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Jornal da Unicamp - Junho de 2000

Páginas  4 a 11

IDÉIAS
O ódio como
motor da
história
Colóquio reúne na Unicamp grandes especialistas e indaga o papel do ressentimento nos fatos históricos, que levou ao surgimento de movimentos como o Nazismo

José Pedro Martins

Um dos fenômenos sociais mais marcantes do final do milênio no planeta é a erupção, às vezes de forma violenta, de movimentos nacionalistas aparentemente anacrônicos com os princípios de modernidade e de respeito aos direitos humanos cultuados no contexto da globalização. Estes movimentos emergem no mesmo momento em que estão no auge o individualismo exacerbado e a crise de solidariedade como marcas predominantes das sociedades ocidentais.

Pois qual seria a gênese desses fenômenos sociais que têm intrigado políticos, jornalistas e intelectuais de vários ramos do pensamento? No limite extremo, esses movimentos, em geral alimentados pela xenofobia e pelo racismo, e que têm inquietado sobretudo o cenário europeu, podem se constituir na ponta de um iceberg de um fenômeno muito mais amplo e perigoso, semelhante ao próprio nazismo?

Estas foram algumas das múltiplas indagações formuladas a partir do Colóquio Internacional "Memória e (res)sentimentos: indagações sobre uma questão sensível", realizado de 29 de maio a 2 de junho, no Centro de Convenções da Unicamp. O Colóquio foi promovido pelo Núcleo de História de Linguagens Políticas: Razão, Sentimentos e Sensibilidades, vinculado ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. O evento teve o apoio institucional da Capes, CNPq, FAEP, Fapesp e Banespa.

O Colóquio foi o terceiro encontro organizado por um grupo de pesquisadores sociais, basicamente da Unicamp e da Universidade de Paris I, que há dez anos reflete sobre a importância dos sentimentos – e também dos ressentimentos – para o estudo da história, em particular da história política. Esse terceiro encontro também foi idealizado em função do momento de lembrança dos 500 anos de presença européia no Brasil e, por isso, em vários momentos do Colóquio foram discutidas as influências das tramas da memória, dos sentimentos e dos ressentimentos na formação da identidade brasileira, ou pelo menos na formulação das várias interpretações de intelectuais sobre o que seria essa identidade brasileira.

Sob a coordenação de Maria Stella Martins Bresciani, do IFCH-Unicamp, e de Claudine Haroche, do CNRS, da França, o Colóquio Internacional teve a participação de especialistas de várias Universidades do Brasil, da França, da Itália e dos Estados Unidos. Uma participação especial, e carregada de enorme peso emocional, foi a de Pierre Ansart, professor da Universidade de Paris VII e que tem servido como um verdadeiro "guia espiritual" para o grupo internacional que há uma década se debruça sobre a complexa, rica e inesgotável relação entre memória, (res)sentimento e história.

História e memórias do ressentimento – Este é o título da exposição de Pierre Ansart que abriu o Colóquio na manhã de 29 de maio e praticamente deu o tom das discussões das sessões seguintes. O estudioso francês acentuou que a reflexão sobre a importância da memória e dos sentimentos e ressentimentos na construção da história dos povos tem sido enriquecida com a contribuição da Psicologia Social, da Psicanálise e de outras ciências relativamente recentes.

Para Ansart, pesquisar sobre a influência especialmente dos ressentimentos na trama da história é algo muito difícil, pois em geral evoca "a parte sombria, aterrorizadora da história". Da mesma forma, entende que podem estar em jogo as "reticências" presentes na trajetória de vida do próprio pesquisador, em termos de sentimentos como "ódios, invejas, desejos de vingança e o próprio fantasma da morte".

O professor da Universidade de Paris VII acredita que importantes contribuições para a reflexão sobre o ressentimento foram dadas por alguns nomes capitais da cultura ocidental, como Freud, Tocqueville, Nietzsche, Max Scheler e Hannah Arendt. Ansart destaca em especial Nietzsche, e sobretudo em sua "Genealogia da Moral", de 1887.

Ansart nota que, com diferentes gradações, o ressentimento aparece em vários episódios cruciais na história da humanidade, como nas disputas entre os religiosos judaico-cristãos e o Império Romano, nos múltiplos levantes de escravos contra seus dominadores e em momentos como a Revolução Francesa.

Na sua avaliação, o ressentimento manifesta-se de várias formas, como na hostilidade em relação ao chefe, no "ódio interiorizado de si mesmo" e no ódio da oligarquia em relação aos seus subordinados. Por envolver o "entrecruzamento de vários fios", Ansart sustenta que, basicamente, "não se pode falar de um ressentimento, mas dos ressentimentos". Daí a importância, em sua opinião, da reflexão de fato multidisciplinar sobre o ressentimento.

Outro aspecto ressaltado por Ansart é em relação às várias formas de manifestação dos ressentimentos, e neste âmbito ele faz algumas comparações com os estudos de Freud sobre o ciúme. Como no caso dos ciúmes, sublinha, existem ressentimentos que não são exteriorizados. Existem ainda os ressentimentos delirantes, que podem não levar a uma ação, mas também existem os ressentimentos, eventualmente de natureza coletiva, que acabam sendo expressos, sim, de modo muito violento.

Uma das fontes de ressentimento acentuadas por Ansart, e que diz respeito diretamente aos tempos modernos, é a sensação de impotência em relação a uma situação de manifesta crueldade ou desumanização. Essa sensação, observa, acaba de alguma forma traduzindo-se em ações, e muitas vezes de modo bastante destruidor.

No momento de transição para um novo século e um novo milênio, o grande desafio para as sociedades que se pretendem democráticas, para Pierre Ansart, seria nesse sentido a construção de uma gestão inteligente dos ressentimentos. O pesquisador francês considera ser esse um desafio inadiável na atualidade, considerando fatores como a crise dos Estados nacionais no teatro da globalização e a crise do Estado de Bem-Estar Social. Citando Max Scheler, lembra Ansart que mesmo as sociedades consideradas democráticas podem ser mais criadoras de ressentimento do que sociedades não-igualitárias.

Fontes contemporaneas de ressentimento – A importância da construção de uma "gestão inteligente dos ressentimentos", na expressão de Pierre Ansart, ficou ainda mais evidente pela exposição de Eugène Enriquez, também professor em Paris VII. Ele reiterou que a sociedade moderna, ocidental e industrial, é uma fonte permanente de situações que podem levar ao ressentimento. Na sociedade moderna, salienta, o ser humano é muito endeusado, e por isso ele passa a sentir "um peso muito grande nos ombros". Além disso, nota que, no mundo atual, "o perigo pode aparecer em qualquer lugar, de uma central nuclear, um megaincinerador ou de um computador atacado por um vírus", mesmo que ele se chame I love you.

O atual, diz Enriquez, é um mundo em que "é cada vez mais fácil ficar desconfiado, há um conflito muito grande de informação e desinformação, os meios de comunicação divulgam muita informação mas também há muito top secret".

Apesar das críticas da Escola de Frankfurt, diz o pesquisador de Paris VII, "a racionalidade instrumental triunfou" na sociedade contemporânea. Existe hoje um triunfo dos meios sobre os fins. Não se pergunta "por que", mas "como"? As próprias atitudes humanas passam, então, a ser instrumentalizadas, "com todas as próteses possíveis". Existe, ainda, um culto permanente da beleza e da jovialidade no mundo atual, o que também gera ressentimento, acredita Enriquez.

