Nas procissões coloniais do século 18, os poucos negros da cidade de São Paulo apresentavam a dança dos índios caiapós, ao batuque de grandes tambores para atrair o povo até o cortejo. A dança dramática mostrava a morte do filho do cacique pelo branco invasor, o desespero da tribo e a chegada do pajé, que recorria às suas artes para fazer ressuscitar o pequeno curumim.
Está nesta dança dos índios a origem do carnaval negro paulistano, segundo a professora Olga Rodrigues de Moraes von Simson, diretora do Centro de Memória da Unicamp (CMU). Ela é autora do livro Carnaval em branco e negro: Carnaval popular paulistano: 1914-1988, fruto de sua tese de doutorado na USP e que precisou de mais de dezesseis anos para ganhar um formato em que o texto dialogasse com as fotos históricas.
“Como socióloga, o que me interessou foi mostrar o carnaval como uma manifestação de resistência étnica e cultural do grupo negro e depois dos grupos de operários imigrantes na cidade”, afirma Olga von Simson, que no mestrado já havia estudado o carnaval de elite na São Paulo do século 19.
A professora lembra que, nos tempos coloniais, a sociedade paulistana possuía uma grande base de indígenas, capturados no sertão e “amansados” na cidade antes de serem revendidos para latifúndios de algodão e de cana do Nordeste. Assim sobrevivia a pobre economia local, reservando-se aos abastados a regalia de comprar escravos negros.
Poucos e reprimidos, os negros representavam a tragédia indígena para denunciar a discriminação contra as duas etnias. A ressurreição do curumim indicava a possibilidade de resistência, sendo que a escolha dos caiapós não se deu aleatoriamente, e sim por que foi a única tribo que os bandeirantes não conseguiram dominar”, observa a autora.
Esta resistência inteligente, como define a socióloga “Eles sabiam que não teriam chances num corpo-a-corpo” , ocupou outro front quando Portugal proibiu as danças de negros nas procissões de lá e daqui. “Eles passaram a se apresentar no carnaval, uma manifestação popular mais aberta, como tática de afirmação étnica e de denúncia. O carnaval de São Paulo já começou com esse espírito”.
Os cordões - Olga von Simson explica que o carnaval-espetáculo como temos hoje no Brasil é uma introdução do carnaval importado da Europa pela burguesia em meados do século 19. Começou no Rio de Janeiro e avançou para o Centro-Sul através do Vale do Paraíba, acompanhando o enriquecimento das cidades trazido pelo café.
O carnaval popular surgiu na capital do Estado em meados da década de 1910, primeiro com os cordões e depois com as escolas de samba nos bairros, mantendo-se negro e dirigido por negros até os anos 80. “No Rio, a classe média entrou no sistema já nos 60, assumindo a direção de escolas e promovendo um carnaval para toda a cidade”.
Eu sei que fui um palhaço de rua”, disse à autora o carpinteiro Dionísio Barboza, cuja satisfação era divertir o povo. Filho de dançador de caiapó, seo Dionísio fundou o primeiro cordão de São Paulo, o Camisa Verde e Branco. “Hoje, meus filhos, netos e sobrinhos estão em bancos, repartições públicas e empresas. Eles se tornaram ‘colarinho branco’”, acrescentou.
Na opinião da professora da Unicamp, os velhos líderes negros preservam a consciência de que o carnaval incitou a etnia a ser organizar e a buscar uma virada social. “Mesmo atualmente, com a entrada do turismo e dos meios de comunicação de massa, e quando o carnaval já não é uma diversão apenas das famílias negras, as lideranças sabem que consolidaram um espaço importante que não pode ser abandonado”.
Imigrantes - Olga von Simson aborda o carnaval negro paulistano sempre em comparação com o carnaval branco, feito pelos imigrantes portugueses, espanhóis e principalmente italianos, nos bairros operários surgidos ao longo das estradas de ferro Brás, Moóca, Lapa e Água Branca.
“Era um carnaval que copiava o da elite, mas que também trazia uma marca de resistência. Submetidos ao sistema repetitivo de produção, os imigrantes eram nostálgicos da profissão de artesão, que dava margem à criação. Montavam grandes carros alegóricos para os ranchos [desfile de carros alegóricos], a fim de mostrar suas habilidades com madeira, tintas e panos”, recorda a pesquisadora.
