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Livro recém-lançado decifra códigos
usados pelo artista italiano em afresco da Capela Sistina
Pesquisadores dissecam
lição de anatomia de Michelangelo
CLAYTON LEVY
Em meio aos afrescos que pintou no teto da Capela Sistina, no Vaticano, Michelangelo Buonarroti espalhou ossos, nervos, músculos, vísceras, artérias e órgãos humanos que permaneceram ocultos desde 1512, quando o gênio renascentista concluiu o trabalho encomendado pelo Papa Julio II. O segredo, porém, ignorado durante quase cinco séculos, acaba de ser desvendado por dois pesquisadores da Unicamp, que conseguiram identificar e decifrar um código criado pelo artista para revelar as peças anatômicas pintadas de forma velada nas imagens principais. O resultado do trabalho, surpreendente tanto pelo lado científico como no aspecto artístico, está no livro “Arte Secreta de Michelangelo: uma lição de anatomia na Capela Sistina”, que o médico Gilson Barreto e químico Marcelo Ganzarolli de Oliveira estão lançando pela editora ARX.
Código está em todas as obras
A identificação de estruturas anatômicas ocultas na obra de Michelangelo não chega a ser uma novidade, mas a descoberta dos dois brasileiros traz fatos novos que podem mexer com o mundo da ciência e das artes. Em 1990, o neurologista norte-americano Frank Lynn Meshberger publicou um artigo no “Journal of the American Medical Association” descrevendo uma analogia entre o cérebro humano e “A criação de Adão”, uma das principais cenas no teto da Sistina. Dez anos depois, foi a vez do nefrologista Garabed Eknoyan, também dos Estados Unidos, encontrar o formato de um rim no manto da figura do Criador em “A separação das águas e da terra”, publicado no jornal científico “Kidney International”. Ambos, porém, não foram além desses casos isolados e o tema perdeu força no meio acadêmico.
Agora, o trabalho dos dois brasileiros promete reacender o debate em torno do assunto, trazendo ao centro das discussões uma descoberta inédita em pelo menos dois aspectos: primeiro, a identificação de um código secreto para revelar as peças anatômicas ocultas. Até hoje, ninguém havia atentado para isso. Segundo, o fato desse código estar presente em todas as cenas pintadas no teto da capela. Na interpretação dos autores, isso afastaria por completo a hipótese de tudo não passar de mera coincidência ou ilusão de ótica. Essas duas novidades, por si só, podem dar novo rumo ao estudo da obra e do perfil psicológico de um dos maiores gênios da Renascença.
“Para nós, está claro que Michelangelo deixou pistas apontando para os órgãos humanos que ele quis destacar de forma velada nos afrescos”, afirma Barreto. Formado pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, com especialização em cirurgia, ele diz que estas pistas aparecem de forma pictórica ou iconográfica. “É uma espécie de jogo em que algo está oculto e os indícios levam os investigadores à solução do enigma”, explica. Segundo ele, Michelangelo utiliza vários recursos para deixar evidente essa intenção. No livro, os autores defendem a tese de que o conjunto de pistas está presente não apenas dentro da cena como também em seus adornos.
Dentro das cenas, os pesquisadores mapearam pelo menos quatro fatores que podem conter o código secreto: a posição das figuras, que muitas vezes expõem a parte do corpo que Michelangelo “camuflou” em algum outro ponto (na maioria dos casos, nas dobras das vestimentas); a direção de seus olhares (em alguns casos, os personagens estão olhando para a parte do corpo que corresponde à estrutura anatômica oculta no conjunto da cena); o movimento das mãos, que costumam apontar a peça anatômica escondida; e a região do corpo em que há maior luminosidade. Nos adornos, os autores chamam a atenção para os ignudi (homens nus), que freqüentemente imitam a posição da figura principal, evidenciando a estrutura oculta; os querubins, que indicam com as mãos a peça anatômica camuflada; os nichos em que foram pintados pares de escravos, nos quais os ramos mais evidentes apontariam, no corpo do escravo, a região correspondente ao órgão escondido.