Outra fonte perversa de ressentimento, entende o especialista, é o fato de que, em um mundo teoricamente de igualdades, existe na prática muita competição e, mesmo, o que denomina de "rivalidade mimética, ou a vontade de ter o que o outro tem", o que está na raiz do consumismo e fenômeno da moda. "Isto faz com que todos queiram a mesma marca de tênis, por exemplo", frisa.

Para Enriquez, essas características da sociedade moderna, como o desenvolvimento do narcisismo e da rivalidade mimética, são fontes permanentes de frustração e, claro, de ressentimento. Na sua opinião, constitui um grande desafio recuperar a individualidade humana, para superar tanto o individualismo como o sentimento de apatia que advém da massificação. O individualismo exacerbado e a apatia – que leva à falta de sensibilidade – são, para o estudioso, perigosas fontes de ressentimento na sociedade contemporânea.

Ressentimento identitário – Uma advertência: as explosões típicas de ressentimento, como os nacionalismos que têm ressurgido com força na Europa, não são fenômenos pontuais, que podem ser limitados a um determinado momento histórico. Em geral, os ressentimentos são cultivados durante muitas gerações e ficam à espera do momento político propício para aflorar. Este foi, em síntese, o núcleo da exposição de Yves Déloye, da Universidade de Paris I, abrindo o painel "Memória e história: uma questão atual", na tarde de 29 de maio.

Para Déloye, um caso ilustrativo é o do ressentimento gerado pela secularização da sociedade francesa, após a Revolução de 1789. A radical separação do Estado, após a Revolução, levou a uma profunda crise de identidade na Igreja francesa, acredita o estudioso. Para ele, esta é a origem de um típico "ressentimento identitário", que a partir daí passou a ser cultivado sistematicamente pela Igreja na França.

Déloye cita a forte oposição da Igreja à política educacional imprimida pela República no final do século 19 e que visava essencialmente a laicização do ensino. Uma das medidas da hierarquia religiosa foi elaborar manuais dirigidos principalmente à população das aldeias, onde a laicização do ensino passou a ser submetida a verdadeiros "autos da fé".

É em função desse processo de alimentação histórica do ressentimento que, na avaliação de Déloye, casos como o do governo acentuadamente ultra-católico de Vichy, durante a 2a Guerra Mundial, não podem ser vistos como episódios isolados na história de um país como a França. Eles são frutos, diz o especialista, desse ressentimento identitário nutrido historicamente e que pode se transformar em poderosa força de mobilização política.

A ascensão do nazismo – O maior exemplo histórico de exploração política do ressentimento, claro está, é o da perseguição aos judeus – e a outros grupos igualmente estigmatizados – na Alemanha nazista, ponto fulcral para a eclosão da 2a Guerra Mundial, maior manifestação de barbárie na história humana até o momento. A gênese do nazismo foi, obviamente, discutida no Colóquio Internacional na Unicamp, como na conferência de Claudine Haroche, "Elementos de uma antropologia política do ressentimento", na tarde de 1o de junho, véspera do encerramento do encontro.

Ela iniciou a exposição citando a afirmação, no final dos anos 80, de Norbert Elias, para quem ainda faltava muito a ser dito sobre o nazismo. De fato, para Claudine Haroche, diretora de pesquisas do CNRS, refletir sobre fenômenos como esse em geral significa tentar desvendar a face mais obscura das sociedades. Nestes casos, sentimentos, comportamentos físicos e psíquicos pertencem às zonas cinzentas que, eventualmente, estão localizadas "no limite do intangível".

Um dos ingredientes que devem ser considerados, para Claudine, é o niilismo do povo alemão, destacado por Strauss em uma conferência pronunciada em 1941, em Nova York, na Escola de Pesquisas Sociais. Para Strauss, o niilismo alemão é fruto de uma reação ao espírito dos séculos 17 e 18, os "séculos das luzes", quando particularmente a Revolução Francesa teria "rebaixado as exigências morais da sociedade".

Teria havido, então, uma recusa às regras de comportamento inspiradas nas idéias de civilização, sociabilidade e satisfação dos direitos políticos e jurídicos propostos pela Revolução Francesa. Pelo contrário, o niilismo alemão propugnava a anulação das individualidades em nome da coletividade. Assim teria nascido um "amor autodestrutivo, um ódio a si mesmo".

Outro elemento indicado por Claudine, para a ascensão do nazismo, é a queda de status da classe média alemã após a 1a Guerra Mundial. Citando Erich Fromm, a pesquisadora assinala que, com a diminuição de status, ocorreu o ódio em relação ao grupo social, no caso os judeus, que pelo contrário estava ascendendo na hierarquia social – um mecanismo que hoje pode ser comparado ao ódio a estrangeiros em vários países, em particular na Europa.

Em reação à perda de status e de poder, os indivíduos passaram, na Alemanha nazista, a "aceitar a sua insignificância pessoal", derivada do niilismo, para que pudessem participar "de uma força superior e portanto gloriosa". Com a anulação das individualidades, nota Claudine Haroche, e citando Hanna Arendt, "todos os seres humanos se tornam supérfluos". O caminho para o genocídio estava aberto, fruto também da "incapacidade de pensar", que igualmente leva à submissão absoluta à autoridade.

Em suma, o desprezo por si mesmo e a concomitante mitificação da coletividade, levando à "fabricação de uma identidade grandiosa a partir de indivíduos inferiorizados", parece estar na origem dos vários totalitarismos, do qual o nazismo foi o exemplo mais cruel. A valorização do indivíduo, o respeito a seus mais íntimos sentimentos, seria por este raciocínio um poderoso antídoto para as sociedades democráticas evitarem a tentação do totalitarismo e de suas mais nefastas degenerações.

O Brasil e o seu baú de ressentimentos
Neste painel, a construção da identidade brasileira, eterno objeto de estudo dos nossos intelectuais, é cerzida de ódios vários

Realizado no momento em que são lembrados os 500 anos de chegada da esquadra de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, o Colóquio Internacional Memórias e (res)sentimentos: indagações sobre uma questão sensível não poderia deixar de ser um espaço para reflexões sobre vários momentos e episódios relacionados à construção da identidade brasileira e, também, sobre as próprias interpretações que os intelectuais têm elaborado sobre essa identidade. Não estariam essas interpretações também marcadas por manifestações de ressentimento? Este foi o tom da conferência "Construindo identidades entre sentimentos controversos: Brasil século XX", de Maria Stella Bresciani, professora do IFCH-Unicamp e uma das coordenadoras do encontro. A conferência fez parte do painel "Historiografia e transdisciplinaridade: abordagens e questões metodológicas", o último do Colóquio e que foi coordenado por Claudine Haroche (CNRS).

A reflexão de Maria Stella Bresciani partiu de uma frase do brasilianista Thomas Skidmore, que na sua avaliação adquire uma dimensão especial no momento em que os 500 anos do Brasil têm servido de tema para inúmeros textos, livros e artigos. Diz Skidmore, em artigo de 1994 : "Há mais de um século intelectuais brasileiros agonizam sobre a identidade nacional de seu país".

Na avaliação de Skidmore, comentada pela professora da Unicamp, a razão do fracasso da interpretação sobre a identidade brasileira estaria "na incapacidade intelectiva da elite pensante do país, aprisionada no círculo vicioso da busca de uma origem mítica fundada nas três raças – oscilando entre a inferioridade mestiça do povo, para autores de finais do século XIX e primeiras décadas do XX, e a representação otimista de uma democracia racial a partir de Gilberto Freyre – e na recusa de relacionar nossa identidade com a imensa distância separando as classes sociais, ou então, como (Skidmore) sugere, no final do artigo, com a questão de gênero".

