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Escritor e professor do IEL reúne em livro artigos e ensaios
sobre poesia brasileira e o romance português oitocentista

Franchetti faz literatura
atravessar o Atlântico

CLAYTON LEVY

O escritor e professor Paulo Franchetti, autor de Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa: “A principal característica do livro é falar para o leitor não especializado” (Foto: Antoninho Perri / Reprodução)Nos últimos 20 anos, Paulo Franchetti publicou um volume considerável de artigos e ensaios sobre poesia brasileira e o romance português oitocentista. Fruto de seu trabalho de pesquisa no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, onde atua como professor titular de Teoria Literária, boa parte desse material acaba de ser reunido no livro Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa, recém-lançado pela Ateliê Editorial. Maduro na linguagem e bem organizado na cronologia, o conjunto apresentado impressiona não apenas pelo apuro na pesquisa, mas sobretudo pelo fato de os textos serem destinados a um público amplo e não necessariamente especializado. “A principal característica do livro é falar para o leitor não especializado. São artigos sobre literatura brasileira que escrevi para o público de Portugal e textos sobre autores portugueses publicados no Brasil”, explica. Autor da novela O Sangue dos Dias Transparentes (Ateliê Editorial, 2003), Franchetti também faz planos para o futuro. “Quero dedicar mais tempo à literatura”, avisa. E promete, para breve, um livro de contos e um romance. Sem falar na coletânea de haikais que será publicada ainda este ano numa edição bilíngüe, com tradução para o japonês de Masuda Goga, um dos mestres do gênero. Na última quarta-feira, Franchetti recebeu o Jornal da Unicamp para falar sobre seu trabalho mais recente. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Para autor, discurso pós-colonial predimina hoje

Camilo Castelo Branco: prosa irônica e desfecho sentimentalJU – Em sua opinião, como está a interação entre a literatura brasileira e a portuguesa?
Paulo Franchetti
– No Brasil há mais divulgação da literatura portuguesa do que há em Portugal da literatura brasileira. O público português conhece basicamente as produções mais recentes da literatura brasileira. São poucas as editoras portuguesas que publicam autores brasileiros. No Brasil, o interesse por autores portugueses contemporâneos é maior, começando por José Saramago. Na Unicamp, por exemplo, a lista de livros para o vestibular inclui autores portugueses. Já em Portugal não existe a preocupação de estudar autores brasileiros.

JU – Há algum tempo autores brasileiros, como Graciliano Ramos, chegaram a influenciar a literatura portuguesa. Do mesmo modo, inúmeros autores portugueses influenciaram a produção nacional. Atualmente, até que ponto um país influencia o outro?
Franchetti – Atualmente não vejo essa influência, nem de um lado nem do outro. Há alguns autores que fazem sucesso dos dois lados do Atlântico, mas não vejo uma relação de influência como houve, por exemplo, na época do “romance de 30” no Brasil, que teve uma boa repercussão em Portugal, ou mesmo da poesia concreta brasileira, que também exerceu grande influência na literatura portuguesa. Acho que hoje em dia cada literatura está mais autônoma em relação à outra.

Eça de Queirós: influência na mudança de rota de MachadoJU – Em sua opinião, que fatores contribuíram para esse distanciamento?
Franchetti – Houve um momento em que a influência portuguesa sobre o Brasil foi muito grande, por várias razões. Entre elas a própria herança colonial. No século XIX, o Rio de Janeiro abrigava uma grande colônia portuguesa. Além disso, naquela época, nossa linguagem era definida em função do idioma falado em Portugal. Nossas liberdades lingüísticas eram condenadas pelos portugueses, como por exemplo no tempo de José de Alencar. O panorama só começa a mudar no século XX. Com o movimento modernista de 1922, surge uma espécie de antilusitanismo, uma vontade de romper com a tradição portuguesa. Posteriormente, o “romance de 30” tornou-se importante para a literatura portuguesa, mas a partir das décadas seguintes constata-se o maior afastamento entre os dois países. O Brasil ainda manteve certa proximidade com a cultura portuguesa por considerá-la parte de sua própria cultura, mas os portugueses não tiveram a mesma preocupação. E continuam não tendo. Minha sensação é que depois da formação da Comunidade Européia os portugueses ficaram mais interessados em se integrar e se redefinir como europeus, do que recuperar o passado de relação com a América.

