O
pai da criança
obstetra
e ginecologista Ricardo Barini (à direita) introduziu o programa Imunologia
da Reprodução na Unicamp depois de fazer, entre 1991 e 1992, pós-doutoramento
na Finch University of Health Sciences/The Chicago Medical School. Professor da
Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Barini foi um dos pioneiros
no tratamento de mulheres com histórico de aborto recorrente. Desde que
foi implantado no Centro de Atenção Integral à Saúde
da Mulher (Caism), em 1993, o programa já possibilitou o nascimento de
pelo menos 250 crianças. Na entrevista que segue, Barini fala sobre as
complexas questões que envolvem a reprodução humana
Jornal
da Unicamp Quando e por que começaram as investigações
acerca do aborto recorrente?
Barini
Durante muito tempo se acreditava que o feto passava como que despercebido
pelo organismo da mulher, como se não houvesse nenhuma interação,
nenhuma resposta imunológica entre a mãe e o feto. Investigações
mais recentes, iniciadas na década de 80, mostraram que, ao contrário,
existia uma adaptação imunológica; e, quando essa adaptação
não ocorria, uma série de problemas poderiam acontecer. Mais estudada
até a metade da decáda de 90 era a questão do aborto habitual
ou recorrente. São mulheres que engravidam e abortam. Já vi pacientes
com 12, 13 abortos, sem nenhuma doença orgânica que os justificasse.
Geralmente são interrupções que acontecem bem no começo
da gravidez. Essas mulheres, na verdade, têm uma dificuldade de perceber
a gravidez. Elas a interpretam como se fosse uma doença que estivesse tentando
agredir seu organismo.
P
É uma espécie de rejeição?
R
Sim, uma rejeição física. Ela chega a ter o diagnóstico
de gravidez, percebe que está grávida e, mais ou menos no segundo
mês de gravidez, começa a apresentar involução dos
sinais gestacionais porque o organismo dela produz substâncias que promovem
a parada da evolução da gravidez.
P
Por que acontece isso?
R Todo mundo imagina que isso tem
uma coisa de emocional, de permeio na história. Mas, muitas vezes, essas
mulheres querem loucamente ficar grávidas. Elas buscam uma resposta do
por quê elas abortam e, até o final do século passado, os
médicos recomendavam: não, nós não identificamos
nenhuma causa para você abortar; você tem que ir tentando até
conseguir. A percepção de que o feto, para a mulher, é
como se fosse um transplante temporário, como se fosse um enxerto que tem
que sobreviver dentro seu útero. Metade da constituição genética
do feto é igual à da mãe. Ela cede o óvulo que é
responsável por metade dos produtos genéticos do bebê; a outra
metade tem origem paterna, que vem por meio do espermatozóide.
P
Como essa parte paterna acaba contribuindo para futuras disfunções?
R A chave da história é perceber como a mãe
interage com essa parte paterna, permitindo que o embrião consiga viver
dentro do útero. Na superfície das nossas células, temos
uma série de informações genéticas, um código
de proteínas que identifica cada um dos indivíduos. Cada um de nós
tem uma carteira de identidade escrita. E o sistema imunológico faz uma
fiscalização do nosso organismo através desse código,
como se fosse um código de barras que ele vai lendo para identificar quais
células são nossas e quais são estranhas. Quando identifica
uma célula que não pertence ao sistema, imediatamente aciona um
processo de expulsão e de rejeição. Produz umas substâncias
químicas que se ligam nessa célula, promovendo uma coisa que a gente
chama de apoptose um processo pelo qual você pega o DNA, dá
um laço nas duas pontas, impedindo sua duplicação. Essa célula
tem um tempo de vida e, ao tentar se multiplicar, não consegue e acaba
morrendo. Na gravidez a mulher entra em contato com informações
de origem paterna. Só que, ao invés de ela produzir uma resposta
de agressão, ela desenvolve uma adaptação fisiológica
para que não aconteça a agressão. Quando esse mecanismo todo
não acontece, o mecanismo regulador automático, pelo qual reconheceu
que o feto não é do sistema e deve ser eliminado, passa a funcionar
independentemente e não permite que a gravidez evolua. Qual a chave da
história? É que existe uma fração molecular especial,
chamada HLA-G. É essa molécula que entra em contato com o sistema
imune materno e dá a informação: olha, isso que está
crescendo aqui dentro é uma gravidez, não é uma doença,
não é uma célula cancerígena, não é
um tumor.
P
E o que acontece a partir daí?
R Esse reconhecimento
faz com que a mulher desenvolva substâncias que promovem uma modulação
do sistema. São substâncias conhecidas como bloqueadoras. Elas bloqueiam
a resposta contra a gravidez, ou seja, na verdade permitem o desenvolvimento do
bebê etc.
P
Por que alguns casais não conseguem desencadear essa resposta?
R
Existe uma interação entre as características imunológicas
do marido e da mulher que promovem ou não o desencadeamento dessa resposta.
