| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição Temática 402 - 14 de julho a 2 de agosto de 2008
Leia nesta edição
Capa
Opinião
A receita do equilíbrio
Palha e bagaço
Uma meta a cumprir
Produtividade com baixo impacto
Terapia em construção
Adensar para manter o verde
Cientista não é biopirata
Muito além do ativismo
O futuro humano
Uma equação que não fecha
A corda e a caçamba
A chave do tamanho
Percepção pública da ciência
Amplo painel
Novas leituras do consumo
O espaço do indeterminado
O estranho íntimo
 


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Terapia em construção

MANUEL ALVES FILHO

A médica hematologista Ângela Cristina Malheiros Luzo, do Hemocentro da Unicamp: "Os resultados não são para amanhã" (Fotos: Antoninho Perri)A médica hematologista Ângela Cristina Malheiros Luzo, responsável técnica pelo Banco de Sangue de Cordão Umbilical do Hemocentro da Unicamp, pesquisa as propriedades das células-tronco há aproximadamente 15 anos. Nesse período, ela foi testemunha de avanços significativos nessa área. Otimista por definição, a pesquisadora considera que os estudos em desenvolvimento tanto no Brasil quanto no exterior abrem possibilidades importantes para o desenvolvimento de técnicas que poderão ser utilizadas no tratamento de variadas doenças. A especialista adverte, porém, que vai levar algum tempo para que a ciência atinja tal estágio. “Ainda precisamos aprender a manipular adequadamente esse material. Para se ter uma idéia, as pesquisas com células-tronco de medula óssea somam 40 anos, e ainda estamos sendo surpreendidos por novidades”, compara. Na entrevista que segue, Ângela Luzo analisa o atual estágio do conhecimento nessa área, destaca os principais desafios a serem superados e defende um maior esclarecimento da população acerca das reais potencialidades das células-tronco. “É preciso dar esperança às pessoas, sim, mas é necessário dizer que os resultados não são para amanhã. É preciso dizer que vai demorar”, alerta.

Enfermeira retira sangue de cordão umbilical após parto realizado no Hospital de Sumaré: procedimento já soma 20 anosJornal da Unicamp - Qual o estágio das pesquisas com células-tronco no Brasil? A liberação do uso das células embrionárias dará um novo impulso aos estudos?

Ângela Luzo - Foi criada uma expectativa muito grande em torno da liberação das células-tronco embrionárias para as pesquisas científicas, como se não existissem estudos nessa área antes delas. É bom lembrar que o transplante de medula óssea, que é realizado há 40 anos no país, insere-se nesse esforço científico. O uso de células-tronco obtidas por meio de sangue do cordão umbilical já soma 20 anos. Além dessas, outras fontes para obtenção dessas células já surgiram. A mídia está focando muito a linhagem embrionária, como se ela fosse a grande salvadora da pátria, mas não é bem assim.

JU - Mas trata-se de uma fonte importante, não?

Ângela Luzo - Sim. Principalmente porque as células-tronco embrionárias são consideradas totipotentes. Ou seja, elas têm capacidade de se diferenciar em qualquer outra linhagem, como as células que formam os tecidos do osso, do rim, do fígado. Mas há um problema aí. Por ser totipotente, ela também pode se diferenciar em células tumorais. Ainda precisamos aprender a manipular adequadamente esse material, para saber se as linhagens que pretendemos criar são estáveis e não vão se degenerar. Esse trabalho leva tempo.

JU- É possível estimar esse tempo?

Ângela Luzo - Se você me perguntasse qual foi a grande importância da liberação do uso das células-tronco embrionárias em pesquisas científicas, eu diria que foi a possibilidade que a medida abriu de mais gente estudar as suas propriedades e potencialidades. Mas elas serão importantes, no curto prazo, para virar tratamento clínico? Não. Apenas para se ter uma idéia, as pesquisas em torno das células-tronco de cordão umbilical somam 20 anos, e ainda assim estamos sendo surpreendidos por novidades. Ou seja, ainda há muito que se aprender. Além disso, há novidades também em outras frentes de pesquisa.

JU - Que novidades são essas?

