| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Enquete | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 215 - 2 a 8 de junho de 2003
.. Leia nessa edição
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::Pouco investimento em P&D
::Controle de doença de granja
::Lei de Inovação
::Assentamentos na cadeia
produtiva
::Imigração italiana pós-guerra
::Rótulos que omitem informações

::Ambiente de trabalho

::Nanociêcia
::Unicamp na imprensa
::Painel da semana
::Oportunidades
::Teses da semana
::Newton da Costa
::Legião microbiana
 

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Estudo avalia impacto
da imigração italiana no pós-guerra

LUIZ SUGIMOTO


Leia mais: Giovanna e Giuseppe Facchinetti

Grupo de italianos na zona rural de Campinas, em 1911: até 1913, mais de 1,2 milhão de imigrantes chegaram ao Brasil; por volta de 1950, houve uma retomada de certa intensidade no fluxo
Se fosse pertinente e adequado escolher o que simbolizasse a destruída Itália do segundo pós-guerra, seriam as oliveiras que demoram tantos anos para crescer e produzir, derrubadas pelos alemães. Eles resolveram vingar a derrota solapando da população civil, já sem nada para comer, o derradeiro ganha-pão. Oliveiras e campos inférteis ao sul, indústrias quebradas nas cidades ao norte: privadas de 70% da produção, as empresas mal podiam absorver a massa desempregada, tampouco os soldados regressos do front de outras batalhas.

A historiadora Luciana Facchinetti é filha de Giovanna e Giuseppe, testemunhas daquele purgatório e que buscaram no Brasil não o paraíso, mas um lugar onde pudessem simplesmente trabalhar e recomeçar a vida. O depoimento do casal está guardado no Memorial do Imigrante, em São Paulo. Instigada pela vida dos pais e por um trabalho no próprio Memorial, em que ajudou a digitalizar os Livros de Entrada de Imigrantes de 1882 a 1907, a professora recorreu a outro acervo da instituição, 24 mil fichas produzidas pelo CIME (Comitê Intergovernamental para as Migrações Européias), para reconstituir a história de alguns personagens e avaliar a influência desses imigrantes no desenvolvimento da indústria brasileira. Ela defendeu a dissertação de mestrado junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, em fevereiro.

"Eles cruzaram o Atlântico essencialmente por causa do país destruído, mas também pelo desmoronamento de um sonho. Criados no fascismo, sob a promessa de Benito Mussolini de um país unido, grande e forte, foram pagos com moeda falsa. Perderam a infância e parte da adolescência, passaram por muita fome", conta Luciana. Ela recorda que, além do conflito mundial, a população amargurou uma guerra civil de 20 meses entre os que insistiam em salvar o Duce e os partigiani (ligados à resistência). "Nos depoimentos é comum a lembrança de que eles tinham quatro inimigos: os fascistas e os alemães de dia, os partigiani e o bombardeio americano à noite. Não sabiam para que lado olhar, levavam tiros por todos os lados".

O Memorial do Imigrante registra a entrada de sete italianos em 1870. Até 1913, o total exato é de 1.291.280, um mar de gente que motivou incontáveis estudos sobre sua contribuição à agricultura, comércio e indústria, principalmente no Estado de São Paulo, e sobretudo para nossa formação cultural. Nas décadas seqüentes o fluxo diminui acentuadamente e é quase nulo nos anos da guerra, havendo então a retomada de certa intensidade por volta de 1950.

Casal de imigrgantes italianos em plantação de café"Queria entender como esses imigrantes do pós-guerra, apesar de terem vindo em menor quantidade, influíram na economia brasileira", explica a historiadora. O interesse se justifica, pois havia uma diferença importante em relação aos patrícios da virada do século: a especialização. "Se os que chegaram antes eram analfabetos em 90%, os que vieram depois eram alfabetizados e quase todos sustentando alguma qualificação", acrescenta. A qualificação era um critério importante para aprovação do governo brasileiro, que incentivava a indústria e não se interessava em receber novas levas de mão-de-obra barata.

Noção do ofício - Luciana lembra que uma das bases do fascismo é o nacionalismo, sentimento difícil de impor a uma Itália dividida em muitas regiões, cada qual com seu dialeto. "Mussolini via na alfabetização o meio de unificar o país, moldar uma consciência de cidadão e transmitir sua ideologia, criando uma geração de fascistas em todo o território. Obrigava a família a colocar os filhos da escola, no mínimo até o quarto ano primário", conta. Educação, mas até determinado nível, pois o ditador reduziu incentivos ao ensino médio, fechou escolas técnicas e elitizou a formação superior. Não queria seres pensantes.

Então, como o imigrante conseguiu sua qualificação, perguntava a historiadora aos entrevistados, obtendo como resposta o corporativismo de ofício que prevalece na Itália desde tempos feudais. "As crianças saíam da escola e iam aprender uma profissão com um parente ferramenteiro, um vizinho alfaiate. Mesmo aqueles do sul, que representam 60% da minha amostragem, tinham pais agricultores mas aprenderam a fazer pão, por exemplo".

