Durante a 60ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), um tema promete mobilizar a atenção dos pesquisadores, principalmente aqueles que dependem da coleta de material biológico na natureza para dar seqüência aos seus estudos: a necessidade de alteração da legislação que rege esse tipo de procedimento. Considerada “draconiana” pelos cientistas, a regra não somente tem dificultado o trabalho de botânicos, zoólogos, ecólogos etc, como tem colocado esses profissionais na condição de potenciais suspeitos da prática de biopirataria. “A legislação tem que proteger os interesses do país, mas não pode se transformar num obstáculo ao trabalho da ciência, como é o caso”, afirma Carlos Alfredo Joly, chefe do Departamento de Botânica do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp.
De acordo com ele, o evento abrigará um módulo composto por diversas mesas, nas quais o assunto será debatido por representantes da comunidade científica e do governo. “Nossa expectativa é estabelecer um diálogo produtivo com os órgãos governamentais, tendo como foco a mudança da lei. Da forma como está, ela constitui um empecilho à realização das pesquisas científicas, o que em última análise atrapalha o desenvolvimento do Brasil”. A tentativa de diálogo a que se refere Joly não é nova, registre-se. Ela remonta aos anos 90, logo após o país ter assinado a Convenção sobre Diversidade Biológica, formulada por ocasião da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a chamada Rio 92. Uma das exigências impostas aos signatários era a formulação de uma lei que regulamentasse o acesso aos recursos biológicos e ao conhecimento tradicional a eles associados.
Em 1995, a então senadora Marina Silva encaminhou ao Senado um projeto de lei nesse sentido. Na oportunidade, foram ouvidos representantes da comunidade científica, do Ministério Público, das comunidades tradicionais, das etnias indígenas e do empresariado. A matéria chegou a ser aprovada numa das comissões internas da Casa, na forma de um substitutivo do senador Omar Dias, mas a tramitação não teve seqüência. Em 2000, o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) criou o Programa de Desenvolvimento da Amazônia, e dentro dele um pólo de biotecnologia denominado Associação Brasileira para o Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia (BioAmazônia). Um ano depois, a BioAmazônia firmou acordo de cooperação com a multinacional Novartis Pharma AG, sediada na Suíça, que previa que a empresa teria, pelo prazo de dez anos, a exclusividade na prospecção e comercialização de drogas e produtos farmacêuticos oriundos de microrganismos e plantas da Amazônia Legal
O contrato, porém, acabou sendo denunciado à Justiça, que o considerou ilegal justamente porque se baseava em legislação que sequer existia. “Na época, nós imaginávamos que a resposta do governo seria resgatar o substitutivo do senador Omar Dias ou elaborar um novo projeto de lei. Infelizmente, não foi isso o que aconteceu. O governo optou por baixar uma medida provisória [MP] regulamentando a questão do acesso aos recursos naturais e aos conhecimentos tradicionais. As regras engessavam a atividade científica, pois burocratizavam tremendamente a coleta de materiais biológicos, mesmo que não houvesse qualquer interesse econômico relacionado ao estudo”, recorda Joly.
No Exterior A MP também gerou um problema de relacionamento entre as instituições brasileiras e estrangeiras. Até então, havia um livre intercâmbio entre os pesquisadores. “Mais de 70% do material utilizado para a descrição das espécies brasileiras, seja de plantas ou animais vertebrados, está em museus e herbários dos Estados Unidos e Europa. Normalmente, para realizar um trabalho na área de taxonomia, a gente pedia esse material emprestado, fazia as análises, redefinia as espécies e depois o devolvia. Da forma como estava escrito na medida provisória, esse material, ao ingressar em território brasileiro, passaria a pertencer ao país. Diante disso, as instituições estrangeiras deixaram obviamente de colaborar conosco”, relata o professor do IB da Unicamp.