A gente percebeu, ao longo das investigações, que quanto mais semelhante
for o casal, mais difícil é o estabelecimento dessa resposta. Exatamente
o contrário daquilo que a gente imagina com o transplante de órgãos.
Quando você vai pegar um rim de uma pessoa e colocar em outra, quanto mais
parecidas imunologicamente elas forem, melhor o resultado do transplante. A gravidez
funciona ao contrário: quanto mais o casal é parecido, pior é
o resultado reprodutivo.
P
A observação dos problemas decorrentes dos transplantes foi
fundamental nesse processo?
R Um grupo de investigadores percebeu
que era possível se vencer a barreira da mulher que não conseguia
estabelecer essa resposta fisiológica. A observação veio
das pessoas que foram submetidas a transplantes. Até mais ou menos a década
de 70 não existiam drogas para produzir imunosupressão. Quando se
fazia um transplante, não existiam drogas como a ciclosporina para evitar
a rejeição. Naquela época observou-se que as pessoas que
recebiam transfusão sangüínea antes do transplante tinham menos
rejeição do que as que não tomavam transfusão. Daí
a pergunta: o que faz a transfusão que melhora a aceitação
do transplante? Quem recebia transfusão produzia uma série de substâncias
que se denominavam anticorpos bloqueadores, capazes de reduzir a resposta imunológica
do indivíduo contra o transplante. Essa idéia foi então transportada
para a gravidez.
P
E quando foram feitas as primeira tentativas?
R No começo
da década de 80, em pessoas que tinham histórico de aborto habitual.
Essas pessoas foram submetidas a transfusões sangüíneas e conseguiram
ter filhos, depois de cinco, seis, sete abortos. Só que, nessa época
também, apareceu um outro problema: a Aids. Havia a seguinte questão:
como vamos pegar uma pessoa sadia e submetê-la a transfusões seriadas,
expondo-a ao risco de se contaminar? Tentou-se uma outra possibilidade: o marido
não é capaz de induzir essa resposta? E deu certo. Em uma boa parte
dos casais, a transfusão de células do marido consegue induzir a
mulher a produzir a resposta necessária para que ela não aborte.
E o que vem sendo feito por essas mulheres há mais de 20 anos pelo menos,
é advindo dessas observações.
P
O número de trabalhos científicos, nesse período,
cresceu na mesma proporção?
R A quantidade de trabalhos
publicados é enorme. Existe ainda alguma dúvida na literatura: se
esse tratamento é mais eficiente do que não fazer nada. Alguns estudos,
chamados duplo-cegos, contestam a eficácia: você pega um grupo de
pacientes que tem aborto e faz a vacina, outro grupo que tem aborto você
faz soro fisiológico, comparando o desempenho de cada um.
P
E o que esses trabalhos apontaram?
R Os primeiros demonstravam
uma melhora fantástica para aquelas que recebiam a vacina, em relação
para quem só tomava soro fisiológico.
P
Quando começaram os trabalhos no Brasil?
R Em 1993,
começamos um trabalho aqui na Unicamp, logo depois que voltei dos Estados
Unidos.
P
O senhor pode ser considerado pioneiro nesse tipo de trabalho?
R
Eu não diria pioneiro, porque alguns outros médicos, de São
Paulo, tentaram fazer esse tipo de tratamento antes de se iniciar o atendimento
aqui na Unicamp. Nenhum era ginecologista e não instituíram um programa
da maneira que fizemos aqui, com uma casuística considerável e com
resultado palpável. Eles tinham um ou outro caso, mas não conseguiram
juntar um grupo de pessoas num programa. O primeiro programa, público inclusive,
no qual não existe gasto nenhum, foi feito aqui na Unicamp.
P
De que forma esse programa é desenvolvido?
R Há
um protocolo de tratamento imunológico para pacientes com quadro de aborto
recorrente. O Hemocentro da Unicamp dá um apoio enorme nesse processo e
é responsável por toda a parte laboratorial, de diagnóstico
e de produção das vacinas.
P
Qual é o processo de produção dessas vacinas?
R
Coleta-se 80ml de sangue do marido e no mesmo dia esse sangue é
fracionado, retirando-se as células brancas e descartando-se as hemáceas
(células vermelhas). As células brancas são lavadas e colocadas
em soro fisiólogico e injetadas na mulher por via intradérmica.
A gente faz duas sessões dessa imunização e confirma com
exames se a paciente já respondeu ao tratamento. Existe uma prova, chamada
cruzada, em que a gente testa para ver se a paciente já consegue reconhecer
o marido imunologicamente.
P
O que acontece?
R A gente fica na expectativa de que, quando
ela engravide desse marido, lá dentro do útero ela consiga reconhecer
aquelas porções que estão na superfície da célula
e permita, então, o desencadeamento de toda a resposta imunológica
que deixa a gravidez evoluir.
P
Em que fase começa o tratamento?
R Antes de a mulher
engravidar.
.
Segue...