No momento em que entidades internacionais reclamam do desvio de parte da produção agrícola para a geração de biocombustíveis e miram com suas críticas o Brasil, principal exportador de álcool do mundo e que usa a cana-de-açúcar para extrair o produto , a pergunta não poderia ser mais inquietante: a substituição de lavouras tradicionais pelas de cana-de-açúcar é um risco real à produção de alimentos? A resposta: com o uso do solo de maneira mais sustentável será possível ao País atender à crescente demanda mundial pelo combustível de origem vegetal sem que seja necessário à agroindústria da cana avançar sobre vastas regiões e sem afetar a produção de outras culturas.
Impulsionado pela demanda pelo álcool, o significativo aumento de produção de cana-de-açúcar nas últimas três décadas no Brasil deu-se por meio da adoção de processos agrícolas e industriais mais eficientes. Mas, chegou-se praticamente ao limite do que é possível se produzir por meio da agricultura tradicional, com técnicas convencionais de mecanização e adubação.
Portanto, se o Brasil deseja continuar a ganhar produtividade na próxima década estudos mostram que o País pode multiplicar por dez a sua atual produção de mais de 20 bilhões de litros de etanol até 2025 , é preciso romper com o sistema de produção bastante conservador que caracteriza a atividade agrícola brasileira e quebrar paradigmas tecnológicos no cultivo da cana, adverte Oscar Antonio Braunbeck, professor da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Unicamp.
“Hoje, temos por volta de 7 milhões de hectares de cana, e desde o início do Proálcool até agora passamos de um volume da ordem de 50 toneladas/hectare para algo em torno de 80 toneladas. Houve, então, um importante crescimento de produtividade, mas também ocorreu aumento da área plantada. O desafio agora é aumentar a produção sem ter que aumentar tanto a área”, pondera o pesquisador.
Esse horizonte, argumenta ele, traz uma série de benefícios, como redução de custos, proteção ambiental e produção mais sustentável. E nesse cenário, o solo exerce papel estratégico, tornando-se essencial a sua proteção para que possa continuar produzindo por muitas décadas como produziu até agora ou até melhor.
“Se, contudo, continuarmos com o modelo clássico de agricultura, isso não vai acontecer”, vaticina Oscar. “É fundamental adotarmos medidas preventivas para evitar que o solo se degrade com o uso abusivo, senão é grande o risco de assistirmos na agricultura uma situação semelhante ao que ocorre na pecuária descontrolada e sem tecnologia, que em muitas áreas do Brasil vem progressivamente degradando as terras”, compara.
Mecanização A mudança de paradigma, salienta Oscar, passa obrigatoriamente pela adoção de uma mecanização de baixo impacto para a cultura da cana.
Segundo ele, o esquema de mecanização praticado atualmente para a produção da cana envolve um tráfego pesado de equipamentos, como tratores, principalmente durante a colheita e o transporte. A compactação do solo resultante do tráfego de máquinas é um fator limitante à obtenção de maior produtividade agrícola. A técnica denominada tráfego controlado permite a separação permanente das áreas usadas para o desenvolvimento das plantas daquelas usadas para o tráfego dos elementos rodantes.
“As áreas de produção, localizadas entre as pistas de tráfego, são usadas exclusivamente para o plantio, sem sofrer a compactação associada ao tráfego. O sistema de tráfego controlado permite uma redução das operações de preparo do solo, resultando em redução de custos e viabilizando o plantio direto”, explica.
A técnica de plantio direto, na palha, tem mostrado resultados muito positivos em culturas como soja, milho e trigo, afirma o docente. No caso da cana-de-açúcar, o plantio na palha, sem queima prévia à colheita, proporcionaria benefícios ambientais, econômicos (associados ao aproveitamento energético do palhiço) e contribuiria para a conservação do solo, assegurando a sustentabilidade do sistema.
“A biomassa é uma fonte de energia renovável e disponível. Quando a colheita é feita sem queimada prévia, aproximadamente 1/3 da biomassa da cana-de-açúcar, na forma de palhiço pode ser transformada em energia elétrica, por meio de queima em caldeiras, ou em álcool, através de hidrólises. Parte dela pode ainda permanecer sobre a superfície para impedir a erosão, evitar perda de água e incorporar matéria orgânica ao solo”, argumenta.
Segunda geração A mecanização de baixo impacto é um dos projetos do Centro de Ciências e Tecnologia do Bioetanol, que será construído na área do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, em Campinas. O centro é uma iniciativa do Ministério de Ciência e Tecnologia para o desenvolvimento de pesquisas orientadas para a produção do etanol de segunda geração, denominação do combustível obtido a partir da conversão da palha e do bagaço da cana-de-açúcar. Estima-se que, com o aproveitamento dessas matérias-primas, será possível elevar em até 40% a atual produção de álcool, sem necessidade de aumentar a área plantada.
“A proposta do centro é a de contribuir para assegurar a liderança brasileira na produção sustentada de etanol da cana-de-açúcar, por meio de pesquisas que promovam inovação da cadeia de produção cana de açúcar-bioetanol”, afirma o físico Marco Aurélio Pinheiro Lima, diretor da instituição. “O Brasil tem um programa vencedor, somos muito competitivos internacionalmente, mas desejamos melhorar ainda mais essa condição em um contexto em que o biocombustível aparece de maneira cada vez mais acentuada como solução energética para o mundo.”
O Brasil hoje usa basicamente a conversão do caldo da cana em bioetanol. Descartada no processo, a palha é queimada para facilitar a colheita, método com conseqüências ambientais desastrosas. Parte do bagaço já tem destinação mais nobre, ajudando a gerar energia elétrica. Os esforços do centro serão agora os de explorar o potencial de uso do restante da planta, convertendo a biomassa da cana em etanol por meio de hidrólises.
“Já sabemos como fazer isso, porém ainda de forma ineficiente. O desafio do centro é transformar a tecnologia em um processo economicamente viável, capaz de interessar ao setor produtivo”, observa Marco Aurélio.
Os estudos agregarão representantes dos diferentes setores envolvidos com a temática do bioetanol no Brasil e pesquisadores multidisciplinares de outros institutos brasileiros.
“O centro não pretende fazer uma trincheira de defesa do bioetanol. O que se quer, de fato, é incentivar estudos abrangentes dos aspectos econômicos, ambientais e sociais de toda a cadeia da cana de açúcar, visando à sua maior sustentabilidade”, resume Marco Aurélio.
Georeferenciamento A adoção da agricultura de precisão é outra providência que, na opinião de Oscar, poderá contribuir para aumentar a produtividade da cana para 100 toneladas/hectare nos próximos 30 anos.
O que é isso? É tratar cada metro quadrado de solo especificamente em função de suas características, valendo-se de tecnologia já disponível, como dados de georeferenciamento obtidos por meio de satélites e de sensores capazes de captar informações a respeito do terreno e da planta. Esse mapeamento permite ao produtor conhecer detalhadamente o que ocorre em sua propriedade, possibilitando o uso correto de insumos e a adoção de medidas corretivas quando necessárias.
Ambos reconhecem que não será fácil mudar a cultura de mecanização da cana em um país como o Brasil, que possui usinas que chegam a 50 mil hectares de tamanho. Trata-se, sobretudo, de tornar as novas tecnologias atraentes para o produtor. A necessária mudança de paradigma ocorrerá na medida em que o segmento produtivo perceber os impactos importantes nos custos e na produtividade, e entender que a adoção de técnicas inovadoras, não convencionais, é o único caminho possível para a garantia do futuro sustentável de seu negócio.