Depois de uma série de críticas da comunidade científica, o governo decidiu, em 2001, editar uma nova MP. Esta tornava flexível algumas regras anteriores, mas mantinha o mesmo sistema cartorial para a concessão de licenças para a coleta de materiais na natureza. Por conta da posterior aprovação de uma emenda constitucional, a medida tornou-se perene e está em vigor até hoje. O professor Joly destaca, porém, que a despeito de tal flexibilização, a comunidade científica continuou se mobilizando para tentar reformular completamente a legislação. Em 2003, quando assumiu o primeiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva convidou a então senadora Marina Silva para comandar o Ministério do Meio Ambiente (MMA).
A expectativa da comunidade científica, obviamente, era de que a ministra, que já apresentara um projeto de lei regulamentando essa questão, retomasse as suas propostas e finalmente pusesse fim ao drama dos pesquisadores. As primeiras iniciativas de Marina Silva até que foram nessa direção. Logo nas primeiras semanas de gestão, ela convocou uma reunião em Brasília, na qual estiveram representados todos os atores interessados na regulamentação do acesso aos recursos biológicos e ao conhecimento tradicional a eles associados. Segundo Joly, que representou a SBPC no encontro, a discussão central era se a MP deveria ser revogada ou se o Ministério criaria, por meio de resoluções, mecanismos que facilitassem o trabalho dos cientistas. Simultaneamente, ficou acordado que o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Cgen), com o apoio das partes diretamente interessadas, redigiria um anteprojeto de lei que, depois de formatado, seria encaminhado ao Congresso, o que culminaria com uma legislação definitiva sobre o assunto.
Em outubro de 2003, depois da superação de muitas dificuldades, finalmente o colegiado chegou a um texto consensual. “Mas o que aconteceu depois foi algo inacreditável. O anteprojeto seguiu para análise do setor jurídico do Ministério do Meio Ambiente, sofreu algumas alterações e foi encaminhado à Casa Civil para a formatação final. Isso ocorreu em dezembro de 2003. Até hoje, julho de 2008, a matéria ainda não foi enviada ao Congresso”, lamenta Joly. Em 2006, conforme ele, depois de muita “chiadeira” por parte dos cientistas, o presidente Lula assinou um decreto estabelecendo que a pesquisa científica é uma atividade de utilidade pública. Isso melhorou um pouco o acesso dos pesquisadores aos materiais biológicos, visto que dispensou o cumprimento de exigências tidas como “absurdas” por eles, como a definição de um pré-roteiro e a apresentação de autorizações prévias para a realização das coletas.
Independentemente desses ajustes, permanecia a esperança da comunidade científica de que a proposta de legislação parada na Casa Civil ainda tivesse andamento. “Entretanto, fomos surpreendidos mais uma vez por uma notícia desagradável. O então secretário de Biodiversidade e Florestas do MMA, João Paulo Capobianco, informou-nos que tudo o que havia sido discutido e consignado no texto era letra morta. Isso porque os integrantes do Cgen alegaram que não se sentiram à vontade para discutir determinados temas na presença de pessoas que não pertenciam ao Conselho. Além disso, alguns ministérios também alegaram que os seus representantes com assento no Cgen não tinham autonomia para negociar o que quer que fosse em nome das pastas. Ou seja, tudo não tinha passado de um grande teatro, uma grande farsa”, lastima o professor do IB da Unicamp.
Atualmente, prossegue Joly, um novo texto está sendo discutido no âmbito da Casa Civil. Em dezembro de 2007 a matéria foi aberta para consulta pública. Até o final deste mês, a Pasta estará recebendo sugestões. “O esforço da comunidade científica continua sendo no sentido de reformular a legislação que está em vigor. É bom que fique claro que nós não somos contra as medidas que protejam os recursos biológicos do país ou que os produtos que vierem a ser colocados no mercado com base nesses recursos sejam divididos equitativamente, quando for o caso, com as comunidades tradicionais ou as etnias indígenas. Ao contrário, queremos que esses cuidados sejam contemplados na lei. O que não pode continuar acontecendo é o entrave às pesquisas científicas. Também não pode continuar prevalecendo a visão segundo a qual os cientistas são biopiratas em potencial. Nós já perdemos muito tempo. Se a legislação não for revista rapidamente, o Brasil vai perder o bonde da história nessa área do conhecimento”, adverte o docente.