Documentos primários dos arquivos da Universidade geram
centenas de livros, dissertações de mestrado e teses de doutorado
Acervos da Unicamp
são memória viva
LUIZ SUGIMOTO
Afro-brasileiro, análise literária, anarco-sindicalismo, apocalipse, artistas de rádio, belle époque, cólera, decadentismo, estratégia da esquerda, futebol, história das idéias, racismo, Revolta da Vacina, taylorismo, física quântica. Foi digitando palavras-chave que o físico e engenheiro civil Walker Lins, da Universidade Federal da Bahia, descobriu o acervo pessoal do professor Sérgio Porto no Arquivo Central (Siarq) da Unicamp e reuniu uma documentação primária fundamental para desenvolver sua tese de doutorado. É um trabalho de fôlego que vai resultar em dois livros que contam a História do Laser no Brasil: o primeiro refaz a trajetória de Sérgio Porto e analisa a introdução das pesquisas universitárias sobre o laser; o segundo discorre sobre o período posterior, focando o “espalhamento dessa radiação” no país e as contribuições para a sociedade brasileira.
“Credito significativa parcela da existência do meu projeto de história da ciência à qualidade dos serviços prestados no Siarq, tanto via internet como pessoalmente, quando aí estive em maio último”, afirma Walker Lins. A coleção de Sérgio Porto embasou muitos trabalhos, mas corresponde a pequeníssima parte dos 300 fundos documentais sob responsabilidade do Arquivo Central, entre os quais se incluem os arquivos científicos de Zeferino Vaz, fundador da Unicamp que escreveu muito sobre ensino superior no Brasil, e do físico César Lattes, o brasileiro que mais perto chegou do Prêmio Nobel, além de centenas de outros cientistas da Universidade.
“A diferença entre um centro de documentação como o nosso e uma biblioteca é que
trabalhamos com arquivos cujos conjuntos são formados, normalmente, por fontes primárias geradas a partir de um contexto jurídico-administrativo das instituições, ou então de produção pessoal, no caso de arquivos privados (relatórios, correspondências, anotações, manuscritos, imagens). Tudo isso requer do arquivista e do técnico um trabalho maior do que se pensa: precisamos interpretar a fonte, transformá-la em instrumento de referência e divulgá-la. A descrição de parte do arquivo de Sergio Porto, por exemplo, exige o auxilio de um cientista”, justifica Neire do Rossio Martins, diretora do Siarq.
O Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), ligado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), já está preparando a terceira edição de um catálogo contendo resumos de teses e dissertações de mestrado que tiveram seu acervo como fonte, no período que vai do início dos anos 1970 até 2001. Até agora foram publicados 165 resumos e estão preparados outros 74. “A expectativa é atingir o dobro desta quantidade, pois ainda falta coletar dados de 2002 a 2005. Além disso, perdemos contato com muitos autores de trabalhos antigos”, informa Silvia Rosana Modena Martini, da Seção de Pesquisa, que colabora neste trabalho de garimpagem.
Tanta procura pelo AEL se justifica, visto que ali está reunido um dos mais importantes acervos sobre movimentos sociais, história da industrialização, direitos humanos, história política e história da cultura. A Coleção Ibope traz todas as pesquisas de opinião pública realizadas pelo instituto desde os anos 1940. As coleções Brasil Nunca Mais e do Teatro Oficina há anos estão entre as mais consultadas. A coleção microfilmada de jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, que cobre todo o século 19 e boa parte do século 20, é similar à da Biblioteca Nacional. “Os tipos documentais mais utilizados são os jornais e manuscritos, mas a temática varia. Apesar da concentração de trabalhos em história e sociologia, também recebemos pesquisadores da educação, da lingüística, da medicina, e de universidades de todo o país e do exterior”, observa Elaine Marques Zanatta, supervisora da Pesquisa.
Memória – No Centro de Memória da Unicamp (CMU), sua diretora, professora Olga von Simson, vai puxando da estante um livro atrás do outro, todos frutos de teses de doutorado e de dissertações de mestrado desenvolvidas a partir de um acervo que contempla basicamente a memória de Campinas e região. “Temos um setor de publicações cujo objetivo é fazer circular, o mais rapidamente possível, tudo o que é produzido aqui. Para agilizar este processo, temos em nossa revista Resgate um espaço para publicação de artigos resumindo as teses, logo que são defendidas. Não adianta ficar na torre de marfim da universidade, é preciso encontrar um caminho para divulgar o conhecimento”, pondera.
