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Jornal da Unicamp - Junho de 2000

Páginas 12 e 13

SAÚDE

Espelho, espelho meu
Novo ambulatório trata de aneroxia e bulimia nervosas, doenças daqueles que cultuam a magreza em busca de uma beleza que ninguém vê

LUIZ SUGIMOTO

Lá se vão muitos quilos desde Rita Rayworth e Marilyn Monroe, para nostalgia e preocupação dos pais das meninas de hoje, filhas que substituíram no espelho aquelas deusas carnudas pelas modelos ossiformes que agora brilham nas passarelas. Nesses tempos em que o magro virou belo, jovens, adolescentes e mesmo crianças mostram-se obcecadas por perder peso. Deixam de alimentar-se e lixam-se para a saúde, submetendo o corpo a conseqüências que podem começar com fraqueza e tontura, passar por espasmos musculares e distúrbios cerebrais, até chegar ao extremo da morte por arritmia cardíaca.

A anorexia nervosa e a bulimia nervosa são definidas como transtornos alimentares. A primeira, antes considerada doença rara, já atinge de 0,5% a 1% da população jovem; a segunda, de 1% a 2% desta mesma faixa etária. Os pacientes são mulheres na proporção de 10 por 1. Embora esta incidência indique o fator estético como principal motivador, não se deve desconsiderar os fatores orgânico e psicológico. Em geral, todos esses fatores agem em conjunto como predispositores, precipitadores e perpetuadores dos transtornos alimentares.

O primeiro critério diagnóstico para anorexia nervosa é o peso, 15% abaixo do normal em relação a idade e altura. A pessoa tem medo intenso de engordar e, mesmo muito magra, acha que continua gorda; implica com partes do corpo, como quadril e abdômen; mulheres apresentam quadro de amenorréia (ausência de menstruação). Há dois subtipos de anorexia nervosa: a restritiva, em que o paciente come cada vez menos, diminuindo inclusive a ingestão de água; e a compulsão periódica/purgativa, quando, além de restringir sua alimentação, o doente envolve-se regularmente em um comportamento de comer compulsivamente ou de purgação (auto-indução de vômitos ou uso indevido de laxantes, diuréticos ou enemas).

A bulimia nervosa difere da anorexia no peso do paciente - que em bulímicos é normal ou um pouco acima da média. Seu maior sintoma é a compulsão alimentar. A pessoa ingere grande quantidade de comida em período muito curto, sequer sentindo o sabor, e prefere alimentos bastante calóricos e fáceis de engolir, como doces. Geralmente, come às escondidas, sofre com sua falta de controle e acha que não será feliz enquanto não estiver magra. Para aliviar a culpa faz uso de métodos purgativos - laxantes, diuréticos, vômitos - e esmera-se em exercícios físicos exagerados, durante várias horas por dia.

Um terceiro tipo de transtorno alimentar, o do comer compulsivo, foi incluído recentemente na literatura médica. Atinge aqueles que demonstram a mesma compulsão, mas nada fazem para compensá-la, sendo por isso freqüentemente obesos.

Ambulatório – O Ambulatório de Transtornos Alimentares da Unicamp está funcionando desde fevereiro deste ano, no Hospital das Clínicas. O atendimento é feito por uma equipe multidisciplinar formada por Daphne Marussi e Maria Marta de Magalhães Battistoni, do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da FCM, e pela nutricionista Daniela Oliveira Magro, havendo a colaboração de médicos e pediatras do HC para tratamentos orgânicos.

Por enquanto, o Ambulatório assiste somente oito casos, mas Daphne Marussi afirma que a demanda é muito maior, mesmo se limitada à comunidade universitária. "Dificilmente a pessoa admite que sofre de transtorno alimentar. Em geral, sente-se envergonhada e é capaz de esconder a doença por longos períodos. Acaba procurando ajuda médica por pressão de familiares e amigos, quando o quadro está avançado, com perda importante de peso ou compulsões e purgações diárias. Nosso objetivo é identificar a doença e iniciar o tratamento o mais precocemente possível, o que melhora muito o prognóstico desses pacientes".

O aumento na incidência a partir dos anos 70, quando começou-se a exigir um corpo magro, mostra o peso dos padrões estéticos ditados pela mídia. Pesam ainda as exigências da profissão, já que transtornos são comuns não apenas em modelos, mas também em jóqueis e bailarinas, por exemplo. Outra decorrência desta associação da magreza com beleza, sucesso e felicidade, são os exercícios exagerados para controlar o peso, aos quais a mulher é mais induzida, enquanto o homem os utiliza no contexto esportivo.

A família – A questão cultural pesa muito, mas não é a única causa. O registro das doenças em populações orientais, onde esta preocupação estética é menor, denuncia também os fatores biológicos e psicológicos. Por isso, segundo Maria Marta Battistoni, a dinâmica da família é outro aspecto a ser avaliado. "Em muitas famílias os papéis de pai, mãe e filho não são claros, o que dificulta a necessária diferenciação entre os membros. Aparentemente tudo pode estar bem porque não se toca em certos assuntos. Mas as angústias, os conflitos e as insatisfações pessoais não expressos por palavras às vezes se manifestam em uma ‘somatização’ – mecanismo inconsciente que faz o corpo adoecer devido a carências de ordem emocional. A anorexia e a bulimia podem ser compreendidos dessa forma e ser expressões de conflitos emocionais dentro do lar. Queremos atuar também nessas famílias, pois o problema pode estar mais nos pais do que na filha anorética".