Maria Stella indica, então, alguns dos momentos em que ficou mais evidente a preocupação da intelectualidade brasileira com a busca de uma identidade nacional, como nas décadas subseqüentes à Independência em 1822, quando a exigência de representação simbólica da nova realidade política frente à ex-metrópole levou por exemplo à criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Novos estímulos para a busca da identidade brasileira, segundo a historiadora, foram gerados, entre o final do século XIX e início do XX, no cenário da "onda política dos nacionalismos, formada no confronto com a Internacional proletária e a rivalidade sem tréguas entre os países europeus, aí incluídos os novos avanços colonizadores".

A especialista do IFCH indaga-se se a persistência dessa busca de uma identidade nacional não estaria "fechada num círculo vicioso formado pela forma como se buscou e se busca configurar essa identidade". Ou seja, a chave para o entendimento da persistente afirmação do inacabamento da nação e da nacionalidade não estaria, nesse sentido, na forma como foi feita a "escolha de um dado procedimento de retorno às origens, no qual a condição tropical do território e as características do povo colonizador nos fariam surpreender exatamente lá um mau começo que teria se colado a nosso destino e nos traria aprisionados"?

Para Maria Stella, as diversas interpretações sobre a identidade brasileira têm sido, de fato, marcadas por lugares comuns que, de alguma forma, sempre apontam para esse "mau começo", no qual estaria "colado a nosso destino e nos traria aprisionados". Um desses lugares comuns, salienta, é a "determinação do meio sobre o homem". No caso, tratar-se-ia de um meio adverso, marcado sobretudo pela presença da floresta tropical inóspita.

Outros lugares comuns seriam "as características das raças formadoras e a persistente alienação de nós mesmos". A historiadora acredita que o quadro pessimista desenhado sobre a base desses três lugares comuns "compõe no conjunto uma avaliação carregada de sentimento negativo em relação ao colonizador, que a despeito da não intencionalidade, nem isso nele há, trouxera consigo e deixara-nos como herança o pecado de origem que carregamos, eternamente ressentidos".

Mas, pergunta Maria Stella Bresciani, poderiam os interpretadores do Brasil ter evitado as amarras em que se encontram quando estão refletindo sobre o país sem deixar se envolver pela poderosa persuasão emanada "das imagens da evidente diversidade geográfica e climática?" E mais, como esses interpretadores poderiam evitar a armadilha "sem abandonar a noção de origem ou de raízes, concepção telúrica de inspiração romântica, carregando em si ainda a disputa entre a universalizante idéia de civilização e a particularizante idéia de cultura?" A armadilha interpretativa, completa Maria Stella, é marcada ainda pela união das concepções mesológicas "às teorias estéticas e éticas setecentistas persistentes, mesmo que de forma subliminar, nos textos nossos contemporâneos".

Sem a ruptura com essas concepções, acredita a especialista, restou aos interpretadores, de fato, a volta recorrente aos começos, "a eterna perseguição ao pecado original em narrativas permeadas de forte apelo emocional cujo traço mais marcante é sem dúvida o ressentimento".

Insustentável leveza – No mesmo painel de encerramento, Roberto Vecchi, da Universidade de Bolonha, falou sobre "A insustentável leveza do passado que não passa: sentimento e ressentimento do tempo dentro e fora do cânone modernista".

Ele retomou a discussão sobre a influência do ressentimento na interpretação sobre a identidade nacional, à luz do conceito que assume na modernidade. Disse Roberto, abrindo sua reflexão: "Enquanto sentimento (problemático) da modernidade, assim como o recorta e refunda Nietzsche na Genealogia da moral, o ressentimento talvez proporcione um questionamento original e originário sobre a própria modernidade, arrastando consigo inquietações profundas e em nada pacíficas que nos parecem até de algum modo aporias: será que o ressentimento como sentimento do dominado é próprio de uma determinada fase da condição colonial ou do processo de superação dessa condição? E de que modo a passagem da colônia para a nação e a construção simbólica e ideológica da nacionalidade precisam do ressentimento para forjar um seu próprio repertório auto-representativo de signos e imagens, em particular históricos, fundados sobre a diferença ou uma pseudodiferença? E se assim for, o ressentimento de que estamos falando é, no fundo, a metáfora de uma condição psicológica ou, pelo contrário, possui o potencial de ferramenta crítica transdisciplinar, ainda que por um viés metafórico?"

Para o professor da Universidade de Bolonha, uma obra em particular resume o esforço, evidente na década de 1930 e por entre os "meandros da modernidade brasileira", por se encontrar "uma metáfora condizente de nação". Trata-se, na avaliação do conferencista, do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.

Comenta Robert Vecchi sobre a obra: "Livro fundamentalmente de metáforas, texto fundador, pela idéia seminal de formação que define e aprofunda, da tradição crítica fundamental do século encerrado, Raízes é um marco divisório que se recorta justamente a partir da confluência das duas tradições, a da modernidade precoce e a do Modernismo, que tiveram um posicionamento próprio no que diz respeito ao recurso ao ressentimento na formação de estéticas e sensibilidades sentidas como modernas".

O conferencista entende que Sérgio Buarque de Holanda encontra na metáfora "o melhor instrumento para dissecar o processo de colonização do Brasil desde as origens, reconstruir a má formação do País e portanto compreender a forma do presente, a pertinácia de um resíduo duro do passado no presente que torna até irônicas as duas fórmulas paratextuais-metafóricas com que intitula os dois últimos capítulos do livro Novos Tempos e Nossa Revolução.

O livro de Sérgio, sustenta Vecchi, é de "uma violência inexorável na representação do passado que não passa das elites cordiais que obstaculizam na modernidade a formação do espaço público, mas, apesar disso, não há nele rastro de ressentimento nem histórico, nem estético".

Em Raízes, acrescenta, a fratura com o lado ressentido modernista "se dá pela crítica metafórica a uma narração nacional (portanto uma metáfora) que sacraliza o nexo com a modernidade e a modernização: a revolução técnica não necessariamente produz modernidade mas poderia contribuir também com uma expressão oximórica querida de Euclides da Cunha, a construir ruínas". No livro de Sérgio, enfim, "a permanência do arcaico no âmago dessa modernidade sub espécie da cordialidade desvenda o passado que não passa, o passado no presente, a desordem na ordem, o arcaico no moderno".

A outra conferência do último painel do Colóquio Internacional foi a de David Konstan, da Brown University. Ele falou sobre Resentment: The History of an Emotion.

Natureza e civilização – Ao longo do Colóquio, foram discutidos vários momentos do processo de busca de formação da identidade nacional. Muitos desses momentos, na linha apontada por Maria Stella Bresciani, são pontuados de fato por manifestações de ressentimento. As exposições dos conferencistas também refletiram sobre as diferentes maneiras pelas quais o estudioso pode abordar a história, a partir de elementos como discursos políticos, relatórios de viagem e a produção literária.

Foi o caso do painel "(Res)sentimentos e construção de identidades históricas", coordenado na tarde de 31 de maio por Carlos R.Galvão Sobrinho, do IFCH-Unicamp. No painel, em "Natureza e civilização: sensibilidades românticas em representações do Brasil no século XIX", Márcia Regina Capelari Naxara, da Unimep, sustentou que a intenção "de inserir a nossa história na tradição e desenrolar da história ocidental solicitava a elaboração e o reconhecimento de uma identidade, cuja construção remetia ao passado e à origem, pela necessidade de narrar e estabelecer vínculos, tanto com o passado colonial, a metrópole portuguesa, ponte para a civilização, com o qual se procurou de alguma forma conciliar (seja pensando a continuidade ou a ruptura), como às origens raciais, ou multirraciais, que também se procurou compreender e explicar para, através do conhecimento, dominar e adquirir segurança no projetar o futuro".