Decifrando esse código, os autores identificaram 32 peças anatômicas espalhadas pelo teto da Capela Sistina. Algumas são mais evidentes enquanto outras exigem o olhar treinado de um anatomista para serem identificadas. Uma das cenas mais fáceis de serem decifradas é “A criação de Eva”, onde o manto de Deus corresponde à estrutura de um pulmão. A pista, nesse caso, é o tórax de Adão aberto do lado esquerdo. “Se fizermos uma incisão como aquela enxergaremos a lateral do pulmão exatamente da forma como está pintado o manto de Deus”, explica Barreto. Na mesma cena, o tronco de árvore sobre o qual Adão repousa representa uma forma muito semelhante à de um segmento de árvore brônquica. “Concluímos, portanto, que essa estrutura complementa a representação do pulmão”, diz Barreto.
Outra imagem que chama atenção é a figura do profeta Joel. Desta vez, segundo os pesquisadores, Michelangelo conseguiu reproduzir o osso temporal direito, incluindo as estruturas do ouvido, como o poro acústico externo, o arco zigomático e a emergência do nervo facial. Na cena, Joel aparece lendo uma carta estreita e comprida, enrolada apenas na mão direita, sendo que a outra extremidade, na mão esquerda, é pontiaguda. Comparando a pintura com a lateral direita de um crânio humano, pode-se concluir, de acordo com os autores, que a carta, na verdade, corresponde ao arco zigomático e à emergência do nervo facial, enquanto a estrutura triangular na qual Joel apóia o braço direito representa o poro acústico externo. Já o manto sobre as costas e braços do profeta delimita o contorno superior do osso temporal em forma de arco.
Há, porém, segundo os autores, cenas em que aparecem estruturas anatômicas mais complexas, nas quais o pintor revela enorme capacidade criativa aliada a um profundo conhecimento sobre anatomia. No quadro “O sacrifício de Noé”, por exemplo, o artista teria desejado mostrar as articulações do punho. O feixe de lenhas carregado por uma das figuras em pé seria a representação do feixe de tendões que compõem essa parte do corpo. “Cada tora de madeira equivale a um tendão”, diz Barreto, acrescentando que o braço direito da figura corresponde à fáscia que cruza transversalmente o feixe de tendões. Nesse caso, uma das pistas é a figura de um jovem em primeiro plano que entrega as vísceras de um carneiro a outro jovem. Nesse gesto ele aparentemente examina o punho daquele que recebe as vísceras.
Outra imagem que revela estruturas anatômicas complexas aparece no quadro “O pecado original”. Nesta cena, em que os personagens aparecem cometendo o pecado original e em seguida sendo expulsos do paraíso, os autores identificaram um complexo sistema de artérias. Segundo Barreto, um pequeno tronco junto ao dorso de Eva é uma descrição precisa do arco aórtico com as coronárias emergindo da base, o tronco braquicefálico, artéria carótida comum, artéria carótida interna e externa. As pistas que indicariam a intenção do pintor estariam no anjo que, ao ordenar a expulsão do casal, aponta a espada para a região cervical de Adão, que estica o pescoço, flexionando a cabeça para a esquerda.
Um apaixonado pela Medicina
Michelangelo começou cedo na arte de dissecar cadáveres. Tinha apenas 13 anos quando participou das primeiras sessões. A ligação do artista com a medicina foi reflexo da efervescência cultural e científica do Renascimento. A prática da dissecação, que se encontrava dormente havia 1.400 anos, foi retomada e exerceu influência decisiva sobre a arte que então se produzia. “O Michelangelo anatomista costuma ser negligenciado pelos historiadores, e conhecê-lo melhor é fundamental para compreender como seu profundo conhecimento anatômico ficou registrado e escondido, até hoje, em sua obra”, dizem os autores.
