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Diferenças e paradoxos entre o público e o privado
inspiraram tese de doutorado de jornalista

Os blogs, quem diria, viram
tema de estudo na academia

ROBERTO COSTA

A jornalista Fabiana Komesu, autora da tese de doutorado: vasculhando 150 blogs pessoais (Foto: Antoninho Perri)"Meu Deus... Sinta a gravidade de minha situação. É noite de sábado, quase meia-noite, tenho 23 anos e sabe o que estou fazendo neste exato momento? Costurando os buracos das minhas calcinhas... Jesus, a que ponto chegamos...". "Francamente, para que eu sirvo então? Tá certo, a experiência que ele [o chefe] tem nem se compara com a minha, mas será que ele não é capaz de reconhecer que outras pessoas podem ter grandes idéias além dele? Palhaçada".

Número de blogs na rede chega a 10 milhões

Os relatos acima são de Pandora, jovem de Blumenau, em Santa Catarina, redatora, segundo ela “sem carteira assinada” e que odeia o chefe, sempre renegando suas idéias. O desabafo de Pandora é um entre milhões de posts (mensagens) que os blogs passaram a mostrar a partir do ano 2000, quando o novo meio de comunicação virtual invadiu a internet. “Foi o suposto paradoxo entre o público e o privado que chamou minha atenção para o fenômeno da escrita”, conta a jornalista Fabiana Komesu. Entre 2001 e 2003 ela passou por 150 blogs pessoais, dentre os que são associados a diários íntimos, detendo-se em 53 deles – 28 femininos e 25 masculinos. O resultado da pesquisa se transformou na tese de doutorado “Entre o público e o privado: um jogo enunciativo na constituição do escrevente de blogs da internet”, defendida em 17 de maio no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.

Na tese orientada pela professora Maria Bernadete Abaurre, Fabiana concluiu que o blog não pode ser tomado como equivalente ao diário íntimo em versão digital. Acredita que o modo de enunciação dos escreventes dos blogs pesquisados é fundado no jogo enunciativo entre a “publicização de si” e a intimidade construída com o co-enunciador. “Essa relação dinâmica pressupõe necessariamente o ethos de um leitor participante, seja por meio da emissão de comentários, de e-mails ou da passagem contabilizada no site do enunciador”, diz.

A finalidade do gênero e dos sujeitos nos blogs pesquisados é “fazer ver e ser visto”, com a exposição de uma imagem de sujeito vaidoso na internet. “Blog pra mim serve, antes de tudo, ‘pra desabafar’. Escrever sempre foi a minha catarse e hoje não vai ser diferente. Especialmente hoje, eu tô precisando desse espaço meu. Que não é só meu, eu sei, mas onde eu me entendo e me vejo melhor através dos olhos do outro”, registra outro blog analisado pela jornalista.

“Trata-se da valorização de um gênero por meio do qual se imagina tudo dizer. O escrevente sabe que não fala apenas para si. O objetivo do blog é a busca do outro”, explica Fabiana. Nesta busca o autor de blogs sujeita-se a tudo. Em razão disso é classificado como genial e criativo por uns e maluco ou visionário por outros. A satisfação de ver o contador de visitas aumentar e a proliferação de novos comentários às suas colocações estimula mais e mais posts. Não é à-toa o fato de existirem atualmente na rede mais de 10 milhões de blogs, conforme o site, que monitora e atualiza a cada momento estes dados.

“Acredito que os blogs são efeitos de poder de uma sociedade que positiva suas ações na consolidação da idéia de liberdade de expressão do indivíduo que tudo pode falar a respeito de uma faceta íntima de sua personalidade em público”, define Fabiana Komesu. “O próprio meio faculta novas formas de acesso à informação para que o indivíduo possa comentar ininterruptamente todo e qualquer assunto a todos e a qualquer um na sociedade”, acrescenta a pesquisadora.

Fabiana Komesu considera que os blogs que estão em rede, sem a solicitação de senha, são de acesso público, e o que estava nas páginas que consultou era suficiente para analisá-los. Na revisão que efetuou, antes da defesa da tese, Fabiana registrou que 22 dos 53 blogs estudados estavam fora do ar, 18 continuam com atualizações e os demais, embora permaneçam, estão desatualizados. “Catarro Verde”, “Diário do pão com manteiga na chapa”, “Meu querido Etheobaldo: porque fazer blog é mais barato que pagar analista”, “Papo calcinha”, “Perdida no Paraíso: eu não estou vivendo, só estou matando o tempo num blog”, que marcaram a primeira fase dos blogs da internet, certamente não deixariam a rede para ingressar na academia se não tivessem chamado a atenção de tanta gente.

Sem blog e home page – Curiosamente Fabiana Komesu, uma especialista em home pages pessoais – tratou delas na dissertação de mestrado – não tem a sua e muito menos um blog, tema de seu doutorado. “Mas tenho projetos para fazer”, diz, aliviada com a defesa do doutorado e pensando no futuro. “Se fizer um blog será voltado a dividir coisas profissionais”, projeta.