Para Márcia Regina, alguns elementos foram particularmente importantes na análise para a apreensão intelectual do Brasil e a construção da narrativa de sua história. Esses elementos, acredita, estão "sempre vinculados à aproximação ou distanciamento da natureza ou da civilização: a natureza em geral; a natureza humana em particular; a relação do homem com a natureza; a dos homens entre si, em meio à natureza".

A importância da natureza e do relacionamento do ser humano com essa natureza, para a interpretação e construção da identidade brasileira, sofre, para a especialista, a influência do espírito da época, na virada dos séculos XVIII e XIX. Ela cita a respeito Keith Thomas, que data da proximidade do ano 1800 como o momento em que "o mundo não podia mais ser visto como feito somente para o homem, e as rígidas barreiras entre a humanidade e outras formas de vida haviam sido bastante afrouxadas".

Uma poderosa influência, em particular, nas formas de avaliação do relacionamento do ser humano com a natureza foi exercida, nota Márcia Regina Naxara, pelas teorias de Charles Darwin, reunidas em A Origem das Espécies, de 1859. Essa obra, entende, "contribuiu para, mais uma vez, promover alteração radical da posição do homem no Universo, na medida em que deixou de existir qualquer razão para se pensar uma ‘criação especial para o homem’, que passou a compartilhar sua ancestralidade com os animais".

Como fruto da revolução na forma de sentir o relacionamento com a natureza, os trópicos, por exemplo, foram adquirindo significados míticos e simbólicos. É o caso, para a professora da Unimep, do Preâmbulo de 1907 de Euclides da Cunha para a obra O Inferno Verde, de Alberto Rangel. Diz a historiadora: "Referindo-se especificamente à Amazônia, Euclides nos dá conta da impossibilidade de conhecimento da floresta tropical, da sua magia e magnificência, do assombro que provoca, mesclando temor e curiosidade".

Ao lado da natureza, assinala Márcia Regina Naxara, influiu para a interpretação do Brasil a questão racial, em especial ao longo do século XIX, quando houve "uma procura do homogêneo na heterogeneidade aparente". Data desse século a maioria das teorias que condenavam o mestiçamento do povo brasileiro, nascendo daí a indicação do País como uma "Terra com uma população que se constituiu mestiça e cruzada, carregando os estigmas daí decorrentes, frente ao conhecimento e sua divulgação, às representações e ao imaginário do mundo ocidental".

O século XIX brasileiro, portanto, acrescenta a especialista, teve como tônica a(s) tentativa(s) de construção e visualização da nação: "Construção ética e estética, fundamentalmente política, que precisava ir além da questão material, ligada ao progresso da produção e ao crescimento econômico, mas que esbarrava na sua própria constituição, no conhecimento da história do país e de seu povo (impossível pensar uma nação com identidade própria sem pensar nas origens e no povo que a forma, enfim, na sua história e seus mitos fundadores). O Brasil sendo visto e se vendo como um País sem povo, ou um povo ao qual faltava a identidade para constituir e formar uma nação moderna".

A presença da natureza continua sendo ostensiva mesmo no século XX, como na obra de Alfred Döblin, o escritor judeu-alemão que fugiu dos horrores do nazismo e passou por vários países. Ele foi o tema, no mesmo painel, de "Literatura e engajamento: Alfred Döblin", conferência de Marion Brepohl de Magalhães, do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná.

Sem conhecer o Brasil, Döblin escreveu a trilogia Amazonas, composta por Viagem ao País sem Morte, O Tigre Azul (escritos entre 1935 e 1937) e Nova Floresta (escrito em 1947). No primeiro livro, salienta Marion, Döblin "descreve o mundo dos índios e o mito do País sem morte; segundo tal lenda, trata-se de uma terra paradisíaca que só é alcançada após a morte. Ele se ocupa ainda das amazonas, da civilização inca e dos costumes e crenças indígenas. Quando neste mundo os três primeiros brancos chegam, inicia-se o processo de devastação".

No segundo livro, Tigre Azul, que "segundo a lenda significa um espírito mal que tudo destrói", Döblin trata das reduções jesuíticas. "Nestas, toda a riqueza é dividida eqüitativamente. Sua prosperidade é inclusive maior do que aquelas onde os índios era utilizados como mão-de-obra escrava".

Os dois livros, lembra Marion, foram redigidos no momento em que organizações como a "Liga para a Colonização judaica" procuravam criar um território para o povo judeu fora da Europa. O Brasil amazônico aparece, assim, em Döblin, como um lugar mítico, possível para a concretização da utopia judaica.

Já o terceiro livro da trilogia, A Nova Floresta, tem outra estrutura. Diz Marion: "A alegorização da floresta é outra. A nova floresta não é mais a amazônica, mas a Alemanha nazista, espaço para onde se desloca a representação da ação. A dimensão episódica dos fatos é abandonada em favor de temporalidades difusas. Além disso, à diferença dos dois primeiros livros, Döblin não trabalha com sujeitos coletivos: seus personagens são indivíduos atomizados, com trajetórias de vida desnorteadas, e mesmo os vínculos interpessoais são efêmeros e desprovidos, com exceção das mulheres, de vínculo afetivo".

Logo na primeira cena é estabelecida, segundo a conferencista, a analogia entre a velha e a nova floresta, entre os conquistadores do século XVI e os dominadores contemporâneos. Os nacional-socialistas, claro, são os "novos conquistadores". Esse trecho do livro de Döblin é um resumo dessa nova invasão: "O que antigamente se fazia com cães farejadores e armas de fogo contra os nativos nus armados apenas de arco e flecha, fazem hoje os discursos, o jornal, o rádio, a polícia, a prisão. Confundem-se os pensamentos das pessoas, até que as idéias se desorientem por completo, e aí eles as têm como loucos mansos enjaulados". No mesmo painel, Sandra J.Pesavento, do IFCH e UFRGS, apresentou o tema "Ressentimento e ufanismo: sensibilidade do Sul profundo".

Ruínas na literatura – Se o século XIX foi especialmente marcado pela busca da construção da identidade brasileira, uma conseqüência lógica do processo de Independência e diferenciação da ex-metrópole coube a Euclides da Cunha no momento de transição para o século XX, praticamente fundar uma nova forma de concepção do País. É do que se trata a conferência "Literatura em ruínas ou as ruínas na literatura?", que o professor Edgar Salvadori de Decca, da Unicamp, proferiu no Colóquio Internacional, no painel "Espaço, tempo, memória, história", coordenado na manhã de 31 de maio por Márcia Regina Naxara, da Unimep.

Para o historiador, Euclides da Cunha foi essencialmente marcado pela relação de ambivalência "das ruínas com a modernidade". Momentos expressivos da obra de Euclides, nota, são associados às ruínas sobre as quais se construiu o país, como no caso das catas de ouro em Minas Gerais, dos seringais na Amazônia e das fazendas de café do decadente Vale do Paraíba. "A ruína – salienta Edgar de Decca – desvela o modo como o olhar do civilizado a observa, e ela é assustadora na obra de Euclides porque está a todo o momento devolvendo para ele o outro que ficou à margem da história."

Naturalmente, foi a partir das ruínas de Canudos que, em Os Sertões, Euclides da Cunha atingiu o seu ponto máximo como jornalista e escritor, sendo esta a obra capital dessa nova forma de se pensar o Brasil. Neste livro, a ruína adquire "uma dimensão política, na medida em que ela mostra a discrepância entre a idéia oficial de história, do progresso, da república e a brutal realidade destes mesmos sertões".

