Pesquisadores concluem que problemas
esvaziaram proposta original de setorialidade
Estudo revela desvirtuamento dos Fundos Setoriais
MANUEL ALVES FILHO
Lançados em 1999 pelo governo federal com o objetivo de contribuir para o fortalecimento do sistema de ciência e tecnologia (C&T) do Brasil, os Fundos Setoriais perderam com o tempo as bases teóricas e conceituais que lhes davam sustentação. A idéia da setorialidade, apontada inicialmente como original por vários segmentos, está hoje esvaziada em virtude de uma série de fatores, entre eles a ampliação do número de áreas a serem financiadas, o forte contingenciamento de recursos e a criação da Comissão de Coordenação dos Fundos Setoriais, que centralizou as decisões acerca da aplicação das verbas disponíveis nas mãos de representantes da União. A avaliação consta de estudo feito por uma equipe do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp. Segundo o professor Newton Müller Pereira, coordenador do trabalho, os Fundos Setoriais assemelham-se atualmente a “meras expressões contábeis”.
O estudo realizado pelos especialistas da Unicamp foi encomendado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), órgão vinculado ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. O objetivo do trabalho, conforme o docente, foi fazer uma avaliação do desempenho dos Fundos Setoriais, bem como dos impactos que eles têm causado no setor produtivo e no sistema de C&T do país. No relatório final, a equipe do IG concluiu que os Fundos Setoriais, que nasceram com uma proposta descentralizadora de gestão, transformaram-se numa espécie de “Fundão”, no qual o conceito de setor estratégico e a lógica que orienta a liberação de recursos já não podem ser entendidos por analistas externos. “Isso não significa que não haja uma lógica interna de gestão e de operacionalização do sistema. Acontece, porém, que ela não é transparente e não mantém mais a concepção que deu origem aos Fundos”, afirma Pereira.
O especialista lembra que os Fundos Setoriais foram implementados como mais um instrumento dentro da política geral de apoio à C&T. O maior diferencial dessa modalidade de fomento estava no papel desempenhado pelas empresas. Eram elas que deveriam formular as demandas nas áreas de pesquisa e desenvolvimento. Tradicionalmente, essa missão ficava a cargo dos órgãos governamentais ou da academia. Num primeiro momento, prossegue o professor Pereira, os Fundos nascem com um volume expressivo de recursos, da ordem de R$ 1,1 bilhão anual. O primeiro a ser criado foi o Fundo Setorial do Petróleo e Gás Natural (CT-Petro), seguido de outros quatro. Naquele instante, a iniciativa mostrou-se promissora e funcionou relativamente bem. Ocorre, porém, que a criação de vários outros Fundos atualmente são 15 determinou o início da descaracterização da proposta original.
Ou seja, a idéia de financiar o desenvolvimento de C&T em áreas estratégicas específicas começou a perder força por conta da generalização. “Os Fundos Setoriais, por definição, não têm uma abrangência muito grande, não cobrem toda a indústria de um país. Não se trata, portanto, de criar um para cada área disciplinar ou produtiva. A proposta original desse tipo de instrumento é fomentar setores estratégicos que disponham de conhecimento científico e tecnológico próprio e capacidade de investimento em C&T. Em outras palavras, segmentos que geram recursos para serem aplicados em C&T própria, mantendo-os na ponta dos desenvolvimentos tecnológicos”, ensina o docente do IG. Com o lançamento de 15 Fundos Setoriais, insiste Pereira, o conceito de setorialidade perde força, visto que todos eles querem uma fatia do dinheiro disponível. A esse fator, continua o especialista, veio se somar o problema do contingenciamento de recursos, medida adotada pelo governo federal para assegurar o cumprimento das metas de superávit fiscal.
De acordo com o estudo feito pela equipe do IG, o montante anual de R$ 1,1 bilhão jamais entrou efetivamente nos cofres do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), pasta à qual os Fundos Setoriais estão vinculados. De 1999 a 2003, os Fundos investiram apenas R$ 1,53 bilhão. Outro R$ 1,67 bilhão foi retido no mesmo período por conta da restrição fiscal imposta pelo Ministério da Fazenda. Assim, os compromissos de aumentar o aporte dos recursos para a C&T e de manter um fluxo constante de dinheiro para executar os projetos de pesquisa e desenvolvimento também caíram por terra. “Com o forte contingenciamento verificado a partir de 2000, as verbas foram suficientes apenas para recompor o nível histórico de investimento do MCT em Ciência e Tecnologia, que se apresentava decrescente”, diz o professor Pereira. Mas as mudanças não pararam por aí, como revela o estudo.
Quando foram implantados, os Fundos Setoriais dispunham de uma estrutura de gestão descentralizada. Os comitês de coordenação dos Fundos surgem constituídos por representantes do Ministério de Ciência e Tecnologia, da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do setor produtivo e da comunidade acadêmica. Inicialmente, segundo o professor Pereira, os membros desses comitês decidiam quais eram as prioridades do setor, que tecnologias deveriam receber financiamento e quais projetos mereceriam apoio. Em 2003, no entanto, o governo federal promoveu uma análise da gestão dos Fundos e concluiu que a descentralização era excessiva.
Por conta disso, foi criada a Comissão de Coordenação dos Fundos Setoriais. A nova instância tem como presidente o próprio ministro da Ciência e Tecnologia e conta com a participação de representantes da Finep, do CNPq e dos presidentes dos comitês de coordenação. Detalhe: a maioria dos comitês é presidida por pessoas também ligadas aos órgãos oficiais. Em outras palavras, o poder decisório, que era compartilhado no plano setorial, passou a ser exercido apenas pelo governo federal, o que resultou numa enorme chiadeira por parte dos segmentos empresariais, que se sentiram alijados. Uma das primeiras medidas adotadas pela Comissão de Coordenação, conforme o docente do IG, foi lançar uma nova modalidade de fomento, as chamadas “ações transversais”.
“Em razão dessa centralização, as demandas passam a não ter necessariamente origem nos comitês de coordenação e nem são tão estruturadas quanto antes. Surgem, então, novos tipos de pleitos, como os que partem de outros ministérios, que também demandam ciência e tecnologia, e de outras instituições pouco representativas no âmbito nacional. A soma de todos esses fatores resulta no que eu considero um afrouxamento da idéia de Fundo Setorial. Perdeu-se, portanto, toda a parte conceitual que embasava esse tipo de iniciativa, cujo registro encontramos na literatura e que propugna o apoio a setores específicos, considerados estratégicos ao desenvolvimento da ciência, tecnologia e inovação de um país”, analisa o professor Pereira.