Daphne Marussi informa que uma percentagem mínima da população jovem é naturalmente magra e que os demais não podem se comparar a esta minoria. Cada um tem seu peso determinado geneticamente. Se o peso determinado para a pessoa é 60 kg, o organismo trabalhará para que ele seja mantido: comendo um pouco mais, o metabolismo vai se acelerar, de forma a queimar mais energia; comendo menos, o metabolismo se tornará lento. "Ninguém conseguirá ficar abaixo do peso por muito tempo porque o organismo se defenderá contra isso. Por isso, às vezes, a anoréxica desenvolve comportamento bulímico, comendo compulsivamente. É uma forma de o organismo armazenar energia".

A equipe oferece acompanhamento psicológico individual ou grupal para os pacientes, já que, segundo Maria Marta, são evidentes e mesmo dramáticas as alterações que apresentam na auto-imagem, auto-estima, no lidar com os sentimentos e no inquietante comportamento autodestrutivo: "A pessoa pode estar magérrima, mas vê na dobra de pele mais uma gordurinha para queimar. Ela maltrata a si mesma, buscando uma beleza que ninguém mais está vendo".

O corpo que sofre

O Estudo de Minesota, realizado na década de 60, possibilitou que convocados para a Guerra do Vietnã optassem por se sujeitar a pesquisas científicas, ao invés de serem enviados ao front. Homens física e mentalmente saudáveis tiveram a alimentação restringida em 50%, avaliando-se então as reações. No aspecto emocional, eles ficaram deprimidos, com ataques de irritação e ansiedade, além de apresentarem dificuldades de concentração, compreensão e julgamento. Fisicamente, reclamaram de desconforto gastrointestinal, insônia, dor de cabeça, hipersensibilidade a ruídos, alteração visual e queda de cabelo. Em relação à sociabilidade, isolaram-se e demonstraram menos interesse sexual.

Os sintomas acima são praticamente os mesmos da aneroxia nervosa, mostrando que a grande maioria das reações observadas nesta patologia é conseqüência da desnutrição. O tratamento dos transtornos alimentares baseia-se numa perspectiva multidisciplinar - médico, psicólogo e nutricionista. Os resultados a longo prazo (30 anos) dividem-se em dois pólos distintos, quase sem meio termo: a cura ou a evolução para a morte. Quem alcança a cura necessita sempre de acompanhamento, a exemplo dos alcoólatras e drogaditos, pois há risco de recaída. A mortalidade pode chegar a 20% dos casos.

Os detalhes sobre complicações resultantes dos transtornos alimentares, fornecidos por Daphne Marussi, são assustadores. Quem se recusa a comer sofre os efeitos da própria desnutrição (cansaço, fraqueza, queda de cabelo), vindo depois as cólicas e problemas psicológicos, e muito freqüentemente a arritmia, que por ser imperceptível significa risco de morte súbita.

As conseqüências são mais graves nas pessoas que purgam. O excesso de vômito leva ao aumento da acidez gástrica, evoluindo para gastrite ou úlcera; estando o esôfago despreparado para receber tanto ácido, pode haver esofagites, erosões de boca e perda de dentes. Com o tempo, as glândulas parótidas incham, alterando o formato do rosto, o que é um agravante emocional para quem se preocupa tanto com a aparência.

O uso de laxantes também não resolve. Eles alteram somente a quantidade de água no organismo, o que não traz perda de calorias; para impedir a absorção de alimentos precisariam agir no intestino delgado, não no intestino grosso. Daphne discorre ainda sobre perda de sódio, potássio e cloreto, constipação intestinal, alteração do rim, alterações cerebrais, espasmos musculares e, no caso da bulimia, sobre dilatação do estômago, com possível ruptura do órgão durante uma compulsão alimentar.

Alface e muita água

Investigações sobre a dieta de uma doente com anorexia indicam que ela ingere, em média, entre 200 e 300 calorias por dia. De acordo com a nutricionista Daniela Oliveira Magro, uma mulher dentro dos padrões normais, com 60 quilos de peso e 1,60m de altura, necessita de 1.500 calorias/dia. Para conseguir o preenchimento gástrico, a anoréxica toma diariamente pelo menos cinco litros de água.

"Ela coloca uma folha de alface no prato, corta em pedaços bem pequenos e fica mastigando por muito tempo, intercalando as garfadas com água. Se juntar uma fatia de queijo, levará até duas horas para almoçar. É a forma que encontra para ingerir um volume bem pequeno de alimento", explica Daniela. "Em um mês, no máximo, já serão visíveis alterações como tontura e queda de cabelo".

A educação (ou reeducação) alimentar é a primeira preocupação da equipe do Ambulatório de Transtornos Alimentares. Os profissionais precisam estabelecer uma relação de confiança com o paciente se quiserem obter algum sucesso. "Para quem sofre dessa doença, a comida é uma coisa muito complicada, da qual quer distância. É inútil impor dietas ou regras rígidas", acrescenta a nutricionista.

A princípio, o anoréxico recebe apenas o que gosta de comer, tendo sua dieta planejada e fracionada de forma a se alimentar várias vezes ao dia, em pequenas quantidades. Aos poucos, inclui-se a quantidade ideal de nutrientes. "Uma paciente ficou sem arroz e feijão por oito meses, comendo apenas queijo, pão, alface e melancia", lembra Daniela.

Os profissionais do HC também testemunham relações bizarras com a comida. Há quem colecione receitas, apesar da aversão a alimentos. Outros abrem e fecham a gaveta 15 vezes, imaginando queimar calorias. E muitos têm hábito de levar doces na bolsa, quando não escondem salgados no armário do quarto até que apodreçam.

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