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Penas de papel
 

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Penas de papel

Fotos: (Reprodução)

Descendente de cherokees e seminoles apresenta estudo comparativo da imagem
indígena no Brasil e nos EUA

LUIZ SUGIMOTO

A antropóloga Sara Brandon (Foto: Antoninho Perri)Chamada muitas vezes de Pocahontas, tanto nos Estados Unidos como durante os quatro anos de estada no Brasil, Sara Elizabeth Brandon não se orgulha da comparação com a heroína de beleza exótica, por julgar que na cultura popular a personagem acabou transformada na representação da índia branca. Filha de pais mestiços e tendo nas veias um quarto de sangue cherokee e seminole, Sara é fiel às recordações dos rituais noturnos da avó, fazendo duas tranças nos cabelos e unindo as pontas, da sopa de tartaruga, do chá de sassafrás e da carne de caça. Contudo, outra recordação da infância a incomoda e permeia sua vida: a da sala de aula em Dia de Ação de Graças, quando se viu pintada e exibindo adereços de papel imitando penas, cercada por outros “indiozinhos brancos” – justamente ela, fantasiada segundo a imagem do índio que a sociedade dominante criou e disseminou ao longo de cinco séculos.

Penas de papel: Um estudo comparativo da imagem indígena no Brasil e nos EUA é o título escolhido por Sara Brandon para a tese de doutorado que acaba de defender no Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes (IA) da Unicamp, sob orientação do professor Marcius Freire. Formada em antropologia e artes na Universidade de Chicago, ela teve aulas com professores brasileiros como Roberto da Matta e Manuela Carneiro da Cunha, que contribuíram para que dirigisse seus olhos para cá. “Sendo uma descendente, sempre me interessei por misturas indígenas e comecei a pensar sobre o Brasil, que também passou pelo processo de formação de uma nação das Américas tomada pela Europa. Assim como nos Estados Unidos, existe aqui um conceito de índio criado através das imagens, pouco relacionado com a identidade e cultura de cada grupo indígena”, afirma.

Com outro professor brasileiro, Boris Kossoy, da USP, Sara Brandon aprendeu a ler a imagem como um documento, que esconde muito da história e pode ser estudada associada a fatos de época, o que permite compreender ideologias, inclusive aquelas que podem estar por trás dos desenhos, pinturas ou fotografias. O projeto de pesquisa concluído em quatro anos, que ela traduz como “jornada”, resultou em dois volumes totalizando 700 páginas, enriquecidas por extenso material iconográfico. “Abordei o período que vem desde a colonização dos dois países até o último número da revista Playboy. Para publicar a tese, terei que fazer muitos cortes”, justifica a pesquisadora.

A antropóloga Sara Brandon durante a defesa de tese: extenso material iconográfico (Foto: Antoninho Perri)“Até onde sei, não existe outro estudo comparativo entre comunidades indígenas dos Estados Unidos e do Brasil, sobretudo do ponto de vista da iconografia e durante período de tempo tão vasto”, afirma Marcius Freire, do Departamento de Cinema, ao destacar a originalidade do trabalho de sua orientada. O professor preocupa-se em esclarecer que, apesar do viés antropológico, não se trata de um estudo de antropologia, situando-se mais no cruzamento dos estudos culturais com a comunicação visual.

Lapidação – Dentro do caminho que escolheu, sustentando imagens com escritos da história, Sara Brandon mostra como foi sendo lapidado o conceito de índio que impregnou o imaginário da sociedade dominante e desumanizou os diversos povos nativos das Américas, isto já a partir de 1492, quando Cristóvão Colombo atingiu a ilha de San Salvador, nas Bahamas, e denominou os habitantes de “índios” porque acreditava ter atingido o leste das Índias. “Os colonizadores das Américas compartilharam um banco de informações sobre o índio que circulavam na Europa. Sendo assim, na imaginação européia, o ‘índio’ foi construído oficialmente através de várias ideologias simplesmente transferidas para o campo da imagem visual”, escreve.

