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DEU NO NYT


Álvaro Kassab


A pesquisadora Regina Martins: jornalismo-ficção levado ao limite (Foto: Luis Paulo)Muito antes de Larry Rohter ingressar no índex do governo e virar assunto nacional ao pôr na pauta os supostos hábitos etílicos do presidente Lula, a pesquisadora e tradutora Regina Parreiras Vieira Martins pinçou um excerto de um texto do repórter, publicado em 1999 pelo The New York Times, como epígrafe de sua dissertação de mestrado Representações do Brasil: os imigrantes europeus e o carnaval no imaginário estadunidense, apresentada em setembro passado no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL). Na mesma folha de apresentação, figura outro texto, este do jornalista James Brooke, colega de Rohter no diário nova-iorquino. O artigo de Rohter relata que o Brasil considera a si mesmo um arco-íris racial por ter mais de 60 termos para designar variações da cor de pele, “que vão do preto, para alguém como Pelé, até chegar no ‘brancarão’, para alguém que tenha a pele extremamente clara embora seja de ‘raça mista’ ”. Na outra ponta, as coisas são mais sutis: a reportagem de Brooke, publicada em 1994, revela ao público de seu país que Santa Catarina é uma extensão da Bavária... A escolha de Regina Martins pelo jogo de espelhos e pelo antagonismo passa longe das razões da coincidência. É fruto da minuciosa análise de 197 reportagens feitas sobre o Brasil, entre 1985 e 2000, pelo NYT. A pesquisa, financiada pela Capes, mergulha nas internas do discurso adotado pelo matutino e avança ao traduzir suas respectivas - e nefastas - implicações. A pesquisadora, como ficou patente nas muitas entrevistas que concedeu nas últimas semanas, tornou públicas suas conclusões, a começar dos “dois Brasis” que emergem das rotativas do jornal norte-americano. O que parte da mídia deixou passar batido é o vasto repertório teórico que fundamentou o trabalho. Na entrevista que segue, Regina Martins detalha como foi o seu mergulho.

Jornal da Unicamp– Qual foi o objetivo de sua pesquisa?
Regina Parreiras Vieira Martins – É preciso mencionar inicialmente o corpus. Analisei artigos publicados sobre o Brasil, pelo The New York Times, entre 1985 e 2001. Foram coletados no setor de microfilmes da Biblioteca do Congresso, em Washington. O objetivo inicial da pesquisa foi investigar as representações prevalentes do Brasil no diário, naquele período. Na pesquisa do mestrado, as análises se concentraram nas reportagens publicadas entre 1992 a 1999, com foco na região Sul em articulação com a imigração européia e nas regiões Sudeste e Nordeste, representadas pelo Rio e Salvador em sua articulação com o carnaval. No doutorado, estou me concentrando em outros temas. Trago também na minha tese, a obra de Joseph Page, The Brazilians, que possibilitou analisar, numa perspectiva discursiva, uma leitura de um autor norte-americano da história do carnaval brasileiro e da imigração européia, pois o autor inclui um resgate de narrativas históricas do Brasil.

JU - E a que conclusões você chegou?

Regina - Uma pré-análise apontou os temas mais recorrentes: miséria, misticismo, pluralidade de religiões, impunidade, corrupção, trabalho escravo, democracia racial etc. Todos os escândalos que envolvem violações de direitos humanos, chacinas, devastação, têm destaque no jornal. Figura com freqüência espantosa a imagem do carnaval. Quase não há registros das manifestações carnavalescas como o maracatu, os blocos de frevo, o desfile dos bonecos de Olinda, o carnaval de trios elétricos e as bandas carnavalescas cariocas. Aparecem, principalmente, as escolas de samba do Rio e blocos de Salvador, como o Ilê-Aiyê. Mas, as minhas pesquisas sobre o tema continuam. Analisei diversos outros aspectos que ainda não publiquei. O misticismo, por exemplo, visto sob a ótica da cultura norte-americana, assume uma outra dimensão. Chegam a dizer que a passividade política dos brasileiros pode ser atribuída ao misticismo, que no país, seria tão exacerbado que chega a prejudicar a gestão pública. O então presidente, José Sarney, é citado como exemplo em um artigo de 1988.

JU - Além do Rio e de Salvador, que outras regiões figuram nas reportagens?

Regina - Uma coisa que me surpreendeu foi observar que a região Sul é bastante representada com um foco totalmente diferente das demais. A região amazônica também comparece com freqüência.

JU - Quais seriam as maiores diferenças regionais, na visão dos repórteres do NYT?