Além de falar das ruínas da nacionalidade, em contraste com a "máscara de civilidade por trás da qual se escondia, com extrema hipocrisia, a barbárie nacional", Euclides da Cunha também coloca em primeiro plano, com suas obras e em particular com Os Sertões, a própria situação das "ruínas da literatura na virada do século". Ao escolher a prosa literária para falar das ruínas da nacionalidade, Euclides acabou tematizando também "a precariedade das letras nacionais em seus modos de representação da realidade brasileira", conclui o professor da Unicamp.

No mesmo painel, Cecília Helena de Salles Oliveira, pesquisadora do Museu Paulista/USP e do Programa de Pós-Graduação em História Social da USP, apresentou a conferência "Memória da Independência e conformação de espaços celebrativos no século XIX".

Lembra Cecília que os políticos que projetaram o Monumento foram unânimes em afirmar que a razão da existência do majestoso palácio sempre foi comemorar a data de 7 de setembro de 1822, dia em que, conforme diz a história oficial, D.Pedro I proclamou a Independência brasileira às margens do riacho do Ipiranga.

A intenção dos idealizadores do Monumento, e também de outros projetos vinculados à perpetuação, na forma de marcos concretos, da memória do 7 de setembro, teria sido o de "resguardar o episódio e alguns de seus protagonistas do desgaste provocado pelo tempo e pelos conflitos políticos". Os políticos conservadores que idealizaram o Monumento do Ipiranga, e principalmente o conselheiro Joaquim Ignácio Ramalho, presidente da Comissão encarregada das obras, estavam buscando a produção de uma versão sobre o passado que conduziria "à suposição de que, qualquer que fosse a interpretação, a existência ‘objetiva’ do ‘fato independência’ era irretorquível". Isto acontecia, observa a pesquisadora do Museu Paulista, justamente no momento em que os ideais republicanos avançavam e a monarquia, portanto, estava cada vez mais fragilizada.

Posteriormente, segundo Cecília Helena de Salles Oliveira, a interpretação sobre o sentido do Monumento do Ipiranga foi transformada, dependendo dos interesses políticos dos governantes do momento. A pesquisadora cita a respeito Claude Lefort, para quem, na sociedade moderna, "a recriação do passado faz-se enquanto representação mediatizada pela historicidade do momento em que foi elaborada". Ou seja, acrescenta Cecília, "a cada vez que os mortos são ressuscitados, celebram-se aparentemente os mesmos fatos e personagens, mas revestidos de sentidos particulares e inconciliáveis".

Assim é que, depois da Proclamação da República, em 1889, quando o Monumento da Independência foi transformado em Museu Paulista, uma estátua de Marienne – um dos signos mais caros ao republicanismo inspirado na Revolução Francesa – foi colocada ao lado das coleções de ciências naturais e história-pátria abrigadas na instituição. Depois, quando esses republicanos jacobinos perderam espaço, outra modificação profunda, com a substituição da estátua de Marienne pela "imponente escultura" de D.Pedro I em bronze, concebida por Rodolfo Bernardelli.

De qualquer modo, para Cecília Helena de Salles Oliveira, os argumentos utilizados para justificar a construção do Monumento do Ipiranga apontaram, desde o início, para a formulação "de uma leitura particular da história do Brasil e de representações sobre a Província de São Paulo que tiveram, posteriormente, enorme ressonância, principalmente no âmbito dos discursos republicanos de fins do século, entre as quais se encontrava a imagem de que os destinos da nação estavam imbricados aos destinos paulistas".

Ainda no painel, Elizabeth Cancelli, da Universidade de Brasília (UnB), apresentou a conferência "América da (des)ilusão: ressentimento e memória". Ela cita o caso do diplomata italiano Vittorio Emanuele Orlando, que visitou o Brasil em 1920 e elaborou um pequeno texto com as suas impressões de viagem e que está depositado no Arquivo de Estado em Roma. Provavelmente lido no parlamento italiano, o texto, na avaliação de Elizabeth Cancelli, a princípio registra um apelo "que carrega em seu interior, da maneira como é construído, a força e a magia do ressentimento de algo que a Itália, bem como a Europa inteira, tentava – e tenta aparentemente até hoje – negar: o seu lugar na América".

No texto, Orlando faz um paralelo entre a aventura do genovês Cristóvão Colombo – o "primeiro e simbólico emigrado italiano na América", diz o diplomata – e a viagem mitológica de Ulisses, descrita por Dante no 26o canto do Inferno de sua "Divina Comédia". Observa Orlando que, na altura de Gilbratar, a embarcação de Ulisses encontra-se com sua "popa voltada para o nascente e, assim, a proa em direção ao Ocidente, mas ‘inclinando à esquerda e sempre a rumo’: eis então assinalada a direção exata do Sudoeste, que vai de Gilbratar à América Meridional", completa o diplomata. A expedição comandada por Colombo teria seguido, então, a trajetória de Ulisses, recuperada por Dante.

A viagem do genovês teria, desta forma, um caráter absolutamente épico. Diz Orlando, citado por Elizabeth Cancelli: na inexaurível fecundidade do seu gênio, a Itália havia descoberto aquele mundo mediante um seu glorioso filho, primeiro e simbólico emigrado italiano na América que, não pelo seu, mas por outros países, havia lutado, sofrido e vencido".

Em seguida, Orlando registra suas impressões sobre a presença dos emigrados italianos na América: "Em Buenos Aires como em São Paulo, em Porto Alegre como em Ribeirão Preto, em Rosário como em Mendoza, encontramos o mesmo acolhimento de Roma, Milão, Palermo. Ou melhor dizendo, o mesmo recebimento proporcional ao número de pessoas, mas, em solo americano, como aqueles acolhimentos vibram com maior fervor e entusiasmo nas milhares de pessoas que se aproximam como se estivessem se aproximando de um irmão!"

Entretanto, no decorrer do texto, para a conferencista, Orlando indica o emigrado como um elemento de exterioridade, e quando fica evidente o ressentimento: "Ou seja, é o outro, porque já modificado, porque distante da verdadeira Itália. Neste enfoque de Orlando, é o outro já ressentido da distância, mas não é o outro em virtude do abandono sofrido pelo descaso das autoridades e pela diáspora européia do final do século XIX. É o outro apenas porque seu sentido de pertença européia foi modificado: ele afastou-se da família e partiu em direção à antevisão de Ulisses no canto XXVI do Inferno. É o outro, ainda, porque não é um igual: é constituído de ‘almas primitivas’, aliás, algo que se encaixa perfeitamente na construção de Purgatório de Dante Alighieri, porque o purgatório seria, ao mesmo tempo, o local da expiação e o da esperança. Na América, essas almas primitivas, esses ‘sordellos’, a exemplo do conterrâneo que Dante e Virgilio encontraram, estariam passando seu período de purga!"

Outro estrangeiro citado por Elizabeth é o judeu polonês Samuel Rawet, nascido em 1929 e que chegou ao Brasil em 1936. Vencedor de vários prêmios literários, morreu aos 55 anos, em Brasília, "bastante perturbado emocionalmente".

Para a conferencista, o ressentimento é a marca de contos reunidos por Rawet no livro Contos do Imigrante. Diz Elizabeth: "em cada um desses contos, as personagens, todas imigrantes, amalgam-se naquilo que tem em comum: o ressentimento, a ofensa recebida, a mágoa de terem sido abandonadas e a solidão advinda do sofrimento e da diferença".

