologia, em especial para o grupo liderado pelo professor Nelson Durán, a inquietação é de outra ordem. De acordo com o docente da Unicamp, os pesquisadores estão muito interessados em saber o que acontece com as nano e micropartículas depois do seu funcionamento. Uma das principais questões é: elas contaminariam o ambiente? “Nós do IQ estamos desenvolvendo estudos que possam nos mostrar como tratar e que destino dar a essas partículas, notadamente as que têm metais em sua composição, como as que servem para transportar antibióticos. A nanopartícula de prata, por exemplo, já está sendo alvo de experimentos desse tipo em nosso laboratório. Como ela é extremamente pequena, a tendência seria que passasse despercebida, inclusive quanto ao seu impacto ambiental. Nosso objetivo é prevenir eventuais danos”.
Toda vez que se fala dos avanços proporcionados pela nanotecnologia, uma dúvida surge entre os leigos. Afinal, o que é factível e o que é ficção científica nessa área? Segundo o professor Nelson Durán, a liberação controlada de fármacos já e uma realidade. Tanto é assim que existem pelo menos 12 medicamentos dotados dessa tecnologia sendo vendidos comercialmente no mundo. O Brasil, na visão do cientista, está próximo de atingir o mesmo estágio. “Nós só estamos longe de inserir conceitos de biologia molecular e genética nessas partículas. Entretanto, da forma como temos evoluído, penso que em dois ou três anos já poderemos trabalhar também nessa direção. Ai sim vamos poder produzir, por exemplo, vacinas bem mais eficientes do que as atuais”.
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Alimentando larvas de peixes
As nano e micropartículas não se prestam apenas ao encapsulamento de fármacos. Elas também podem ser utilizadas para proteger outras substâncias, como alimentos, cosméticos ou agroquímicos. O leque de aplicações dessa tecnologia é bastante extenso, como revela o professor Carlos Grosso, da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA). A equipe coordenada por ele trabalha com microcápsulas produzidas por diferentes técnicas, a partir de diversos materiais. O docente explica que todos os processos têm por finalidade reproduzir o modelo celular, que tem uma estrutura bem organizada. “Nós tentamos conferir ao envelope uma permeabilidade específica, de modo que ele permita a entrada dos compostos desejados e barre os indesejados”.
Na área de alimentos, prossegue o docente da FEA, há estudos que empregam as partículas para abrigar os chamados flavors, que são óleos essenciais ou compostos puros que têm a propriedade de conferir sabor ou aroma a um produto. Nesse caso, a idéia é usar as cápsulas para proteger essas substâncias de reações indesejáveis, como a oxidação ou a perda por volatilização. Atualmente, o grupo do professor Carlos Grosso tem trabalhado no desenvolvimento de micropartículas que sirvam para alimentar larvas de peixes. O desafio é produzir cápsulas que contenham uma ração nutricionalmente balanceada.
A missão, como reconhece o especialista, não é das mais simples. Primeiro, é preciso chegar a um composto que seja apropriado à dieta e, conseqüentemente, ao desenvolvimento das larvas. Como esses animais são extremamente pequenos (menos de um centímetro de comprimento), o envelope que protegerá o alimento não pode ser muito grande. Ao mesmo tempo, também não pode ser muito pequeno, pois a larva não conseguiria enxergá-lo. Além disso, a cápsula tem que ser constituída de um material que possa ser digerido e que flutue na água, de modo que fique acessível aos animais. “Não existe nada mais eficiente do que o alimento vivo. O que nós tentamos fazer é chegar o mais próximo possível dele”, afirma o professor Carlos Grosso.
Ele conta que as pesquisas estão sendo conduzidas em colaboração com um centro de aqüicultura da Unesp, localizado em Jaboticabal. Na FEA, os cientistas desenvolvem e encapsulam o composto nutricional, que tem como base óleo, proteína ou gelatina de peixe. Depois, eles checam a digestibilidade da cápsula a partir de testes in vitro. Em seguida, com o auxílio dos técnicos da Unesp, são feitos ensaios no tanque onde estão as larvas de peixes, no caso pintados, surubins e pacus. Esses experimentos, lembra o docente da FEA, só podem ser realizados nos meses de dezembro e janeiro, período em que as espécies desovam.
No estágio atual do estudo, diz o professor Carlos Grosso, os pesquisadores estão verificando a atratividade exercida pela cápsula e checando se as larvas estão ou não ingerindo as partículas. “Ainda não chegamos à fase das curvas de crescimento. Isso será feito posteriormente, tomando como padrão o alimento vivo. Por enquanto, é possível dizer que os resultados são bastante interessantes”, avalia. Segundo o especialista, já existem empresas especializadas em desenvolver alimentos encapsulados para peixes. A maioria dos produtos, afirma, está voltada para espécies de água salgada. Japão e Estados Unidos são os países mais avançados nessa área.
Produzir e conhecer o comportamento das nano e microcápsulas, na opinião do professor Carlos Grosso, abre perspectivas para que elas tenham outras aplicações. “Quando eu conheço as características como porosidade, impermeabilidade e insolubilidade dessas partículas, eu posso utilizá-las para diferentes finalidades”, afirma. Ele destaca que já existem pesquisas voltadas ao desenvolvimento de envelopes que protejam algumas bactérias consideradas fundamentais para o bom funcionamento do trato intestinal do ser humano. Esses microorganismos, chamados de probióticos por terem propriedades terapêuticas, estão naturalmente presentes no intestino, mas são eliminados pelo organismo com o passar do tempo.
Repor essas bactérias é uma tarefa bastante complicada. Embora alguns alimentos lácteos já sejam enriquecidos com esses microorganismos, eles dificilmente chegam ao intestino, visto que são muito suscetíveis à acidez do estômago. Ou seja, depois que ocorre a ingestão, a maioria perece no meio do trajeto, portanto antes de chegar ao destino desejado. A idéia dos pesquisadores é encapsular as bactérias com um material que resista ao pH do estômago e que, ao atingir o intestino, dissolva-se e libere de forma gradual e controlada os “bons bichinhos”. Ainda sobre as possíveis aplicações das nano e micropartículas, o professor Carlos Grosso conta que foi procurado recentemente por uma empresa que produz ração animal.
Os proprietários estavam interessados em saber se é possível encapsular os antibióticos normalmente adicionados ao alimento do gado, de forma a mascarar o sabor do medicamento. Da maneira como a mistura ocorre hoje, os animais acabam rejeitando a comida. De acordo com o docente da FEA, a solução é tecnicamente possível. “Nesse caso, seria necessário criar uma partícula específica para esse fim. Na prática, ela é bem menos complicada de ser desenvolvida do que a cápsula utilizada para alimentar as larvas de peixes, que é bastante complexa”, compara.