Entrevista
Jaguaribe revê a história,
fala do presente e projeta o futuro
ÁLVARO KASSAB
O cientista social Helio Jaguaribe é um homem afável. E modesto. No trato e nas coisas relacionadas às suas atividades profissionais. O currículo enviado por ele à redação do Jornal da Unicamp, por exemplo, é minimalista. Omite deliberadamente muitas das ações de um intelectual que se dedica há pelo menos 60 anos à idéia de um Brasil menos desigual. A falta de vaidade se estende da mesma forma às convicções pessoais. Jaguaribe reconhece, sem meio-tom, que tem hoje posições distintas daquelas que possuía nos tempos do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), centro de estudos fundado por ele e por outros intelectuais, em meados da década de 50, que funcionou como núcleo irradiador de idéias e de políticas públicas inovadoras.
Aos 82 anos, Jaguaribe continua uma usina de idéias. Atuando como pesquisador e decano emérito do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (Iepes), cuja sede fica no Rio de Janeiro, o cientista social é um observador atento das cenas política e econômica. A entrevista que segue funciona como uma espécie de síntese desse exercício de observação. No campo econômico, Jaguaribe prescreve sua receita para o crescimento do país: defende o que ele denomina de “desequilíbrio criativo” e critica a opção do governo Lula pela ortodoxia. Em sua opinião, o Brasil não tem mais do que duas décadas para ingressar no bloco dos países desenvolvidos. Como não perder o trem? Reduzindo drasticamente os juros e, em última instância, criando uma poupança compulsória para os ricos, além de buscar parcerias com países vizinhos, sobretudo a Argentina. No campo político, Jaguaribe propõe uma aliança entre o PT e o PSDB. “O Brasil só tem solução se adotar majoritariamente um projeto social-democrata”, prega o cientista social, que relembra também os tempos do Iseb e analisa o papel do Estado contemporâneo.
Jornal da Unicamp O senhor acha que ainda há espaço para o projeto de nação preconizado pelos pesquisadores do Iseb nas décadas de 50 e 60?
Helio Jaguaribe Creio que sim, mas evidentemente adequado às condições contemporâneas, hoje marcadas pelo processo da globalização, pelo unilateralismo imperial do governo Bush e por outras circunstâncias que modificaram significativamente o cenário internacional.
JU - Em que medida o projeto de governo de Juscelino Kubitschek, que incorporou políticas gestadas no Iseb, se diferenciava dos demais?
Jaguaribe - Creio que este é um assunto que está na ordem do dia. De uma forma ou de outra, nos últimos tempos, este país tem procurado obter o equilíbrio monetário, fiscal e cambial em períodos anuais. Designo este exercício de modelo do equilíbrio estático, cuja característica é a de ser conveniente para países desenvolvidos, e catastrófico para países em processo de desenvolvimento, sobretudo os emergentes, que estão tentando crescer e ficam paralisados. Essa é razão pela qual o Brasil está parado nos últimos 20 anos. Lamentavelmente, o governo Lula continua com essa obsessão pelo equilíbrio estático. O resultado é a estagnação ou o crescimento em taxas muito modestas. Creio que é necessário voltar ao que chamo de modelo de equilíbrio dinâmico, não por acaso adotado por Kubitscheck e por outros países que estão tendo crescimento acentuado.
JU - No que consiste este modelo?
Jaguaribe - Em se admitir
que a idéia dos equilíbrios macroeconômicos
é indispensável, mas precisa ser
subdividida sob dois aspectos. Primeiro, no que
diz respeito às contas de custeio do Estado
e às contas de inversão. No caso
das contas de custeio do Estado, é necessário
manter o modelo do equilíbrio estático
anualizado. Em relação às
operações relacionadas com inversões,
é preciso adotar um modelo distinto, que
é o de equilíbrio dinâmico.