Tradição e tradicionalismo – Enquanto, no final do século XIX, houve um grande esforço dos políticos paulistas para acentuar a suposta missão histórica de São Paulo na condução "dos destinos da nação", em outras regiões brasileiras apareciam manifestações claras apontando para o desejo de reafirmação dos seus valores próprios. Foi o caso do Movimento Tradicionalista que floresceu no Rio Grande do Sul e hoje ainda mobiliza grande número de pessoas em torno de uma perspectiva: a manutenção das tradições associadas ao gaúcho. Este foi o tom da conferência "Memória, tradição e tradicionalismo no Rio Grande do Sul", de Maria Eunice Maciel, professora de antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O tema foi apresentado no painel "O eu e os outros: direito e/ou dever de memória", coordenado na manhã de 30 de maio por Cristina Lopreato, da Universidade Federal de Uberlândia.

Lembrou Maria Eunice que a primeira Associação Tradicionalista no Rio Grande do Sul – o Grêmio Gaúcho – nasceu em 1898, por inspiração do major João Cezimbra Jacques. Cezimba Jacques era filho de uma família de funcionários e militares, não tendo portanto raízes na zona rural, mas na época a sua cidade, Santa Maria, ainda era uma pequena povoação, com grandes ligações com o meio rural e com as estâncias de criação de gado. Essa convivência com o meio rural "teria possivelmente propiciado a Cezimbra Jacques uma convivência durante a infância e a juventude com os gaúchos e com os peões, e fazendo com viesse a se familiarizar com seus modos de vida".

Ingressando no Exército justamente durante a Guerra do Paraguai, Cezimbra Jacques foi um dos militares fortemente atraídos pelo positivismo no final do século XIX no Brasil. Influenciado por Augusto Comte, ele publicou em 1883 um "Ensaio sobre os costumes do Rio Grande do Sul", em que expõe as suas concepções positivistas sobre a família, a hierarquia social e a tradição.

O positivismo de Cezimbra Jacques, entretanto era um positivismo "à la gaúcha, isto é, uma versão particular do comtismo que existiu no Rio Grande do Sul onde era aproveitado o que interessava à elite no poder e esquecia-se (ou omitia-se) o que não atendia a seus interesses". Reinterpretado às condições locais, o positivismo gaúcho "teve uma grande força no que se refere à política e influenciou, mesmo que de maneira difusa e assistemática, vários aspectos da vida intelectual da região". Um dos aspectos centrais desse positivismo era a valorização da tradição.

A professora da UFRGS assinala que a justificativa para a criação do Grêmio Gaúcho, em 1898, indica alguns dos principais traços e concepções que nortearam o Tradicionalismo daquela época "e que ainda hoje são encontrados, de uma outra forma, no Tradicionalismo atual". Uma das razões para a criação da instituição, segundo o seu idealizador, seria a reação às características de sua época, que seria de "indiferentismo e decadência", e quando as "tradições caíam no esquecimento".

Como os demais positivistas, Cezimbra Jacques defendia, assim, o "progresso", mas que fosse um "progresso" que não rompesse com o passado. Aqui entraria o papel do Grêmio, que seria, nota a professora da UFRGS, muito mais do que formar um museu com peças antigas, mas estimular a "vivência de determinados costumes, como por exemplo danças, músicas gauchescas, exercícios de cavalhada e outros".

A cultura tradicionalista, segundo Maria Eunice Maciel, continuou a ser perpetuada após a criação, em 1948, em Porto Alegre, por um grupo de estudantes em sua maioria com menos de 20 anos, do primeiro Centro de Tradições Gaúchas. Esses jovens, salienta a pesquisadora, eram em sua maioria provenientes de cidades do interior e que sentiram a necessidade de perpetuar as suas tradições rurais em uma grande cidade que já sentia o forte impacto da influência cultural norte-americana, no contexto pós-2a Guerra Mundial.

Diz Maria Eunice Maciel: "O que aqueles jovens procuravam era, num primeiro momento, recriar em Porto Alegre o ambiente do galpão tal como o conheciam e como tinham guardado na memória, ou seja, um local de reunião onde, ao redor de um fogo-de-chão, tomando mate, podiam conversar, contar ‘causos’, declamar poesias, enfim, um ambiente de descanso e de trocas sociais".

A conferencista conclui afirmando que, em grande parte dos tradicionalistas de hoje, "existe a crença de que o que fazem é recriar, exatamente, a vida dos antigos gaúchos e que assim estão zelando pela preservação e pureza das tradições gaúchas. A capacidade de viver ‘um outro’, quase como num processo de ‘carnavalização’, propiciando que os gaúchos vivam ‘um gaúcho’, livre das amarras do cotidiano, cantado e glorificado, é seu principal atrativo e não é por acaso que o gauchismo, assim, tem tanto sucesso".

Biografia e memória – O papel que o ressentimento ocupa nas relações pessoais também pode ser objeto de estudo do historiador, por exemplo quando ele se dedica a uma biografia. Este foi o tema da conferência "Biografia e memória: Gabrielle Louise Brune-Sieler", de Vavy Pacheco Borges, do Departamento de História da Unicamp, apresentada no mesmo painel "O eu e os outros". Vavy prepara uma biografia de Gabrielle e aponta as implicações de um trabalho desse tipo.

Nascida de família burguesa de origens européias (suíças e francesas), Gabrielle Louise nasceu no Rio de Janeiro, em 1874. Aos 19 anos já havia se casado, com o capitalista alemão Georg Brune, representante no Brasil do Brazilianische Bank fur Deutschland, que havia participado do episódio de uma moratória no governo de Campos Salles. Posteriormente Gabrielle Louise comentaria, de acordo com Vavy, que teria conhecido, durante o período do casamento com Brune, "segredos incríveis da política mundial e brasileira" e "crimes de banqueiros alemães e políticos brasileiros" que ela não poderia contar para "o universo não perder a paz".

Brune morreu de ataque cardíaco em julho de 1912. Quase aos 40 anos, Gabrielle casou-se novamente, em regime de separação de bens, com Friedrich Wilhem Sieler, "bem mais jovem do que ela". Ele era funcionário do Brazilianische Bank. Em 18 de janeiro de 1915, à noite, conta Vavy, "em casa, Willy tentou matá-la, ferindo-a com revólver no ombro esquerdo e depois se suicidou".

A vida de Gabrielle, a partir daí, estaria praticamente marcada pelas implicações do ressentimento típicas das relações humanas. Diz Vavy Pacheco Borges: "para reaver sua fortuna internacional, em boa parte confiscada ou reivindica na Alemanha pelas famílias de seus ex-maridos, Gabrielle fez inúmeros apelos por cartas e empreendeu diversas viagens aos Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha etc. Pedia o apoio de pessoas públicas influentes e contratava conhecidos advogados. Sempre muito original, em seu segundo testamento, em 1924, pede para, depois que morrer, ter seu corpo lançado no Canal do Panamá, pois no Brasil fora muito maltratada; mas também contratou o famoso jurista carioca Rodrigo Octávio para a curiosa função – entre outras, é claro – de comprar-lhe um terreno no elegante Cemitério São João Batista, onde deveria ser enterrada entre seus dois maridos".

Em 1932, segundo Vavy, um advogado, desconhecido da família, iniciou um processo de interdição de Gabrielle, que não foi adiante, mas depois a própria família retomou o pedido. Gabrielle acabou sendo interditada em 1935, com o diagnóstico de "paranóia" e "histeria". Ela conseguiu escapar de sua tutoria carioca e passou a se esconder em hotéis com nomes falsos, "carregando malas cheias de papéis, jóias e dinheiro". Morreu aos 64 anos, em uma casa de saúde na Gávea, no Rio de Janeiro.

