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Muito
além do jardim
EUSTÁQUIO
GOMES
Posso entrar?
Por favor.
Muito poucas vezes tive ocasião de conhecer
alguém que, no ofício de viver, soubesse
harmonizar aquilo que faz com aquilo que ama. Tais
pessoas são raríssimas. Em geral são
dignas de admiração e inveja. Na sexta-feira,
quando entrou em minha sala aquele homem pequeno,
magro, quase escuro, bigodes densos e cabeleira revolta,
tive a certeza, depois de alguns minutos de conversa,
que havia tido a sorte de encontrar, finalmente, um
sujeito em harmonia consigo mesmo.
Sebastião é jardineiro.
Talvez lhe ficasse melhor a denominação
inventor de jardins. Mas poderiam confundi-lo
com um paisagista, o que absolutamente ele não
é. Seus jardins não são públicos
compõem paisagens domésticas,
particulares, e uma vez construídos continuam
a contar com seu pastoreio diário. Afinal ele
vive disso. Tem uma clientela que se expande por meio
de uma rede de recomendações, em geral
professores da Unicamp. Cada jardim é planejado
a partir do pessoalíssimo gosto do interessado.
Enquanto planeja, cava, semeia, planta, afofa e rega,
se o dono permite Sebastião costuma cantar
e recitar poemas.
Porque também tem isto: Sebastião
é poeta. Há alguns anos publicou um
livro de poemas, um lindo volume intitulado Contos
poéticos, e chamou-os contos porque,
segundo ele, tudo ali foi experimentado e vivenciado.
Fazendo companhia aos poemas, gravuras belíssimas
feitas por gente a quem ele vem servindo como jardineiro
ou com quem conviveu nos últimos anos: professores
e alunos da Unicamp, artistas do bairro universitário
onde ele mora e trabalha. O livro nunca esteve nas
livrarias, mas rapidamente se esgotou. Nas horas vagas,
Sebastião saía por aí a oferecê-lo
aos conhecidos, aos cientistas e aos estudantes. Agora
acaba de reeditá-lo. Como da primeira edição,
lá está o prefácio de Rubem Alves.
Nada mais apropriado, já que Rubem é
um jardineiro da palavra.
Se
a poesia é coisa recente, a jardinagem nem
tanto. Resumida, a história de Sebastião
começa em Marília, onde nasceu há
60 anos. Aos seis ficou órfão de mãe.
Desprovido de tios, tias e avós, e como nem
sequer chegou a conhecer o pai, mandaram-no para um
orfanato em Guaratinguetá. Depois dos 14, solto
no mundo, levou vida difícil: padeiro em Aparecida,
operário em São Paulo. Se gostava de
flores e plantas, isso ainda era um mistério
interior. Demorou a desvendá-lo. Mas, depois,
nunca mais deixou de ser a espécie de fauno
que é.
Conversar com as plantas, tocá-las,
senti-las, ser capaz de perceber seu movimento lento,
lentíssimo: nada disso se faz com pressa, sem
ter chegado antes a um conhecimento íntimo
delas. Há as que se rejeitam entre si e as
que se procuram. As rosas, por exemplo, como as definiria?
Bonitas e solitárias.
Solitárias por quê?
Até um tufo de margaridas
é capaz de incomodá-las.
Já as lágrimas-de-cristo
e as primaveras são sociáveis. Nenhuma
é tão perfumada quanto a dama-da-noite,
nem mesmo o cravo e o jasmim. Uma planta doentinha,
cuida-se dela depois de trocar a terra, lavar o vaso
e examinar-lhe as raízes. As plantas que não
dão flores, como o cróton e a samambaia,
extraem sua beleza da própria cor ou da forma
de suas folhas. A mais perigosa é a coroa-de-cristo:
seu leite tem a virulência da soda caústica.
Numa coisa, entretanto, todas se assemelham: nenhuma
deixa de buscar a luz e o ar.
Toda essa ciência vem permeada
de serena filosofia. Proclama:
A natureza somos nós.
Perguntado, responde:
Sim, sinto que há
uma eternidade.
O que o leva a acreditar?
As plantas nascem e renascem
indefinidamente da mesma raiz.
E quando peço que me mostre
um de seus poemas, retira o seu livro de uma sacola
e abre-o na página 13. Leio: Do profundo
da mente / tiro a semente / saio ao mundo a plantar
/ planto amor-perfeito / simplicidade das margaridas
/ azaléas coloridas / no jardim de meus semelhantes.
Sebastião Martins Vidal dá-me
a idéia de um ser cosmogônico, integrado
ao universo e colado ao húmus da terra. Para
ele morrer será tão fácil quanto
viver. Sei que muitas pessoas gostariam de ler seu
livro e, por que não? contratá-lo como
pajem de suas flores. Talvez possam tirar dele também
algumas sementes de savoir vivre. Perguntem-lhe, por
exemplo, se algum dia se sentiu derrotado pela vida.
Ele responderá.
Não. Só o fato de ter nascido
já me faz vitorioso.