A situação é emblemática. Há 50 anos, indagado se urinar na água do mar que chega às praias prejudica os banhistas, o pai responderia ao filho curioso que não. E explicaria: a quantidade de urina é desprezível em relação ao volume da água do mar. Hoje a resposta poderia ser a mesma, mas por razão diferente: o aumento da poluição seria considerado insignificante em relação à já existente em certas praias. Embora estas duas explicações indiquem a mesma falta de educação ecológica, já revelam uma certa mudança de paradigmas: apenas nas últimas décadas a humanidade tem se dando conta da necessidade da racionalização do uso da água e dos problemas de poluição ambiental, que passou a ser significativa com o aumento dos agrupamentos urbanos, a sempre crescente industrialização e a exploração desenfreada de bens naturais.
Tem acontecido o mesmo quando o assunto é energia. A consciência da finitude de certas fontes energéticas começou a se desenvolver com mais amplitude no mundo com as duas crises de petróleo já embarcamos na terceira. No Brasil ocorreu um lampejo de consciência por ocasião do apagão (em 2004), que não se manteve por falta de políticas públicas adequadas. Nos últimos anos a produção de etanol e o anúncio de novas reservas nacionais de petróleo têm contribuído para mascarar o problema no país. Talvez a questão volte a preocupar com a anunciada elevação progressiva dos preços dos combustíveis, pressionados pela crescente demanda internacional.
Estas constatações emergem da conversa com o professor José Armando Valente, do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação do Instituto de Artes (IA) e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Informática Aplicada à Educação (Nied) da Unicamp, engenheiro mecânico de formação com atuação em computação, que se dedica ao estudo da tecnologia aplicada à educação. As reflexões adquirem particular pertinência por ocasião da 60ª Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Valente falará no dia 15 de julho no simpósio “Mudança cultural no consumo de energia e sustentabilidade”.
Valente faz parte de um grupo de 64 docentes, de seis das principais instituições de ensino superior do País Unicamp, USP, Unesp, UFRJ, UFRS e ITA que, distribuídos por redes temáticas, discutem novas fontes de energia, produção e emprego do biodiesel, entre outros temas relacionados a fontes energéticas, comunidades sustentáveis, implicações para o meio ambiente e para a saúde. Para agasalhar problemáticas que não encontravam enquadramento em nenhuma área especifica, foi criada a Rede Convergente, de composição multidisciplinar, constituída por professores da física, química, biologia, medicina e engenharias da Unicamp, além do próprio Valente, que representa a área de humanas.
A iniciativa da criação das redes temáticas, idealizada e patrocinada pela Petrobrás, tem como objetivos principais a busca de novas fontes de energia que venham substituir o petróleo e desenvolver hábitos que levem a gastos de menor energia.
O pesquisador considera, que para atingir esses objetivos, é fundamental preparar a cabeça das pessoas, tornando-as conscientes do uso racional da energia e da finitude dos recursos energéticos naturais. “Nossa conversa envolve temas paralelos ou tangentes à questão focal da energia. Mesmo porque eu não sou especialista em energia. Venho me dedicando à comunicação em educação. Considero que a única saída seja acordar as pessoas para a questão da energia para que estejam conscientes de como devem usá-la e como podem economizá-la”.
O que pode ser feito O professor sugere algumas iniciativas como programas de curta duração em educação a distância para formação de professores do ensino fundamental e médio, preparados para discutir o uso de energia. Desenvolvido interdisciplinarmente, esse programa envolveria professores de ciências que poderiam trabalhar os aspectos físicos e químicos e até biológicos; professores de matemática que mostrariam os cálculos da energia consumida em varias situações; e professores de português que analisariam e levariam os alunos a desenvolver textos sobre propostas ou relatórios de projetos, entre outros exemplos. Essa prática seria adotada já nos cursos a distância e o aluno-professor contaria com subsídios dos docentes que os ministram.