Segundo Sara, esta “indianidade” foi erguida sobre dois conceitos iniciais: o “bom selvagem” (nativo romântico, defensor da natureza) e o “mau selvagem” (guerreiro, canibal, caçador de escalpos). Tais conceitos foram se transformando e recebendo novos elementos, quase sempre em consonância com as ideologias de época. No caso dos Estados Unidos, a imagem do “mau selvagem”, por exemplo, contribuiu para justificar massacres e transformar personagens como Daniel Boone, Búfalo Bill e David Crockett em heróis das batalhas contra os índios, na inexorável expansão para o Oeste. Mais tarde, com a submissão, remoção para reservas, desaparecimento e genocídio da população indígena, surgiram as imagens do índio enquanto “vítima”, membro de uma raça em extinção, e do índio “aculturado ou pacificado”, sem sua tribo, sua língua, sua religião e seus trajes, “assimilado” pela sociedade majoritária.

Uma síntese consistente de todo o material iconográfico, contando as transformações perpetradas pela sociedade branca no conceito do índio ao longo da história, seria inviável neste pedaço de página. No entanto, saltando para os nossos tempos, foram imagens dos navajos New Chast e Raven Blanket que Sara Brandon identificou na vitrine de um shopping de Campinas, servindo de chamariz para a venda de roupas. A pesquisadora também conhece bem o autor daquelas fotografias, Edward Curtis, cuja obra estuda a fundo porque refletia o discurso romântico da raça em vias de desaparecimento.

Popularizadas, tais imagens transformaram o índio americano em objeto de consumo. Na tese é reproduzido, por exemplo, um anúncio veiculado na mídia em que uma famosa modelo brasileira exibe outra foto clássica de Curtis – Comes Out Holy – estampada no biquíni que cobre seus seios e púbis. Na capa da Playboy brasileira de abril último, uma bela morena, que participou de um reallity show, faz o papel de índia; em fotos explícitas publicadas nas páginas internas, ela se lambuza de urucum, sob alusões como “a alegria do português”.

Por essas e outras, a pesquisadora não consegue evitar que eventualmente a indignação contagie o texto, dando-lhe uma conotação política que o professor Freire procura justificar: “Nos Estados Unidos, a militância faz parte da formação acadêmica de quem pertence a minorias étnicas e Sara se coloca como mestiça em seu trabalho. Ela defende que as culturas dos diferentes povos indígenas não são estáticas e possuem semelhanças e diferenças entre elas; povos que procuram passar os conhecimentos dos ancestrais para as gerações futuras e, ao mesmo tempo, não permanecem paralisados no tempo. Sara ainda é jovem e por isso carregou na tinta”, pondera.

Miscigenação – Devido à sua condição mestiça, Sara Brandon reserva o devido espaço à questão da miscigenação. Afirma que americanos e brasileiros devem boa parte de sua formação ao que chama de “trama do contato”, durante a colonização exploratória, e não a uma relação romântica entre mulher indígena e desbravador branco “como foi representado por muitos autores”. Para embasar sua opinião, lembra as ações de agricultores degredados ou criminosos que chegaram com os capitães às terras brasileiras e escravizaram indígenas em massa para usá-las ou vendê-las, enquanto a expansão para o Oeste americano também levou ao seqüestro de mulheres indígenas para serem vendidas como escravas, prostitutas ou se tornarem concubinas.

Ainda assim, a pesquisadora observa que o discurso nacionalista norte-americano negava a existência de indivíduos miscigenados ou de grupos indígenas não-estereotipados, arruinando o direito à autodeterminação dos indígenas. A respeito de direitos indígenas, Marcius Freire acrescenta uma informação que não consta da tese, referente aos critérios distintos adotados por Brasil e Estados Unidos para classificar as populações indígenas e, conseqüentemente, aprovar algum tipo de tratamento diferenciado por parte dos governos. “Aqui, estamos vivendo uma experiência efetiva com os chamados ‘índios ressurgidos’ do Nordeste, comunidades que reivindicam a origem indígena e a posse das terras onde vivem. O critério do governo é buscar as raízes culturais, recuperá-las e fazer com que as comunidades as assimilem”, explica.

Já nos Estados Unidos, segundo o professor, o Bureau of Indian Affairs (BIA) as autoridades revolvem a árvore genealógica: retraçam o percurso da família, verificam as misturas e exigem que a pessoa carregue certa cota de sangue indígena para obter benefícios. A afirmação de Sara Brandon de que possui um quarto de sangue cherokee e simonole, portanto, é precisa. “Essa questão da identidade, o fato de não ser nem branca nem índia, é complicada nos Estados Unidos, uma nação que se diz de formação anglo-saxônica”, ironiza a pesquisadora, que se acha mais exposta durante o verão, quando sua pele escurece.

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