Ângela Luzo - Há alguns anos a ciência descobriu que existem células tanto na medula quanto no sangue de cordão com características semelhantes às das células-tronco embrionárias. Ocorre que estas células representam menos de 1% da celularidade total tanto da medula quanto do sangue de cordão. O que a gente tem que fazer, agora, é desenvolver um bom marcador para obter essas células e expandi-las em laboratório.

 JU - Poderia dar mais detalhes sobre as características das células-tronco obtidas de sangue de cordão?

Ângela Luzo - A célula-tronco de sangue de cordão é um pouco mais primitiva, mais indiferenciada do que a de medula, pelo próprio momento da sua obtenção. No feto, o sangue começa a ser produzido no fígado, no baço e depois na medula óssea. No momento do parto, essas células imaturas totipotentes estão se dirigindo para a medula. É quando coletamos esse sangue. Se eu coletasse um ou dois dias depois, a celularidade seria semelhante à do sangue de um adulto.  Trata-se de uma fonte que ainda não está esgotada, e que pode oferecer novidades.

 JU - Alguma outra novidade que mereça registro?

Ângela Luzo - Nos últimos cinco anos estão surgindo novas pesquisas em torno das células mesenquimais, principalmente fora do Brasil. Elas dão suporte à medula, de modo que as células se proliferem. Estão presentes em vários órgãos humanos. As mesenquimais também têm a capacidade de se diferenciarem em todas as linhagens, assim como as embrionárias. Atualmente, existem estudos com células mesenquimais de medula, de sangue de cordão e até mesmo de tecido adiposo. Nos experimentos, elas se diferenciam em linhagens de pâncreas, neurônio, osso, cartilagem, fígado etc. A sensação que eu tenho em relação às células mesenquimais é a mesma que eu tive quando do início dos estudos com sangue de cordão, na década de 90. Penso que é uma fonte importante, de fácil obtenção, mas que ainda vai requerer muita pesquisa.

JU - Fácil obtenção?

Ângela Luzo - Sim. Como essas células estão presentes no tecido adiposo, basta que uma pessoa que se submeta a uma lipoaspiração doe um pouco de gordura. Depois disso, nós vamos trabalhar esse material em laboratório. Se conseguirmos o que os grupos internacionais estão conseguindo, penso que será algo promissor. Vale destacar que outra vantagem da célula mesenquimal é que ela imunomodula o sistema imune. Ou seja, pode ser que sirva, no futuro, para tratar doenças auto-imunes, como o lúpus, diabetes, entre outras.

JU - Qual a primeira indicação das células-tronco como terapia?

Ângela Luzo - A terapia celular é mais indicada para transplante. O primeiro transplante do gênero, insisto, ocorreu há 40 anos. Em que situação pode ser empregada? Por exemplo, quando a pessoa tem uma neoplasia e precisa se submeter a tratamento rádio e quimioterápico importante. Como conseqüência, precisa reconstituir a medula óssea para a produção de sangue. Dessa forma, o transplante de medula óssea, como é mais conhecido, é na realidade um transplante de células-tronco de medula óssea.

JU - Em que campo as pesquisas em torno da terapia celular estão mais avançadas?

Ângela Luzo - Atualmente, um campo importante diz respeito à regeneração de tecidos lesados por alguma doença, por meio da terapia celular. O que se tem de concreto? Existe uma linha de pesquisa para coração, que teve início da década de 90. No Brasil, há grupos trabalhando com isso em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. As pesquisas com coração cumpriram um trajeto inverso do usual. Foram injetadas células mononucleares de medula óssea num paciente cujo coração tinha uma área comprometida. Na ocasião, foi constatado que a área regenerou-se. Durante muito tempo pensou-se que a terapia havia reconstituído as fibras do órgão. Até hoje, porém, isso não foi comprovado cientificamente. Sabe-se apenas que o procedimento melhorou a vascularização da região e, com isso, houve melhora da função do coração. Depois de algum tempo, foram iniciados testes em animais. Ou seja, houve uma fase clínica e depois uma pré-clínica, ao contrário do que acontece normalmente.

JU - E na área neurológica?