Regina - A diferença básica é que a região Sul é, geralmente, retratada de forma idealizada, apontando para a relação que o próprio americano tem com o europeu. Aí são enaltecidos o progresso, o planejamento urbano, a competência dos administradores públicos na solução dos problemas sociais e econômicos, que também estariam presentes em outras regiões do país, e que, no entanto, não são resolvidos. Os estados de Santa Catarina e Paraná são o foco principal dessa retórica. Chegam a mencionar que a região Sul é um pedaço da Europa, como que perdido em meio ao caos tropical, indicando a presença de todas as ressonâncias do discurso do exotismo, do discurso colonial, que já foram explorados extensamente por diversos autores e pesquisadores brasileiros e estrangeiros.

JU - Pode-se dizer que se trata de uma visão eurocêntrica?

Regina - Sem dúvida. A região sul é construída discursivamente como um caso de “sucesso”, entendido no ideário do progresso. Atribui-se esse “progresso” ao fato de o Sul ter sido colonizado por europeus (alemães, italianos e poloneses), e também por ser prioritariamente habitado por descendentes de imigrantes europeus. Trata-se de uma questão de linha de descendência atuando como determinante na forma de organização social e política de uma determinada região. A presença dos outros habitantes da região, provenientes de outras etnias, é silenciada.

JU - E as demais regiões?

Martins – O restante irrompe como um Brasil caótico e miscigenado. Observa-se, de um modo geral, que o fator raça-etnia é prevalente na descrição dos brasileiros. Na representação sobre essa outra parte do Brasil, transparece um país mais relaxado, mais solto, cuja população ignora os problemas econômicos. O carnaval funcionaria como escape para esses problemas. Eles folclorizam bastante. Mesmo a descrição dos problemas sociais se aproxima de uma narrativa naturalista.

JU - De que forma?

Regina - Na exacerbação dos detalhes, por exemplo. Tive a curiosidade de comparar o enfoque dado a matérias sobre miséria no Brasil e nos Estados Unidos. Nos artigos sobre a miséria norte-americana, observei um discurso bem diferente. Por exemplo, artigos que relatam o crescimento da pobreza, nos Estados Unidos são muito criteriosos e sintéticos. Aí impera um discurso científico – publicam estatísticas, medidas que estão sendo implementadas para conter a miséria, trazem fontes relevantes para sustentar suas afirmações, de modo que, de miséria mesmo, sobra muito pouco. No caso da miséria brasileira, tanto a narrativa empregada, quanto o enfoque são bem diferentes; um aspecto a se destacar é o tom novelesco, apelativo, que os aproxima bastante da imprensa marrom. Vincula-se a pobreza, quase que exclusivamente, a questões sociais. Este descompasso, no campo representacional, pode ser facilmente observado na filmografia hollywoodiana, em que a violência é sempre “latina”, “negra”, ou obra de algum psicopata.

JU - E no caso do carnaval?

Regina - Na minha dissertação, há um capítulo sobre o carnaval. Numa reportagem, chegaram a escrever que as fantasias das escolas de samba do Rio têm tantas penas que é difícil acreditar que um pavão sequer permaneça vivo com penas em qualquer lugar do planeta...Tem muita ironia. Em outro caso, retratam o bloco “Mendigos de Ipanema”, fazendo um contraponto entre esse bloco e os demais. Tecem toda uma retórica novelesca a respeito deste bloco. Muita crítica social que, no entanto, é atravessada pela própria dificuldade que eles têm de lidar com as diferenças.

JU - A que você atribui essa tendência a carregar na tinta?

Regina - É o jornalismo-ficção levado ao limite, com uma boa dose de sarcasmo. Agora, não cabe territorializar as associações freqüentes de um conjunto de associações temáticas, tais como a miséria, impunidade, violência, etc. aos países de “ terceiro mundo”, conforme apontam autores como Koptiuch, pois, hoje, elas se encontram nos inúmeros aglomerados urbanos do planeta. Trata-se, do meu ponto de vista, de uma estratégia política, à semelhança do que se fez com o Oriente, como Said já denunciava em 1978. Como o próprio EUA faz, hoje, com o Iraque. Essa prática constrói identidades e depois legitima ações políticas. Bhabha, por exemplo, atualmente professor em Harvard, discute essas questões. Um outro ponto que é muito interessante é a ênfase atribuída à questão da etnia na construção das representações do samba. Eles enfatizam, com freqüência a etnia; que o samba veio da África...

JU - Há um componente racista nessas abordagens?

Regina - Certamente. Um trabalho de Frances & Tator (Editora da Universidade de Toronto, 2002), em que são analisados 500 artigos publicados na mídia canadense entre 1992 e 1996, atribui a uma prática racista a freqüente associação de determinados grupos nacionais, no caso deles jamaicanos e vietnamitas, à dança, à música e ao esporte. É aí que esses nacionais poderiam ter destaque. No final da minha dissertação, aponto para o desenho de dois Brasis. Um que é o desenvolvido e organizado, porque habitado e colonizado por europeus; e há o Brasil da dança, do misticismo, da música...