Assim, vieram para o Brasil ferramenteiros, pedreiros, carpinteiros, mecânicos, marceneiros, padeiros, motoristas, barbeiros. Não possuíam certificados, mas conheciam o ofício. Também vieram diplomados como engenheiros, técnicos altamente especializados e professores. "Um professor com importantes publicações na área da aeronáutica, que por colaborar com o regime fascista ficou sem espaço na Universidade de Roma, foi autorizado pelo governo a trabalhar na Embraer. Vale salientar que engenheiros e especialistas italianos tiveram uma participação importante na construção do primeiro avião brasileiro, o Bandeirante", informa Luciana.

Sem patrões - Imigrantes do pós-guerra também teriam promovido inovações, desde que o parque brasileiro oferecesse condições para a aplicação de seus conhecimentos. Na lista de 16 entrevistados, a pesquisadora aponta exemplos deste espírito empreendedor. Um deles idealizou um projeto de ferro a vapor, inviabilizado pela falta de equipamentos. Outro, alfaiate, ofereceu o desenho de um paletó à Pierre Cardim, que não quis lhe pagar royalities. Antonio Midea, ex-pedreiro, é hoje o segundo maior empresário da área de construção civil. O economista Edoardo Cohen tornou-se renomado escritor, ator e pesquisador. Luiz de Papaiz, que desautorizou a utilização da entrevista, marcou seu nome no setor de ferramentas.

Os casos de sucesso, contudo, não refletem todo o peso desses imigrantes na economia. "Meu pai aprendeu mecânica com meu avô, um técnico em teleférico, e marcenaria com um tio dele. Trabalhou na Matarazzo para garantir o sustento da família, até montar uma marcenaria. Esse pessoal não suportava a idéia de ficar sob ordens de patrões. Noventa por cento deles criaram micros, médias e grandes empresas, de padaria a indústria metalúrgica. Eles queriam realmente fazer a América. E Brasil, Venezuela e Argentina, afinal de contas, também são América"

Remessas de dinheiro ajudam na reconstrução

Professora Luciana Facchinetti, historiadora: pesquisa instigada pelos testemunhos dos pais e por seu trabalho no Memorial do ImigranteEm fins do século 19 e início do século 20, as levas de italianos vieram em famílias numerosas, com uma média impressionante de dez filhos por casal. Já entre os imigrantes do segundo pós-guerra, havia poucas famílias, com no máximo quatro filhos. Homens e mulheres solteiros formavam o grosso do contingente e a faixa etária ia de 18 a 50 anos, dentro do perfil selecionado pelo governo brasileiro interessado em mão-de-obra qualificada.

Ao governo italiano, incapaz de absorver tanta força de trabalho, também convinha a emigração de pessoas que buscassem no exterior divisas para aumentar a poupança interna, contribuindo para a reconstrução do país. Depois de Estados Unidos e Canadá, ao norte, os países mais procurados pelos italianos foram, pela ordem: Venezuela, cujo petróleo permitia boas condições de progresso; Argentina, que acolheu não só trabalhadores mas a maioria das lideranças do fascismo; e Brasil, apesar da restrição aos comunistas, cuja entrada era controlada inclusive por padres católicos, aos quais cabia conceder atestados de boa conduta.

Entre 1946 e 1960, 110.932 italianos rumaram para o Brasil, 231.543 para a Venezuela, 484.068 para a Argentina e 504.449 para Estados Unidos e Canadá. Para dar uma dimensão desta força de trabalho, a professora Luciana Facchinetti cita dados de Constantino Ianni em seu livro Homens sem Paz: em 1962, por exemplo, as remessas recebidas na Itália de seus emigrados de todo o mundo, e registradas no balanço de pagamentos internacionais do país, somaram cerca de 550 milhões de dólares; antes, em 1961, a soma alcançou 450 milhões de dólares.

Daí, a revolta dos imigrantes diante do preconceito que sofrem ao retornar à terra natal, ou das tentativas do governo italiano em suspender a pensão de quem continua fora. "É uma briga ferrenha. Eles enviaram muito dinheiro para a reconstrução da Itália e esperam uma retribuição, agora que o país vive uma situação saudável", afirma a pesquisadora.

Pé na Bota - Luciana Facchinetti ouviu de embaixadores italianos, recentemente, que existem 63 milhões de imigrantes e descendentes pelo mundo, enquanto a população da Itália é de 57 milhões. O Brasil abriga 23 milhões, sendo que somente a cidad e de São Paulo concentra 5,5 milhões. "Em cada cinco habitantes do território brasileiro, um tem um pé na Bota", afirma a professora, que mora no Tucuruvi, zona norte de São Paulo.

Ao final desta entrevista, quando eram servidos café e bolinhos de chuva, mamma Guivanna entrou repentinamente na cozinha, amparada por um andador e por beijos e carícias da filha. Falava muito, sem se dar conta de que os visitantes não entendiam seu idioma. Num espaço de 23 dias, ela perdeu Giuseppe, companheiro da longa viagem desde as plantações do sul da Itália, a outra filha Maria Elisa e também a lucidez.

"Para as italianas, perder filhos é insuportável", diz Luciana. "Ela quer saber se vocês já apreciaram as árvores e o ar puro lá fora", traduz. Por cima do muro via-se o bosque do vizinho Clube dos Alemães- no momento não cabia qualquer ironia- e mamma Giovanna caminhou resoluta até o quintal, quem sabe para sentir o aroma das oliveiras.


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