Vavy Pacheco Borges resume, sobre o seu esforço em construir a biografia de uma pessoa como Gabrielle: o que ficou claro para mim é que, hoje em dia, não há métodos, modelos canônicos para se fazer uma biografia. Mas prazerosamente hoje, através da biografia, volto a recuperar o que ouvi sobre a História na primeira aula do meu primeiro curso de graduação: a História é, ao mesmo tempo: Ciência – porque produz uma forma de conhecimento; Arte – porque é preciso muita arte para se reproduzir a história de uma vida; Ética – (moral, naqueles tempos), porque trabalha com os valores, nossos e de nossos personagens".

Avós e netos – Encerrando o painel "O eu e os outros", Paulo de Salles Oliveira, da USP, apresentou a conferência "Avós e netos nas classes populares: a recusa de não se sentir em lugar algum e a redescoberta de um novo projeto de vida".

A conferência é basicamente um comentário sobre o livro de Salles Oliveira, Vidas Compartilhadas, resultado da pesquisa que fez para a tese de doutorado em Psicologia Social na USP.

Em termos resumidos, o professor da USP mostra em sua pesquisa como, no âmbito das classes populares, relações que poderiam ser pontilhadas pelo ressentimento na realidade se transformam em oportunidades para a valorização da auto-estima, viabilizando, assim, novos projetos de vida.

O psicólogo se debruça, em particular, sobre os avós e netos das classes populares, ou seja, pessoas que, pelos parâmetros da sociedade de consumo seriam relegadas "e que pouco contam nas representações predominantes no interior de nossa sociedade". São pessoas, observa, excluídas até mesmo gramaticalmente. "Por exemplo: não raro indagamos ao velho ‘o que o senhor fez na vida?’ Ou, então, à criança: ‘o que você vai ser quando crescer?’ Inadvertidamente, agimos como se para eles não existisse presente: o velho já foi, a criança ainda vai ser".

Uma "primeira lição" de sua pesquisa, diz Paulo de Salles Oliveira, é o fato de que avós e netos das classes populares "não procuram camuflar suas diferenças. Assumem e cultivam suas particularidades na convivência diária, mas o fazem respeitando o outro na busca de relações igualitárias de existência. Somos iguais nos direitos enquanto pessoas, mas somos diferentes em nossos traços particulares".

A outra lição, prossegue, é a do compartilhar. "No caso dos avós e netos pobres, de quem a princípio poucos esperariam alguma coisa, a premissa de suas vidas é dividir com o outro, ou, numa única palavra, compartilhar".

Continua o professor da USP: "Para os mais velhos, as crianças são fonte de renovação. Ensinam a ler, a escrever, a falar (corrigindo seus erros), explicam as matérias da escola, trazem para casa as novidades, contam as coisas do bairro e não se sentem envergonhados em convidar seus avós para brincar".

Os avós, quando são convocados a ajudar na criação dos netos, passam de fato por uma substancial mudança de vida. "Pessoas que se achavam muitas vezes relegadas, pesadas, dentro da vida familiar, agora têm um novo e inesperado desafio a enfrentar". E o desafio é aceito e os resultados são positivos. Os avós "redescobrem dentro de si um vigor que já imaginavam perdido, redefinem modos de agir e de pensar".

A mudança também é expressiva para os netos, nota Salles Oliveira. Os avós entrevistados pelo psicólogo "conversam muito com seus netos e, assim, cultivam a oralidade. Têm algo a dizer, têm experiências a compartilhar e, deste modo, implícita ou explicitamente, propõem e confiam no diálogo". Os netos assimilam, assim, a experiência vivida dos avós e, com isso, podem manter uma cultura "que se realiza principalmente no fazer e não no consumo de coisas prontas".

E mais: a relação avó e netos é marcada pelo afeto. Para as crianças, em especial, "e muitas delas os pais não quiseram assumir sua criação assim que o casamento se desmanchou, ter uma pessoa como o avô ou a avó não deixa de ser um alento no interior de um quadro sombrio".

O aconselhamento, a repreensão quando necessária, o cultivo da simplicidade, a simpatia com a natureza. São vários os ingredientes, em sua maioria positivos, que marcam essa relação avós e netos. Para Paulo de Salles Oliveira, todos preocupados com a construção de um País melhor teriam muito a aprender com esse relacionamento. Ele conclui: "saber acolher e combinar igualdade e diversidade, eis o desafio. Desenvolver uma cultura verdadeiramente democrática, em que existem sim conflitos e contradições, mas também o empenho em superá-los sem que isso implique na anulação do outro".

Memória e História
"Todos têm direito à memória", diz-se. Mas reflete-se necessariamente sobre ela? Esta foi uma das instigantes questões discutidas no Colóquio.

As relações entre memória e história também foram discutidas com profundidade no Colóquio Internacional "Memória e (res)sentimentos: indagações sobre uma questão sensível". Este foi o assunto central do painel "Memória e História: uma questão atual?", coordenado por Iara Lis Carvalho Souza, da Unesp, na tarde de 29 de maio.

No painel, os "Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais" foram discutidos por Jacy Alves de Seixas, do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Para ela, "a crescente revalorização da memória no interior da historiografia, o acúmulo de falas de memória, sua operacionalização cada vez mais eficaz, o direito e o dever de memória, reivindicado por inúmeros grupos sociais e políticos, convivem com um movimento inverso, que aponta para um descaso ou fragilidade teórica realmente instigantes; fenômeno que Pierre Vidal Naquet designou como ‘uma espécie de vergonha da memória’ por parte dos historiadores que, de ‘alguma maneira, esforçam-se para apagá-la como tal’. Em uma palavra – acrescenta Jacy –, muito se fala e se pratica a ‘memória’ histórica – o boom atual da história oral e das biografias e autobiografias é, nesse sentido, bastante expressivo – mas pouquíssimo se reflete sobre ela".

Uma das ponderações da professora da UFU é que "os discursos e as manifestações poderosas da memória se colocariam atualmente `a história como uma ‘palavra de oráculo’, cumprindo funções que até recentemente (década de 60, provavelmente...) as utopias históricas preenchiam. Assim, o sonhar coletivo e individual, sem o qual não há ação possível, o lançar-se coletivamente em direção a um futuro representado como ‘melhor’, investir-se-iam não mais nas utopias históricas, mas valer-se-iam da memória para projetar-se e atar passado e futuro".

Jacy Alves de Seixas entende que, "apenas considerando a função prospectiva e projetiva da memória (ressaltada tanto por Bergson como por Proust), portadora a um só tempo de passado e de futuro, que podemos estabelecer este vínculo instigante com a utopia e com a história. Pois a memória – conclui – compartilha com a utopia de certos predicados distinguidores: a dimensão do tempo futuro, a designação de lugares. Este último, precisamente, aponta para a expressão hoje dominante para se designar o contato memória/história, os estudos históricos da memória, os lugares de memória".

No mesmo painel, "Memória, História, Testemunho" foi precisamente o tema da conferência de Jeanne Marie Gagnebin, da PUC-São Paulo e do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Ela reflete, a partir de textos de Walter Benjamin, sobre "o fim da narração tradicional", que seria decorrente da perda da experiência.

As razões da dupla perda – da experiência e das formas tradicionais de narrativa – estariam em fatores históricos que, segundo Benjamin e nas palavras de Jeanne Marie, "culminaram com as atrocidades da Grande Guerra – hoje sabemos que a Primeira Guerra somente foi o começo deste processo. Os sobreviventes que voltaram das trincheiras, observa Benjamin, voltaram mudos. Por que? Porque aquilo que vivenciaram não podia ser mais assimilado por palavras".