JU - Além dessa visão reducionista, o que mais você constatou?

Regina - Cabe ressaltar que a percepção, de certa maneira, é uma simplificação porque as representações são interpretações. Mas, é importante enfatizar também que há um grau de ironia muito grande; os textos se aproximam do escárnio. Este é um dos fatores que indicam que a dimensão ética tem que entrar no escopo da discussão sobre a liberdade de imprensa. O NYT parece ficar muito à vontade para ironizar. Li, por exemplo, um artigo sobre o Dr. Fritz, que é emblemático nesse âmbito. Indica claramente que eles ficam à cata de operações espirituais e de outros temas exóticos. Abrem o artigo descrevendo uma operação espiritual, da seguinte maneira: “sem usar nenhum tipo de anestesia, o poderoso Doctor Fritz ...”. A propósito da construção desses estereótipos para o país, cabe lembrar que há inúmeras versões nacionais desse feito. Com efeito, somos reduzidos a tudo o que se considera “indesejável” na modernidade. Mas, o Brasil a se destacar não é só o caótico. A marca que se cria para o país com esses estereótipos afeta, e tem sérias implicações sociais, políticas e econômicas para os seus habitantes. Cabe uma reflexão, também, acerca de quais setores da sociedade se beneficiam, obtêm lucro com essas imagens negativas, tanto no Brasil quanto no exterior. O estereótipo, do meu ponto de vista, constrói também formas de subjetivação importantes para os brasileiros. Um dos fatores que contribui para essas “marcas negativas” aderirem é a nossa velha baixa auto-estima, como apontam autores brasileiros como Luiz Fernando Veríssimo, Contardo Calligaris, Eni Orlandi, Maria José Coracinie e Graça Capinha, entre outros.

JU - Que análise você faz do episódio envolvendo o presidente Lula?

Regina - A linguagem, a ausência de fontes relevantes, a velha retórica não foram uma surpresa. Entretanto, o fato de terem dedicado um artigo inteiro aos “supostos hábitos etílicos de um presidente”, com tamanha ironia, foi digno de nota. Por outro lado, após a publicação, me pareceu muita arrogância do NYT, o fato de o jornal não se retratar. Este é um momento oportuno para se falar na abordagem, por vezes tendenciosa, do NYT. Um exemplo disto é a cobertura do jornal acerca de Peter Holman, jornalista britânico, preso e expulso de Israel no dia 28 de maio, que aparece em apenas um artigo do NYT, no dia 30. Digno de nota, o fato de o NYT não mencionar “expulsão”, o que ocorre nos quatro artigos publicados a respeito da possível expulsão de Larry Rohter, entre os dias 12 e 15 de maio. Uma análise comparativa entre as coberturas dos dois casos apresenta diversas discrepâncias. O momento é propício também para se falar em retratação. Em um artigo publicado no dia 26 de maio, os editores do jornal não só se retratam, como indicam os artigos em que admitem ter havido incorreções na cobertura da guerra do Iraque. Possivelmente, avaliando que este mea culpa não tenha sido suficiente para conter o estrago na imagem, causado por episódios sucessivos, que vêm, há anos, maculando a confiabilidade do mítico jornal, sendo o caso do jornalista Jayson Blair, em 2003, o mais comentado no Brasil, o ombudsman, Daniel Okrent, empossado em dezembro, admite que houve uma cobertura parcial da Guerra do Iraque. Nessa matéria, publicada na edição dominical de 30 de maio– “Weapons of Mass Destruction? Or Mass Distraction?” (“Armas de destruição em massa? Ou de distração em massa?”) – Okrent atribui essas incorreções à “distração” ou à “ ânsia por furos” e assume que o fracasso não foi individual, mas institucional – “ The failure was not individual, but institutional”–. Resta indagar se esta justificativa – “dizer que foi distração” – será incorporada, a partir de 30 de maio, à cartilha de melhores práticas do jornalismo internacional e nacional. Agora, com relação ao episódio envolvendo a matéria publicada por Rohter, considero que ela foi importante na medida em que propiciou a reflexão, instalou uma discursividade, na sociedade brasileira, em torno de temas fundamentais, entre outros – “imagem do Brasil no exterior”, “imprensa internacional” e “liberdade de imprensa”– ou seja, foi possível discutir esses assuntos sob diferentes óticas. Ao incluir esses tópicos na pauta de discussões do episódio, a imprensa nacional contribuiu, sem dúvida, para estimular a reflexão sobre esses assuntos. Estes são, a meu ver, alguns dos desdobramentos positivos dessa passagem.

Ilustração: Phélix


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