Segundo Ascanio Condivi, assistente de Michelangelo e autor de uma de suas primeiras biografias, a maioria dos corpos dissecados pelo artista era de criminosos executados, mas alguns provinham de hospitais. Em uma passagem de seu livro sobre os problemas de saúde e as dificuldades de Michelangelo para trabalhar na velhice, Condivi reforçou a intensidade dessas sessões: “ a manipulação por tanto tempo de cadáveres afetou seu estômago de uma forma tal que ele já não come nem bebe direito”.
O envolvimento de Michelangelo com a dissecação de cadáveres era tão intenso que o artista chegou a pensar em transformar seu conhecimento num tratado de anatomia. A idéia não vingou, mas sua arte oculta, gravada no teto da Capela Sistina e agora revelada pelos dois pesquisadores da Unicamp, talvez tenha sido a lição de anatomia mais genial de que a humanidade tem notícia.
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Numa noite, 3 descobertas
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Os dois pesquisadores levaram pouco mais de um ano para concluir o trabalho, mas a história que levou à publicação do livro começou há quinze anos, quando Gilson Barreto, então estudante de medicina, visitou pela primeira vez a Capela Sistina, no Vaticano. “Gênio”, disse ele em voz baixa ao olhar para obra de Michelangelo sobre sua cabeça. Ao percorrer as nove cenas do vão central, seu olhar se fixou num detalhe do afresco “O pecado original”. Embora uma árvore antropomorfomizada, com a figura feminina da tentação, seja o detalhe mais chamativo, a atenção de Barreto foi especialmente atraída para um pequeno toco árido com um ramo apontado para cima ao lado de Eva.
Com os estudos de anatômicos ainda frescos em sua mente, Barreto enxergou naquele pequeno toco o arco aórtico dissecado. Não havia dúvidas: o ramo apontado para cima correspondia ao tronco braquiocefálico e à artéria carótida comum, que se bifurcava na carótida interna e externa, como esperado. “Notei também que na sua base estavam representadas as artérias coronárias direita e esquerda, que emergem da aorta e descem sobre o músculo cardíaco”, conta. Na época, embora impressionado, o futuro cirurgião não deu muita importância ao fato.
De volta ao Brasil, Barreto concluiu a residência médica e especializou-se em cirurgia de cabeça e pescoço. Ao mesmo tempo, crescia seu interesse pela pintura. Foi então que o artigo do médico norte-americano Frank Lyn Meshberger, associando a cena de “A criação de Adão” com a imagem de uma caixa craniana, publicado em 1990, trouxe de volta à memória de Barreto a experiência vivenciada anos antes na Capela Sistina.
O artigo de Meshberger era tão preciso que Barreto providenciou um slide da figura para apresentar como recurso didático em suas aulas de cirurgia. Em 2003, quando procurava esse slide numa pilha de caixas em seu escritório, o médico teve um insight: “se na cena da criação de Adão Michelangelo fizera uma representação do crânio, não teria também desenhado outras peças anatômicas nos demais afrescos?” Começou a folhear seus livros de arte. Varou horas comparando as cenas da capela com imagens anatômicas reais. “Três descobertas se sucederam naquela noite”, conta.
Na manhã seguinte, com uma pilha de livros nos braços, correu para a casa de seu amigo e vizinho, o professor e pesquisador do Instituto de Química da Unicamp, Marcelo Ganzarolli de Oliveira. Interrompeu o café da manhã e espalhou o material sobre a mesa. Uma a uma, foi mostrando as cenas e comparando-as com as peças anatômicas. Perplexo, Oliveira passou o resto da manhã analisando as imagens junto com Barreto. Começava ali a parceria que resultaria no livro recém-lançado.
Os dois empreenderam um cuidadoso levantamento de informações investigando diversos bancos de dados até chegarem à conclusão de que os afrescos de Michelangelo na Capela Sistina revelam a iconografia de uma aula camuflada de anatomia. “Talvez jamais saibamos o que o levou a representar de forma camuflada as peças anatômicas”, escrevem os autores na introdução da obra. “No entanto, uma vez feita essa descoberta, é inevitável querer saber mais sobre o artista e a época em que ele viveu”, completam.
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