O yanomami Davi Kopenawa disse: “Os brancos desenham suas palavras porque seu pensamento é cheio de esquecimento. Nós guardamos as palavras dos nossos antepassados dentro de nós há muito tempo e continuamos passando-as para os nossos filhos”. Palavras sábias. Porém, no contexto atual, os professores indígenas organizam-se cada vez para ensinar crianças a desenharem as palavras da língua-mãe, como meio de proteger sua cultura contra o esquecimento imposto pelos brancos. Seguindo as estimativas do Instituto Socioambiental (ISA), organização não-governamental, hoje são conhecidas 222 etnias, que falam mais de 180 línguas. A população indígena está em torno de 370 mil pessoas, habitando 627 Terras Indígenas de norte a sul do território nacional. Importante: se há três décadas a extinção dos povos indígenas era tida como inevitável, houve uma reversão na curva demográfica e sua população vem crescendo de forma constante desde os anos 1980. Não haveria melhor motivo para aprofundar suas raízes.
Na tarde de segunda-feira, 4 de julho, mais de 100 professores indígenas vindos de todo o país ocuparam um dos auditórios da Unicamp para o VI Encontro sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas. Os debates entrariam pela semana reservada ao Congresso de Leitura (Cole), com outros temas como “os povos indígenas na sociedade globalizada”, “indígenas no ensino superior versus ensino superior indígena” e “tradição, cultura e esportes na escola indígena”. “Ocorrem eventos do mesmo porte sobre educação indígena no Brasil, mas esporádicos e outros regionais. Este é o único encontro realizado com periodicidade e de âmbito nacional. Ele completa dez anos”, afirma Wilmar D’Angelis, professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp e um dos coordenadores das atividades.
Desta vez, segundo D’Angelis, a proposta foi avaliar avanços e impasses desde a promulgação da Constituição de 1988, que assegurou aos povos indígenas a utilização de suas línguas e de processos próprios de aprendizagem no ensino básico. Em 1993, o Ministério da Educação baixou resolução indicando que as escolas indígenas devem também ser diferenciadas e, em 99, o Conselho Nacional de Educação atribuiu aos Estados a obrigação de promover a formação de professores indígenas e de escolas específicas para as comunidades. “A pergunta que fica é: a que chegamos? O governo aponta que o número de alunos registrados em escolas indígenas saltou de 94 mil em 1999 para 150 mil em 2003, aumento de 60%. Mas precisamos saber se estamos construindo projetos de educação adequados para as comunidades ou se estamos apenas passando um verniz escolar”, questiona o pesquisador do IEL.
Contra e a favor O professor José Mário Ferreira, do povo Mura, afirma que o Amazonas entrou definitivamente no processo de formação de professores indígenas a partir de 1994, quando saiu a primeira turma, dos Sateré-Mawé. “Teve um avanço muito forte porque outras etnias reivindicaram os cursos, com o apoio do governo estadual que via no projeto um bom recurso de mídia. De 2002 para cá, mudou o governo e houve uma queda por falta de vontade política. Assim mesmo, temos cerca de 800 professores formados no magistério indígena, com a expectativa de criação de novas turmas em mais oito municípios”, informa.
De acordo com Ferreira, a possibilidade de oferecer uma educação diferenciada tem levado muitos professores de várias etnias, já formados pelo sistema tradicional, a fazerem o magistério indígena principalmente por causa do resgate da língua. No entanto, há resistências. “O governo tem razões para ser contra, pois é muito fácil para um prefeito formar um professor indígena na cidade, onde já existe toda a infra-estrutura, ao invés de montar a escola na aldeia, levar alimentação, contratar horas-aula. Então, argumentam que essa educação não vai nos servir, que o mundo está globalizado, quando a questão é financeira. Mesmo em algumas comunidades indígenas, habituadas à educação do branco, há quem ache que estudar a língua é voltar ao passado, coisa dos parentes antigos”, conta.
Estão no Estado do Amazonas 60% da população indígena da Amazônia, ou aproximadamente 120 mil pessoas de 72 etnias entre elas a dos Ticuna, uma das maiores do país, ao lado dos Guarani. “Da década de 1990 para cá, o número de crianças cresceu de 40% a 50%, até por conta da implantação do atendimento à saúde indígena, que agora chega às aldeias. A assistência ainda é precária, mas está bem melhor do que há dez anos, quando morriam muitas crianças”, reconhece o professor mura. O aumento da população, em sua opinião, só vem somar forças para seguir na luta. “A idéia do não-índio é de que daqui a dez anos não existirão mais povos indígenas, suas culturas, suas línguas. Nossa idéia é completamente diferente: achamos que em cem, duzentos anos, nossos filhos e netos continuarão falando nossa língua, preservando nossa cultura, e respeitando a sociedade dos brancos”.
Faltam livros Ilinir Jacinto, professor kaingang do Rio Grande do Sul, deixou sua pequena comunidade de Irai para participar da primeira mesa do encontro na Unicamp e descrever a situação preocupante vivida pelos indígenas em terras gaúchas. “A última turma de professores indígenas do Estado foi formada em 1992. Só em 2000, a Funai se comprometeu a retomar o curso e uma nova turma se forma nesse ano. Já o governo estadual não demonstra qualquer preocupação com a educação indígena”, denuncia. O professor vê outro grave problema, que é a falta de livros didáticos em língua kaingang povo predominante na região, com cerca de 35 mil pessoas. “Como fazer uma escola diferenciada, se não há livros? Os últimos foram escritos em 1978, por professores que se formaram na primeira turma da Funai. Para trabalhar nossa língua, precisamos de livros para que as crianças levem para casa, leiam e contem suas histórias”.
Gilberto Dalmolin, branco, professor na Universidade Federal do Acre, afirma que a grande demanda dos indígenas na área da educação é a formação em nível superior. Segundo ele, há um movimento para que as universidades, nas regiões com essas populações, viabilizem o ingresso de indígenas em cursos regulares ou criem cursos específicos. “A maioria das comunidades já possui escolas indígenas, mas são de 1ª à 4ª série. Se a proposta é oferecer uma educação diferenciada, bilíngüe, a formação de professores é prioridade para que o ensino médio também seja oferecido nas aldeias”, observa.
Dalmolin informa que o Acre acolhe 14 povos indígenas, cerca de 16 mil pessoas. A Funai estima que ainda existam 200 indígenas isolados no Estado. “O governo demarcou a terra para que eles permaneçam isolados, pois são agressivos, em recíproca às agressões que sofreram de seringueiros. Como vivem em terras distantes, sem estradas e sem interesse econômico, são deixados em paz. Mas isso é ruim, já que ficam sem assistência e podem ser dizimados por doenças no contato com outros grupos indígenas”, ressalva. A etnia predominante no Acre é a dos Kaxinawá, nome um tanto preconceituoso escolhido pelos brancos, segundo a lenda de um seringueiro que viu um índio matando um morcego: kaxi significa morcego, e nawá, homem. Os nativos, no entanto, se autodenominam Huni-Kuin: ser humano.