Consiste em se aceitar, dentro de condições
muito estudadas, o que se poderia chamar de um
desequilíbrio criativo por um certo período,
em virtude do qual se proporciona um forte impulso
para que o crescimento econômico se realize
e projete o país para um patamar de desenvolvimento
significativamente superior ao inicial. No final
desse período, se deve, aí sim,
conseguir o equilíbrio macroeconômico.
Ou seja, projetar um crescimento na base de períodos
mais amplos, em vez da anualidade.
JU - Qual seria o período ideal para a sua implementação?
Jaguaribe - O de um mandato presidencial de quatro anos, por exemplo. Seria feita uma projeção para esse período, possibilitando que no quarto ano fosse recuperado o equilíbrio macroeconômico. Foi o que fez Juscelino. Embora não tenha dado o nome de modelo de equilíbrio dinâmico, examinando-se a realização kubitschekiana, observa-se que foi exatamente isso que ocorreu.
JU - Nesse contexto, o ideário do Iseb foi muito importante. Quais foram os principais legados da ideologia desenvolvimentista e da fixação de identidades nacionais?
Jaguaribe - Examinando a situação do Brasil, tanto no passado remoto como no recente, o Iseb identificou uma situação de aliança entre a burguesia mercantil e o latifúndio rural. Usou-se a expressão latifúndio-mercantilista para caracterizá-la. Esse estado de coisas predominou, sobretudo, nos períodos que precederam o segundo mandato de Vargas e o governo de Juscelino pela muito modesta capacidade de crescimento das exportações de produtos agropecuários e puramente minerais, e pelo baixo preço internacional dessas mercadorias. O Iseb então recomendou uma modificação profunda.
Em vez de ser um súdito do mercado, o Estado precisar ser seu regulador autônomo
JU - Quais eram as bases dessa reforma?
Jaguaribe - Era sair, sem prejuízo, da produção agropecuária e mineira, para um forte esforço de industrialização, que teria inicialmente características de substituição de importações, aumentando, portanto, a margem de auto-abastecimento do país. Num segundo momento, quando se conseguiu um nível adequado de industrialização, apostou-se na exportação de produtos de alto valor agregado. O Iseb recomendava também uma modificação nos campos social e político, que preconizava a transformação da hegemonia do sistema latifúndio-mercantilista em uma aliança entre a classe obreira e a classe industrial, gerando uma burguesia modernizadora do ponto de vista nacional, com apoio da classe média tecnocrática. Esse legado foi assumido pelo segundo governo Vargas e por Kubitschek.
JU - O Iseb apostou numa visão sistêmica que praticamente introduziu conceitos de políticas públicas em várias esferas. Qual foi a importância dessa aposta?
Jaguaribe - Aí entram várias considerações. Começo recuando um pouco, dizendo o seguinte: creio que os países ocidentais se dividem em dois grupos. De um lado, temos os países anglo-saxões e alguns nórdicos, seguidores de Adam Smith; de outro, países colbertianos, como acontece com a França, Espanha, Portugal, Itália, e por decorrência com a América Latina. Estes últimos trouxeram, da virada do século 16 para o 17, a tradição cultural do Estado como promotor de iniciativas importantes, seja assumindo diretamente a produção, ou lançando programas assumidos em seguida pela iniciativa privada. Acho que esse tipo de sociedade e de cultura requer uma atuação muito dinâmica do Estado. Ou nas condições que marcaram o período anterior, nas décadas de 50 e 60. O Iseb foi um grupo de intelectuais de várias origens e especialidades que, nos anos 50, desenvolveu no Rio de Janeiro uma visão coerente e abrangente do Brasil, e do seu processo de industrialização e desenvolvimento. Confesso que eu próprio tenho hoje posições distintas das que eu tinha no período do Iseb, porque o desenvolvimento isolado de países sul-americanos não é mais possível ou em condições um pouco diferentes do momento que estamos vivendo, no qual, entretanto, o Estado não pode deixar de ter uma atividade promocional e inovadora. Em vez de ser um súdito do mercado, o Estado precisar ser seu regulador autônomo.