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O homo laborens, o homo faber, o homo motor e o
cyborg na adaptação do nosso corpo aos meios de produção

A história do corpo humano




LUIZ SUGIMOTO


A economista Maria Cecília Donaldson Ugarte: "A relação entre corpo e trabalho é bem mais estreita do que transparece" (Foto: Antoninho Perri)A história do corpo humano é a história da civilização. A partir dessa analogia, a economista Maria Cecília Donaldson Ugarte estudou as transformações impostas ao corpo humano para adaptá-lo aos meios de produção, desde a Revolução Industrial até a Revolução da Informação dos dias de hoje, quando o homem aparece desenraizado da carne e dos ossos, em ambiente virtual. Tendo trabalhado por 11 anos como executiva na iniciativa privada, Maria Cecília voltou à vida acadêmica para perscrutar por dois anos e meio os caminhos do corpo, vivenciando experiências com psicodrama, criatividade corpórea e saúde mental no trabalho. Sua pesquisa resultou em dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp, sob orientação da professora Maria Beatriz Rocha Ferreira.

Pesquisadora atuou como executiva por 12 anos

“Sempre estudamos a Revolução Industrial como um grande feito, sem considerar que houve uma exploração maciça e cruel da população. Foi a mais radical transformação da vida humana já registrada em documentos escritos, segundo Eric Hobsbawn, que deveria ser mais lido para fundamentação histórica”, afirma Maria Cecília Ugarte, referindo-se ao historiador cujos conceitos sustentam boa parte da dissertação. Ela lembra que antes da revolução, durante séculos, os corpos trabalharam integrados com suas ferramentas, como os teares, num urdir e tecer em ritmo natural, onde estavam presentes as sensações corporais, a imaginação e as emoções. “Podia-se parar, conversar, rir e recomeçar. Era o homo laborens, que estava em inter-relação com as pessoas, os objetos e a natureza”, observa.

Segundo a pesquisadora, o capitalismo na Inglaterra começou no lar, já por volta de 1750, com o trabalho de pai, mãe e filhos em favor de um empreendedor que fornecia a matéria-prima. Todas as casas tornaram-se fábricas em miniatura e foi justamente com este artesanato doméstico que se iniciou a transformação dos processos produtivos. “Aos poucos, o homo laborens foi dando lugar ao homo faber – termos criados por Hanna Arent. Quando a revolução chegou 30 anos depois, e se acelerou o processo de industrialização, as famílias foram retiradas de seu território e levadas para trabalhar nas fábricas, morando em cantos fétidos que marcaram o surgimento do meio urbano. A jornada de trabalho chegava a 14 horas. “Desterritorializada, a pessoa, antes vista por inteiro – mente, corpo e espírito –, perde o seu centro e fica nas mãos manipuladoras do poder. Foi um estrago impressionante”, diz Maria Cecília.

No entanto, a nova classe operária relutou em aceitar os relógios, o trabalho imposto não mais pela natureza, mas sim pelo ritmo das máquinas e da produtividade. “A formação do que Norbert Elias chamou de um novo habitus social levaria gerações. Portanto, a resistência foi grande, gerando bloqueios e conflitos”, observa a economista. Com a difusão dos motores a vapor e de novos métodos de produção, as cidades inflaram com o êxodo do campo e surgiu também o desemprego. A ciência avançava junto com a industrialização, mas crescia a população carente, subnutrida e com altos índices de mortalidade.

Século da fadiga – O historiador Anson Rabinbach caracteriza o século 19 como o século da fadiga e da neurastenia. Em The Human Motor, ele descreve o processo de construção do corpo e sua relação com o trabalho, dentro da visão da energética e do materialismo que permeavam a época. O homo-motor, para o autor, é uma metáfora da força de trabalho, ou seja, de que o corpo humano seria um reservatório como o das máquinas, capaz de converter energia em trabalho mecânico. Corpo, máquinas e natureza eram movimentos passíveis de ser medidos dentro das leis da dinâmica – e conseqüentemente dominados, submetidos a sistemas organizacionais cientificamente desenhados.

“Rabinbach considera que a modernidade industrial européia via-se sempre ameaçada pela subversão do fantasma da preguiça. O labor era pregado como um remédio contra os apetites dos sentidos e como um amigo da alma. Daí, a necessidade de ‘docilizar’ os corpos para que esquecessem seu estilo de vida arraigado desde os antepassados e se transformassem em uma força de trabalho produtiva e disciplinada”, explica Maria Cecília Ugarte.

The Human Motor mostra a ligação entre as novas ciências – fisiologia, educação física, ergonomia – objetivando a perscruta do corpo, num esquadrinhamento que vai embasar teorias até as chegadas do taylorismo e do fordismo, formas econômicas de divisão do trabalho. “Antes, achavam que o corpo era uma máquina capaz de trabalhar sem parar, bastando-lhe um pouco de comida e de descanso. Ignorava-se a segunda lei da entropia: que a energia se esgota a cada vez que se usa. A fadiga e a neurastenia tornaram-se uma verdadeira epidemia, principalmente na França e Alemanha, onde a resistência às inovações foi ainda maior”, conta Maria Cecília..