Fabiana aprecia blogs de profissionais da comunicação como os de Cora Rónai, Paulo Markun, Marcelo Tas e Pedro Dória, entre outros. Não deixa de passar sempre pelas páginas do site nominimo.com, um de seus favoritos. A jornalista especializada em blogs teve pouco tempo para se dedicar ao jornalismo. Nem bem saiu da faculdade e já estava fazendo a dissertação na Unicamp, que emendou com um programa sanduíche na França, em 2002 e o doutorado. Nas redações, mesmo, passou por um estágio no Jornal de Limeira, por uma breve cobertura de férias no Agrocast, da Agência Estado, e pelo Curso Abril de Jornalismo, onde recebeu propostas de duas revistas do grupo mas preferiu a Academia.

Acaba de receber uma bolsa Jovem Pesquisador da Fapesp. Vai desenvolver o projeto “Oralidade e Letramento: o estudo da escrita no contexto da tecnologia digital”, no Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce) da Unesp, campus de São José do Rio Preto. O objetivo é estudar a relação oral/escrito em materiais diversos provenientes da internet.

Rafael hoje deixa de lado o pão com manteiga na chapa

O universitário Rafael Capanema: textos que fugissem das convenções do jornalismo (Foto: Divulgação)Entre o final de 2001 e o início de 2002, o blog “Diário do pão com manteiga na chapa” era um dos mais acessados da Internet. Seu autor, Rafael Capanema, na época com 16 anos, virou personalidade da rede. Em 25 de outubro de 2001 ele registrou no blog: “Hoje eu comi pão com manteiga na chapa às 13h14min. Utilizei pão da padaria Lisboa, manteiga Aviação e sal Cisne”. Seus posts repetiam, à exaustão, frases semelhantes, descrevendo detalhes do pão comido naquele dia. Hoje, aos 20 anos, aluno do terceiro ano de jornalismo da Cásper Líbero, em São Paulo, Rafael raramente come pão com manteiga na chapa.

Faz dois anos que Rafael não escreve em blogs. Toca numa banda e realiza estágio de comunicação no Centro Latino-Americano de Ciências da Saúde (Bireme), em São Paulo. Sente-se “um pouco constrangido” quando relê os textos que escrevia aos 16 anos, “com erros de português, estilo juvenil e opiniões com as quais eu mesmo não concordo hoje em dia”. Rafael Capanema concedeu a seguinte entrevista ao Jornal da Unicamp:

Jornal da Unicamp - Você ainda come pão com manteiga na chapa com pão da padaria Lisboa, manteiga Aviação e sal Cisne?
Rafael Capanema -
Raramente. Depois que eu comecei a fazer estágio, passo pouquíssimo tempo em casa. Só vou lá para jantar e dormir. Atualmente, só como pão com manteiga na chapa nas padarias próximas ao meu local de trabalho. Ainda não achei nenhuma com o pão tão bom quanto o da Lisboa, padaria tradicional do Tatuapé, bairro onde moro.

JU – Como as pessoas te viam naquela época? Por quanto tempo escreveu seu blog?
Rafael - O “Sutil como um paquiderme” durou dois anos, aproximadamente. O “Diário do pão com manteiga na chapa”, talvez uns quatro meses. Na época, blog era algo muito novo e, por isso, um pouco incompreendido pelas pessoas. Talvez elas tivessem, na época, dúvidas sobre a minha sanidade mental, principalmente por causa do blog do pão com manteiga. Mas não passava de uma brincadeira boba minha, que acabou tendo uma repercussão maior do que eu esperava – até porque eu não esperava repercussão nenhuma.

JU - Fale um pouco de sua família na época do blog e hoje.
Rafael - Por um bom tempo, ninguém da minha família conhecia o blog. Não que eles não pudessem ler ou coisa parecida, mas é que eu simplesmente não o divulgava aos meus parentes. Até um dia em que o meu tio estava fazendo uma busca pelo nosso sobrenome (Capanema) no Google e encontrou meu blog. A partir daí, quase todos da família começaram a visitar o meu blog e o do meu primo Thiago. Hoje em dia, alguns parentes perguntam por que o blog terminou e pedem que eu volte a escrever.

JU - O estigma “pão com manteiga” ainda o persegue?
Rafael - Às vezes, alguns amigos mencionam o blog e eu recebo recados de ex-leitores no Orkut. Mas, por mais que o blog do “pão com manteiga” fosse esdrúxulo, eu acho que o pessoal ainda se lembra mais do “Sutil como um paquiderme”, porque ele durou mais tempo.

JU - Escrever blog o ajudou a optar pelo jornalismo?
Rafael - Quando eu comecei a escrever o blog, ainda cursava o terceiro ano do ensino médio, mas já estava decidido a prestar jornalismo. Conscientemente ou não, eu aplicava no blog técnicas de redação que aprendo na faculdade. Mas quem lia o blog sabe que o teor jornalístico dele era praticamente zero. Particularmente, quando ouço falar de “blog de jornalista”, eu bocejo. Não me interessam. Prefiro o jornalismo “tradicional”. Apesar de fazer a faculdade, eu usava o blog para escrever textos que fugissem das convenções do jornalismo. Não que eu não goste de escrever textos jornalísticos, pelo contrário. É que, nos blogs, tem-se uma liberdade muito maior, e eu me aproveitava disso. Num blog, eu posso ficar despreocupado com limite de caracteres, adjetivar os textos, usar palavras de baixo calão; tudo isso sem correr o risco de tirar uma nota baixa ou perder o emprego, por exemplo.

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