JU – Isso vale também para os autores contemporâneos?
Franchetti – A influência é mínima. Os autores portugueses que circulam no Brasil são os mesmos que circulam em outras partes do mundo. É o caso, por exemplo, de Saramago, que circula em qualquer parte do mundo por ser um prêmio Nobel da Literatura (1998), e, mais recentemente, Lobo Antunes. Mesmo assim, não vejo uma presença intensa dos portugueses em nossa literatura contemporânea. Eles têm uma boa produção, mas não acredito que ela desperte interesse especial por ser portuguesa. Nós a lemos como lemos a literatura européia em geral.

B. Lopes, poeta carioca cuja trajetória é resgatada por FranchettiJU – E quanto ao fenômeno dos autores africanos, como o moçambicano Mia Couto e o angolano Artur Pestana dos Santos, o Pepetela?
Franchetti – O interesse que temos agora para fortalecer a comunidade de língua portuguesa acaba destacando esses autores. Mas também acredito que estamos vivendo uma época marcada pela preocupação em desenvolver um discurso pós-colonial, que tenta desconstruir a imagem de Portugal como a matriz e nós e os africanos como descendentes. O que se tenta mostrar agora é o desenvolvimento de uma literatura nova, com traços próprios, erguida sobre as ruínas da ideologia colonial. Por isso, nesse momento, os discursos descentralizados são mais interessantes.

JU – Como estão os estudos críticos no Brasil e em Portugal sobre a literatura produzida nos dois países?
Franchetti – Há uma grande assimetria. O Brasil tem uma longa tradição de estudos críticos sobre literatura portuguesa, mas não ocorre o mesmo em Portugal em relação à literatura brasileira. Como a universidade brasileira adota a literatura portuguesa como uma das disciplinas centrais nos cursos de Letras, nós formamos ao longo do tempo muitos professores e críticos que abordam o tema. Além disso, na época do salazarismo, muitos estudiosos vieram para o Brasil. Entre eles, Adolfo Casais Monteiro, que era amigo pessoal de Fernando Pessoa e passou a dar aulas em Araraquara (atual Unesp), assim como Jorge de Sena, outro grande crítico português; Jaime Cortezão, historiador notável que passou parte de sua vida no Brasil e aqui escreveu trabalhos de grande importância; e Fidelino de Figueiredo, que ensinou na USP nos anos 40. Isso favoreceu a criação no país de uma tradição de estudos sobre literatura portuguesa. Já em Portugal a coisa é mais complicada.

Em parte, porque nunca houve um êxodo de intelectuais daqui para lá como aconteceu de lá para cá. Só recentemente se destacaram na universidade portuguesa autores que escrevem sobre o Brasil. Entre eles, Arnaldo Saraiva, da Universidade do Porto, e Abel Barros Baptista, da Universidade de Lisboa. O primeiro publicou, na Editora da Unicamp, um estudo fundamental intitulado Modernismo brasileiro e modernismo português; o segundo, também pela nossa editora, dois livros sobre Machado de Assis e um sobre outros autores nacionais. Destaca-se também, no grupo dos estudiosos portugueses da literatura brasileira, o Osvaldo Silvestre, da Universidade de Coimbra. Mas infelizmente, com as reformas a que está sendo submetida a universidade portuguesa, não parece que esse trabalho vá ter continuidade nos próximos anos, pois, pelo que sei, não há muitos alunos interessados nos estudos literários e, menos ainda, nos cursos de literatura brasileira.

JU – No trabalho que está sendo lançado você dedica cinco textos à obra de Eça de Queirós. Esse destaque decorre de uma preferência pessoal ou a obra do autor é mais complexa?
Franchetti – Eça de Queirós foi um dos autores mais lidos no Brasil. Vem daí o meu interesse, já que seu trabalho teve grande repercussão entre leitores e autores brasileiros. Num dos artigos que compõem o livro, intitulado O Primo Basílio e a Batalha do Realismo no Brasil, levanto a hipótese de que a mudança de estilo que dividiu a obra de Machado de Assis em duas fases ocorreu como forma de fazer frente à nova literatura apresentada em O Primo Basílio. Trata-se de uma hipótese que pretendo desenvolver em breve numa parceria com John Gledson (professor e ensaísta inglês, ligado à Universidade de Liverpool, autor de dois livros sobre Machado de Assis).