Ângela Luzo - No Rio Grande do Sul, existem estudos em torno do AVC, o popular derrame cerebral. Os pesquisadores estão trabalhando com células-tronco de medula, pois é preciso haver compatibilidade. Ou seja, na hipótese de uma terapêutica nesse sentido, seria preciso usar material obtido da medula do próprio paciente, para que haja compatibilidade. Outra linha de pesquisa importante está voltada para a reconstituição do fígado. Isso daria melhores condições para que a pessoa espere na fila do transplante. Tem um projeto inicial na Unicamp, mas há grupos mais adiantados no Rio de Janeiro e Bahia, inclusive em fase clínica. Os resultados ainda não comprovaram se está havendo reconstituição ou regeneração do fígado. As pessoas dizem sentir melhora, mas não há ainda comprovação laboratorial da melhora de função. Fora isso, Ribeirão Preto estuda a aplicação da célula-tronco de medula na terapia de doenças neurológicas degenerativas e diabetes. Essas são as principais linhas de pesquisa já com direcionamento clínico que existem no Brasil. Aqui na Unicamp temos um grupo multidisciplinar atuando em pesquisas com células-tronco obtidas de sangue de cordão, medula óssea e com células mesenquimais obtidas dessas mesmas fontes e também de tecido adiposo. Alguns projetos estão numa primeira fase pré-clinica, guardando a liberação, e outros já numa fase clínica. O grupo engloba colaboradores das áreas médica, neuroclínica, cirúrgica, reumatologia, cirurgia plástica, ortopedia, gastroclínica e do Hemocentro. Os especialistas estão vinculados aos institutos de Química, Física e Biologia da Unicamp, Laboratório Síncroton e dos institutos de Química da USP e de São Carlos.

JU - O que a senhora pensa sobre a proibição de pesquisas em torno da transferência nuclear?

Ângela Luzo - Esse procedimento foi bloqueado pela Lei de Biossegurança. Trata-se de um modelo de manipulação muito interessante, que poderia abrir perspectivas, por exemplo, para o tratamento de doenças degenerativas. Ocorre que esse procedimento está relacionado à clonagem. Penso que não deveríamos temer a clonagem humana, visto que estamos muito longe disso. Em minha opinião, ainda há um grande desconhecimento sobre isso. Os cientistas e a mídia deveriam orientar a população em geral sobre as vantagens de se trabalhar nessa área.

JU - Por falar em informação, como a senhora avalia o trabalho da mídia? Ela está informando a sociedade de maneira conseqüente sobre esses assuntos?

Ângela Luzo - A informação precisa é muito importante. A mídia deve abrir espaço para explicar essas questões de forma simples. É preciso explicar que existem várias fontes de células-tronco, e que elas ainda estão em estudo. É preciso deixar claro que as células-tronco embrionárias são apenas mais uma fonte para se trabalhar. Tudo isso deve ser divulgado com responsabilidade, de modo a não criar falsas expectativas nas pessoas. Eu atendo vários telefonemas de gente que chega ao absurdo de se oferecer para ser cobaia em nossos experimentos. Este termo não deve ser utilizado para seres humanos. Isso é resultado do desconhecimento dessas pessoas. O homem não pode ser cobaia. Falta ser ventilado que as pesquisas passam por comitês de ética rigorosos, tanto em âmbito interno quanto externo às instituições de pesquisa. É preciso esclarecer que ninguém está criando monstros em laboratórios. É preciso dar esperança, sim, mas dizer que não é para amanhã. É preciso dizer que vai demorar. O pesquisador também tem que estar comprometido com esse esforço de esclarecimento.

JU - Gostaria de acrescentar algo?

Ângela Luzo - Gostaria de deixar uma mensagem. Dizer que as pesquisas com células-tronco são promissoras e que abrirão um vasto campo de estudo para as novas gerações. Também gostaria de chamar a atenção das pessoas para a importância da doação de órgãos, doação de sangue etc. As pessoas ainda têm muitas restrições à doação, mas elas precisam saber como a vida de uma criança que sofre de uma grave doença no fígado muda depois do transplante. A doação de órgãos é fundamental para que possamos dar melhores condições de vida para quem está doente.

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