Outra idéia aventada por ele seria o desenvolvimento, nas escolas, de uma pesquisa sobre os usos de energia no cotidiano. Valente esclarece que “a pesquisa teria como finalidade calcular efetivamente os reais gastos de energia em situações do cotidiano, mostrando o que é realmente mais eficiente em termos de energia no dia-a-dia, além de revelar falácias”. E cita um caso: tomar café em uma xícara de porcelana, portanto lavável, é mais econômico do que utilizar um copinho descartável? A conscientização do jovem se faz perante situações vivenciadas pelo estudante, diz ele.
Na Rede Convergente emergem temas que depois são discutidos por subgrupos constituídos por membros da rede temática com experiências mais afetas a eles. É o caso da proposta que envolve a mudança de atitude em relação à utilização da energia, pelo desenvolvimento da consciência através da educação, o que pode ser realizado inclusive através da TV. Nesses subgrupos podem ser ainda montados cenários para reflexão, como os meios de locomoção que as pessoas utilizariam daqui a 50 anos ou do que se perdeu em décadas passadas, de forma a reunir elementos que permitam delinear o futuro. O professor explica que no subgrupo trabalha com pessoas de perfil e interesses semelhantes na reflexão e discussão de que tipos de ações podem ser desenvolvidas do ponto de vista educacional
Nessa rede temática são discutidos: a utilização da energia nuclear, da energia solar e a instalação de usinas de biodiesel que acabam sendo implementadas pela Petrobrás. Nesse grupo multidisciplinar, afirma Valente, cada especialista revela seu olhar sobre os problemas estudados, o que tem grande importância para o estudo, do ponto de vista da sustentabilidade, de uma ilha, uma cidade, uma região, a exemplo de Fernando de Noronha, sugerida para estudo de caso.
Mudanças de paradigmas Valente insiste que é fundamental levar as pessoas a pensar que diversas das formas de energia são finitas; que existem outras fontes passíveis de utilização, como as ondas do mar, os ventos, as plantas; que o aproveitamento da água e do sol depende de programas governamentais; que a utilização de plantas leva à reflexão sobre o espaço justo que deve ser reservado a elas com finalidade de produção de energia para que não haja comprometimento de alimentos; que a energia eólica compromete a paisagem e leva à morte uma certa quantidade de pássaros; e que o petróleo não é apenas fonte de gasolina e diesel, mas fornece insumos para uma série de produtos oferecidos pela sociedade moderna, o que faz pensar sobre o real significado da questão da sustentabilidade.
Ele diz ainda que o apagão trouxe um certo grau de consciência, mas não foi acompanhado de um processo educacional. Lembra que não existe no Brasil um programa coerente para definição das matrizes energéticas. O docente observa que, depois de um início promissor, o carro a álcool quase sumiu de circulação e que agora o combustível volta a fazer sucesso com a utilização de veículos flex. Vê como papel da Rede Convergente o fornecimento de subsídios para um olhar mais técnico, mais profundo. A discussão, em sua opinião, abre cenários e mostra possibilidades para que a tecnologia possa analisar e utilizar, se considerar viáveis.
Além de julgar o trabalho muito pertinente, o engenheiro o acha prazeroso porque realizado fora da ação do dia-a-dia. Considera muito proveitosas as reuniões mensais realizadas na hora do almoço da primeira segunda-feira de cada mês, pois, segundo o docente, se manifestam opiniões de docentes com formações as mais diversas, em que cada um analisa com seu olhar muito particular. “São reflexões ricas, embora sem a preocupação de achar a solução. É a academia exercendo seu papel fundamental: a reflexão. Olhamos o passado, pensando no futuro”, observa ele.
Valente lembra ainda que na Rede Convergente poderia ser colocada a seguinte questão: como formar o um milhão de educadores do meio ambiente de que o Brasil precisa? Ele entende que o cumprimento dessa tarefa apenas será viável com o uso da tecnologia. “Para o futuro temos que pensar num processo educacional. E essa é efetivamente a mudança de paradigma, pois vamos ter que certamente utilizar novas formas de energia ao mesmo tempo. Isso, porém, não basta. Precisamos fazê-las acompanhar de uma nova postura em relação ao gasto de energia, e isso apenas se consegue através da educação”, acrescenta.