JU – Em sua opinião, como teria ocorrido essa influência?
Franchetti – O Primo Basílio, lançado em 1878, fez um sucesso espantoso, apesar (ou talvez por conta) de à época ter sido considerado indecente. Machado escreveu uma crítica na revista O Cruzeiro dizendo que a obra era imoral. Com isso, começou a ser satirizado pela imprensa, que passou a chamá-lo de conservador. Criou-se um problema, porque diante de O Primo Basílio a literatura praticada até então por Machado pareceu, ao seu público, ultrapassada. Por essa época, Machado teve uma crise de saúde e refugiou-se em Friburgo, onde parece ter escrito Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em folhetins em 1880 e em livro no ano seguinte. Esse livro marcará a virada para a segunda fase de sua obra. Minha hipótese é que a crise de saúde foi também uma crise de fundo literário. Machado teve de decidir o rumo de sua literatura. Como recusasse o realismo nos moldes de Eça de Queirós, deu um salto tático para trás e retoma o estilo irônico de Camilo Castelo Branco, outro autor português que fazia grande sucesso no Brasil. O próprio Machado leu muito Camilo, mas seu estilo, marcadamente irônico e cheio de referências ao próprio processo de composição, não é muito marcante na primeira parte da obra romanesca de Machado. A diferença é que, ao dar esse salto, Machado vai além de Camilo. Embora envolva o leitor fazendo ironia, por vezes sobre si mesmo, Camilo sempre achava um desfecho mais sentimental, que era o que o leitor desejava. Machado assume o mesmo estilo irônico, só que sem resvalar no sentimentalismo. A partir dali encontra o seu caminho. Sua aproximação de Camilo me parece uma forma de defesa contra a nova literatura de Eça de Queirós.

JU – O livro também dedica um capítulo inteiro ao poeta carioca B. Lopes, ligado ao simbolismo, que teve projeção no final do século 19 mas caiu no ostracismo no século 20. O que chamou sua atenção para esse autor?
Franchetti –Meu interesse ao desenvolver o trabalho foi definir um ponto de vista que não fosse exclusivamente modernista. Os modernistas tinham suas bandeiras contra os parnasianos e os simbolistas. Eles criaram uma ordenação nova da história literária, que foi sistematizada nos anos seguintes por uma escola crítica brasileira muito próxima da perspectiva modernista e por isso mesmo tributária da sua ótica, que é a escola crítica que se firmou na USP, cujo expoente maior é Antonio Cândido. Ao traçar o panorama da poesia brasileira até a véspera do modernismo, me preocupei em identificar os autores que despertaram grande interesse na época do parnasianismo, mas acabaram caindo no esquecimento. Nesse processo, me deparei com B. Lopes, que, no meio dos contemporâneos, me pareceu muito destacado.

JU – Que aspectos da obra de B. Lopes mais chamaram sua atenção?
Franchetti – Primeiro, a história da sua recepção crítica, que analiso nesse artigo. Depois, a qualidade mesma da sua obra, que é alta. Por fim, o fato de que, apesar de ter tido uma grande difusão, é hoje praticamente desconhecida. No que diz respeito à recepção, acho mesmo que houve um problema étnico, já que se tratava de um mulato pobre que se comportava e escrevia como um dândi. Esse é um país muito racista e, até o final do século XIX, como sabemos, um país escravocrata. É difícil encontrar um negro bem-sucedido na literatura brasileira. Machado é a grande exceção. A maior parte dos intelectuais negros no Brasil do século XIX sofriam pressões muito violentas e, mesmo produzindo obras destacadas, foram freqüentemente objeto de preconceito crítico. Em muitos casos, o preconceito crítico foi superado. Mas não no caso de B. Lopes. Enquanto sua poesia limitou-se à temática dos subúrbios, foi considerado autêntico e bom poeta. A partir do momento em que passou a fazer poemas decadentistas, falando de nobres e salões, a crítica muda de tom, desencadeou-se não só uma reação crítica negativa, mas também, nos últimos anos de sua vida, uma verdadeira campanha de descrédito, que merece um estudo à parte. Há poucos trabalhos sobre sua obra. Este é apenas o primeiro, e eu o quis republicar neste livro porque ele é uma espécie de demonstração de que há muito a fazer no estudo da literatura do século XIX brasileiro, e que deve haver ainda muitos outros escritores de bom nível, que ficaram esquecidos nas margens da história, contada, até agora, como preparação da apoteose modernista.

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