Para a professora do IEL-Unicamp, neste diagnóstico Benjamin "reúne reflexões oriundas de duas proveniências: uma reflexão sobre o desenvolvimento das forças produtivas e da técnica, em particular sua aceleração ao serviço da organização capitalista da sociedade, e uma reflexão convergente sobre a memória traumática, sobre a experiência do choque (conceito-chave das análises benjaminianas da lírica de Baudelaire), portanto, sobre a impossibilidade, para a linguagem cotidiana e para a narração tradicional de assimilar o choque, o trauma, diz Freud na mesma época, porque este, por definição, fere, separa, corta ao sujeito o acesso ao simbólico, em particular à linguagem". Este seria o sentido do texto de Benjamin "Experiência e Pobreza".

Em contrapartida, em outro texto, "O Narrador", Benjamin apontaria as possibilidades de construção de outra forma de narração. Para Benjamin, diz Jeanne Marie, "o narrador também seria a figura do trapeiro, do Lumpensammler ou do chiffonier (alusão ao poema Flores do Mal, de Baudelaire), do catador de sucata e de lixo, esta personagem das grandes cidades modernas que recolhe os cacos, os restos, os detritos, movido pela pobreza, certamente, mas também pelo desejo de não deixar nada se perder (Benjamin introduz aqui o conceito teológico de apokatastasis, de recoleção de todas as almas no Paraíso)".

Este narrador sucateiro, continua a conferencista, não tem por alvo recolher os grandes feitos: "Deve muito mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação, algo que parece não ter nem importância nem sentido, algo com que a história oficial não sabe o que fazer. O que são esses elementos de sobra do discurso histórico? A resposta de Benjamin é dupla. Em primeiro lugar, o sofrimento, o sofrimento indizível quer a Segunda Guerra devia levar ao seu cume na crueldade dos campos de concentração (que Benjamin, aliás, não conheceu graças ao seu suicídio). Em segundo lugar, aquilo que não tem nome, aqueles que não têm nome, o anônimo, aquilo que não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem apagado que mesmo a memória de sua existência não subsiste, aqueles que desapareceram por tão completo que ninguém se lembra de seu nome. Ou ainda: o narrador e o historiador deveriam transmitir o que a tradição, oficial ou dominante, justamente não recorda. Esta tarefa paradoxal consiste, então, na transmissão do inenarrável, em uma fidelidade ao passado e aos mortos mesmo – principalmente –, quando não conhecemos nem seu nome nem seu sentido".

Memória e esquecimento – A relação memória-história foi retomada no painel "História, memória e esquecimento", coordenado por Jacy Seixas (da Universidade Federal de Uberlândia), na tarde de 30 de maio. O tema foi abordado em "Tucídides: a Retórica do Método, a Figura de Autoridade e os Desvios da Memória", por Francisco Murari Pires, da História/USP. As observações do conferencista foram feitas basicamente a partir do clássico de Tucídides, "A Guerra dos Peloponésios e Atenienses".

Ele sustenta que a história tucidideana, "enquanto ciência humana, privilegia, assim aludida metaforicamente, uma espistemologia que fundamenta sua virtuosidade cognitiva pelo primado informativo da percepção direta, especialmente visual, dos acontecimentos. Conseqüentemente, o historiador ordenou a heurística de sua informação observadora dos fatos consagrando o princípio da autópsia como condição: ou ele mesmo os presenciara ou acolhera relatos por quem os presenciara".

Para Francisco Murari Pires, "diversamente de Heródoto, a narrativa historiográfica tucidideana não faz aflorar a dialética de suas fontes informativas, e tampouco revela os procedimentos de sua metodologia crítica porque derivou a reconstituição dos fatos consagrados na redação de sua história". O discurso narrativo tucidideano, acrescenta, é "predominantemente, senão avassaladoramente, composto por impressões de apenas resultados fatuais, quaisquer que sejam as identificações dos informantes e quaisquer que sejam as operações analíticas de uma sua suposta crítica averiguadora de veracidade".

No mesmo painel, Italo Arnaldo Tronca, da História-Unicamp, discutiu sobre "Foucault, a doença e a linguagem delirante da memória". Ele reflete sobre como a alegoria aparece na literatura sobre a lepra a partir do século XIX e sobre a Aids hoje. Afirma Italo Tronca: "Identifico nas narrativas literárias e científicas pelo menos três temas que organizam as representações em torno da lepra e da Aids – a raça, a geografia e a sexualidade. Tais temas, por sua vez, surgem articulados com alguns dos elementos que integram a estrutura alegórica. Tanto os temas quanto os elementos alegóricos, como o pitoresco e o sublime, nunca aparecem em estado ‘puro’. Existe uma constante interpenetração entre eles, ora predominando um, ora outro, valendo mais sob esse aspecto a sensibilidade e a intuição do leitor do que rígidos esquemas teóricos. A observação se aplica a todas as narrativas alegóricas quer sejam literárias ou científicas".

No mesmo painel, a conferência "Conciliação e esquecimento: Nabuco e a revolução" foi apresentada por Izabel Andrade Marson, do Departamento de História da Unicamp. Salienta a conferencista que os textos que hegemonicamente informaram os historiadores do século XX sobre a revolução no Império são as obras de Joaquim Nabuco "Um Estadista do Império" e "O Abolicionismo". Nestes livros, entende Izabel Marson, Nabuco delimitou "um perfil exclusivo e uma memória para a revolução".

A historiadora considera que um princípio central fundamentou a concepção de revolução apontada por Nabuco nessas obras e acabou orientando os seus procedimentos tanto como político quanto como historiador. É o princípio da "conciliação", que pode ser resumido na expressão "poupar os submissos e debelar os soberbos".

Sobretudo em "Um Estadista do Império", biografia do seu pai, o ministro, senador e conselheiro José Thomaz Nabuco de Araújo, Joaquim Nabuco "retomou o passado para destacar a importância do regime monárquico parlamentar para a emergência da nação, para o exercício e confecção do autêntico liberalismo". Para ele, sustenta a professora da Unicamp, "a república de inspiração girondina ou jacobina, sinônimo de revoluções, anarquia, despotismo e risco à integridade do império, constituía a negação da obra monárquica, e já tivera, sem sucesso, a sua chance histórica".

Em sua avaliação sobre as revoluções jacobinas ocorridas no Império, Joaquim Nabuco atribuiu as causas desses movimentos à "herança dos monopólios do Antigo Regime, o feudalismo, os latifundia, a servidão". Teria sido o caso em particular da chamada Revolução Praieira, fruto de uma intrincada gama de motivações, dentre as quais o feudalismo vigente em Pernambuco.

Para Nabuco, no entender de Izabel Marson, as revoluções seriam fenômenos típicos da adolescência do país, além de um testemunho da imaturidade de uma nação não constituída. "Nela ainda imperavam relações feudais, herança da escravidão, traço denotativo de seu descompasso com os regimes europeus já integrados à civilização, cujo exemplo maior era a monarquia constitucional inglesa", sublinha. Tais revoluções, para Nabuco, "poderiam ter sido evitadas se a nação, superando as práticas fundadas nos instintos, tivesse sido conduzida todo o tempo por estadistas sábios e experientes, a exemplo do Imperador D.Pedro I e daqueles que haviam atuado no primeiro e segundo reinados: Caxias, Honório Hermeto, Eusébio de Queiroz, o visconde do Rio Branco ou mesmo o senador Nabuco de Araújo".

Conclui a professora da Unicamp: "Ao identificar as revoluções jacobinas com a menoridade do império e valorizar as revoluções sociais pacíficas implementadas pela via parlamentar pelos grandes estadistas, Nabuco não apenas flagrou o descompasso da história do país com a da Europa, mas, também, substituindo a independência (a 7 de setembro de 1822) e o 7 de abril, tornou a abolição da escravidão o grande marco sinalizador do início da maioridade da nação".


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