Esquadrinhamento – Ao final do século 19, portanto, já diminuía o discurso de que havia resistência ao trabalho por causa de indolência e preguiça. Higienistas, fisiatras, psicólogos, antropólogos do trabalho, médicos e políticos examinavam a tendência à preguiça, mas também passaram a reconhecer os danos do excesso de carga de trabalho, o que levou à defesa de reformas sociais com novas regulamentações e leis trabalhistas. “A idéia era de que a saúde da população precisava ser incentivada, mas visando aumentar a capacidade de resistência do corpo ao trabalho”, recorda a pesquisadora.

Médico, fisiologista e pioneiro em pesquisas na aviação, fotografia e cinema, Etienne-Jules Marey foi, também, quem realizou os primeiros estudos sobre os movimentos do corpo, em 1868. Inventou instrumentos de medição e pesquisou inicialmente os animais, principalmente os movimentos do cavalo (ritmo, duração e intensidade), além dos mecanismos de vôo de pássaros e insetos. Mediu depois o andar humano, na passada e na corrida. Suas descobertas extasiaram os especialistas, pois balizavam as pesquisas para uma ciência do trabalho, e também os artistas, porque significavam uma representação artística do movimento. O próprio Marey produziu instantâneos do movimento, criando o que chamou de ‘photochronographer’ e depois o ‘chronophotographo’.

Maria Cecília Ugarte observa que a educação física foi fundada nesse contexto, dentro da área médica, com novos aparatos para que os corpos adquirissem resistência física e mental na luta contra a fadiga e a neurastenia. Também apareceram os primeiros estudos de ergonomia. “A relação entre corpo e trabalho é bem mais estreita do que transparece superficialmente. O corpo é deslocado para deixar de pertencer a si mesmo e servir como uma máquina de produção”, resume a pesquisadora

Os arquétipos do século XXI

Na opinião de Maria Cecília Ugarte, a chamada Revolução da Informação ou do Conhecimento também atinge o corpo humano de maneira brutal. Neste mundo do trabalho altamente mecanizado e informatizado, ela cita o sociólogo Francisco de Oliveira, que observa um salto em direção ao trabalho abstrato. “Os salários passam a ser atrelados à produtividade e não mais às horas de trabalho, dando margem à terceirização informal. É um ‘salve-se quem puder’ que tira do trabalhador o poder de lutar por seus direitos. Já que ele precisa sobreviver, sujeita-se. A exploração das pessoas, da sociedade e do ambiente prevalece sobre o sentido de comunidade e solidariedade. A fadiga e a neurastenia descritas por Rabinbach desdobram-se neste início de século em várias denominações como depressão, estresse, anorexia, bulimia, obesidade e dependência química”, afirma a pesquisadora.

Maria Cecília observa, ainda, que diante da relação tão íntima das pessoas com a tecnologia, o corpo já não é percebido como antes, parecendo desenraizado de si mesmo e esfumado em ambiente virtual. “Como disse a feminista Donna Haraway, em seu Cyborg Manifesto, ficou difícil saber onde nós acabamos e onde as máquinas começam. Para ela, ser cyborg não tem a ver com a implantação de bits de silício ou próteses sob nossa pele, mas com ir à academia de ginástica, a uma prateleira de alimentos energéticos e dar-se conta de estar em um lugar que não existiria sem a idéia do corpo como uma máquina de alta performance”, compara.

Na visão da pesquisadora, os atletas olímpicos são bons exemplos de que já “estamos cyborgs”. “Vencer a Olimpíada não depende simplesmente de correr mais rápido. Depende de toda uma interação entre medicina, dieta, práticas de treinamento, vestimentas especiais, fabricação de equipamentos, visualização e controle do tempo, e não raramente da utilização de drogas para melhorar a performance. Haraway também afirma que este é um mundo de redes entrelaçadas, humanas e maquínicas, que jogam conceitos como ‘natural’ e ‘artificial’ na lata do lixo”, avalia.

Depois de rever mais de 200 anos de história do corpo humano, Maria Cecília Ugarte julga que chegou a hora de parar para “pensar o corpo”, o quanto ele foi desprezado em nome da transcendência e manipulado em nome do capital. “Os efeitos da Revolução da Informação podem ser comparados aos do desenraizamento dos camponeses de suas terras no início da industrialização. Precisamos pensar onde ficaram as possibilidades de escolha, já que esta revolução é silenciosa para a população comum e excluída Do homo-motor aos cyborgs, nesta corrida atrás do progresso e da multiplicação tecnológica, devemos refletir e perguntar onde ficam as pessoas”.

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