Aqueles ranchos carnavalescos duraram até a Segunda Guerra. Com a transformação de São Paulo, os bairros operários próximos ao Centro tornaram-se mais comerciais e sua população foi redirecionada. “Os mais bem-sucedidos foram para bairros de classe média como Cambuci e Alto da Lapa; outros, até para o Morumbi”.
Com isso, desapareceram os clubes de bairro onde a vizinhança se reunia e organizava o carnaval. “Entrevistei idosos saudosos daquela fase da vida. As famílias de imigrantes ascenderam socialmente, mas os velhos perderam sua importância. Alguns jovens só souberam que os avós tinham se destacado no carnaval do passado quando fui colher os depoimentos”.
Memória íntegra - O crescimento de São Paulo também redirecionou a população negra para a periferia, com a diferença de que as sedes carnavalescas foram mantidas em redutos como Barra Funda, Baixada do Glicério e Bexiga onde, a partir dos cordões, surgiram escolas como a Camisa Verde e Branco, a Vai-Vai e a Lavapés.
Enquanto isso, as mulheres, como as costureiras de fantasias, faziam de suas casas na periferia espaços de organização e de ensaio das alas. Quando as lideranças levaram para lá os instrumentos de percussão as alas cresceram em número e qualidade e, logo depois, foram surgindo em bairros mais afastados outras importantes escolas paulistanas, como a Peruche e a Nenê da Vila Matilde.
“Ao invés de desaparecer como o carnaval branco, o carnaval negro resistiu ao processo de transformação da cidade e ganhou força. Os velhos continuaram com o seu saber sendo levado em conta, mantendo íntegros o caráter e a memória. Não é por acaso que eles integram a comissão de frente ou a ala dos pioneiros”, compara a pesquisadora do CMU.
Polca e samba - O livro de Olga von Simson também guarda espaço para as manifestações musicais. No século 19, a música vinha no pacote de carnaval importado da Europa, cantando-se trechos de ópera e valsas e dançando-se o schotisch, polca escocesa da qual derivaria o xote. “Com a entrada do povo no carnaval, cordões, ranchos e escolas de samba começaram as composições próprias”.
No entanto, não eram desfiles de um samba só. “Havia sempre uma música de apresentação do grupo, sendo que a Vai-Vai canta até hoje um verso do início do século passado: Que barulho, que barulho é aquele? Que barulho é aquele que vem lá? É o Vai-Vai do Bexiga, orgulho da Saracura”.
Para o tema do ano, a composição destacava a capacidade melódica e poética do grupo, visto que os cordões, por exemplo, eram acompanhados por um conjunto trazendo instrumentos de sopro e de corda, além de percussão. “Era uma orquestra que também tocava durante o ano em bailes pagos, juntando dinheiro para o carnaval”.
As marchinhas foram introduzidas a partir dos anos 30, com o advento do rádio. “Há um período em que os grupos desistiram de compor, escolhendo, dentre as músicas mais tocadas no rádio, aquela para montar o enredo. Quando Vargas impôs temas de caráter histórico e nacionalista aos desfiles, voltaram às composições próprias, então na forma de samba-enredo”.
A transposição - A pesquisa da professora da Unicamp concentra-se de 1914 ano de criação do primeiro cordão paulistano até 1988 quando já está constituído o espetáculo da indústria cultural. “A última foto do álbum que compõe o livro traz um desfile noturno, com iluminação artificial, arquibancadas e câmeras de televisão”.
A Nenê foi a primeira escola a instigar a transposição do cordão paulistano para o modelo de carnaval carioca. “As próprias lideranças negras, como Nenê e Inocêncio Mulata (Camisa Verde e Branco), exerceram forte pressão para a oficialização do carnaval paulistano, que veio com o prefeito Faria Lima em 1968”.
Ocorre que o regulamento dos desfiles foi elaborado por um carnavalesco carioca, Jangada, que desconhecia o carnaval paulistano e o fenômeno dos cordões. “Interrompo a pesquisa em 1988 porque a transposição então está completa, com toda a perda que isto significou em relação às raízes afro-rurais do samba paulista. Felizmente, a tradição dos grandes tambores persiste no interior do Estado, em redutos como Piracicaba, Tietê, Capivari e São Bom Jesus de Pirapora”, finaliza Olga von Simson.
Serviço
Título: Carnaval em branco e negro:
Carnaval popular paulistano: 1914-1988
Autora: Olga Rodrigues de Moraes von Simson
Editora: Editora da Unicamp
ISBN: 978-85-268-0751-8
Páginas: 396
Formato: 20x20cm - Ano: 2007