O CMU também trabalha em co-edições com editoras universitárias e comerciais. Jaime Lisandro Pacheco, pesquisador do Departamento de Psicologia e Psiquiatria da FCM, doutorado em educação, terá sua tese publicada pela Editora Setembro, dando ao livro o título de Elos refeitos. Formando grupos de idosos no Lar dos Velhinhos e no Ambulatório de Neuropsiquiatria e Saúde Mental de Idosos do Hospital das Clínicas, Pacheco estudou a história de vida de trabalhadores assalariados que caem em depressão depois da aposentadoria, sem conseguir construir um novo círculo de amizades porque nunca tiveram outros interesses fora do trabalho. “Fala-se da memória como algo volátil, truncado, enviesado, que se perde no tempo. O CMU resguarda os dados para o futuro trabalhando-os no presente. Cada projeto é como plantar um carvalho”, opina.
Tendo um corpo técnico significativo com vários graduados em ciências sociais que atuam no arquivo histórico, arquivo fotográfico, história oral, biblioteca e laboratório de recuperação de documentos, Olga von Simson insiste para que todos continuem sua formação fazendo mestrados e doutorados, a partir da própria documentação do CMU. “Assim, eles não precisam se afastar de suas funções e passam a conhecer profundamente o próprio acervo. Vivendo a experiência de pesquisador, sentindo na carne a dificuldade de levantar e trabalhar os dados, eles constroem um relacionamento muito melhor com aqueles que vêm consultar o acervo”, observa.
Oswald – Criado em 1984, o Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio (Cedae), do Instituto de Estudos da Linguagem, integra em seu acervo arquivos pessoais, institucionais e coleções diversificadas. Ali estão coleções e fundos de Alexandre Eulalio, Oswald de Andrade, Cecília Meireles, Menotti Del Picchia, Abílio Pereira de Almeida e Hilda Hilst. A supervisora Flávia Carneiro Leão envia uma listagem com 13 dissertações de mestrado e dez teses de doutorado que tiveram o acervo como fonte, além de livros, publicações e exposições.
Paulo Duarte, um Dom Quixote brasileiro, tese de doutorado de Marli Guimarães Hayashi, mereceu destaque do Jornal da Unicamp em edição de abril de 2003. Para reconstruir a trajetória do polêmico advogado e jornalista, a pesquisadora vasculhou por seis meses o acervo pessoal de 60 mil peças que Paulo Duarte vendeu à Unicamp por 500 mil cruzeiros – entre livros e documentos trazendo um estranho carimbo em que as letras “p” e “d” formam uma caveira, encontram-se três capacetes de combatentes da Revolução de 32. Também foi tema de reportagem um livro da professora Marília de Andrade, filha de Oswald de Andrade, retratando a face pacificada de outro intelectual considerado um rebelde contumaz. Parte das fotos publicadas em Maria Antonieta D’Alkmin e Oswald de Andrade: Marco Zero está sob os cuidados do Cedae.
Sérgio Buarque – Na Biblioteca Central, a Coleção Sérgio Buarque de Holanda, adquirida pela Unicamp em 1983, já rendeu 13 dissertações de mestrado e uma de doutorado. A BC guarda um material bibliográfico rico e diversificado do intelectual brasileiro, nas áreas de história, ciências sociais, literatura e filosofia – são 8.513 livros, 227 títulos de periódicos, 600 obras raras e 74 rolos de microfilme, além da escrivaninha, máquina de escrever e troféus do historiador. Foi este cenário que o cineasta Nelson Pereira dos Santos filmou para o documentário sobre os 100 anos de nascimento de Sérgio Buarque. No Siarq, ainda estão 2.490 documentos pessoais e 210 fotografias.
“O pensamento dos grandes nomes da literatura e da ciência continua alimentando o trabalho de outros pesquisadores. Nós lidamos com a memória viva”, afirma Luiz Atílio Vicentini, diretor da BC. Tereza Cristina Carvalho, responsável pela área de Coleções Especiais, afirma que as obras raras também são muito consultadas por pesquisadores. Trata-se de obras datadas do século XV ao século XX, dificilmente encontradas em outras bibliotecas ou arquivos. O tema principal da coleção é a Brasiliana, livros sobre o Brasil escritos por viajantes.
Na lista de dissertações e teses apresentada pela Biblioteca Central, chama atenção a maioria de alunos vindos de outras universidades do país. Rodrigo Ruiz Sanchez, da Unesp de Araraquara, abordou no mestrado A questão da democracia em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, observando que no livro de estréia do autor “a preocupação com a questão democrática aparece ligada ao nosso passado, mas logicamente com o objetivo de explicar o presente”. Democracia no Brasil, Sérgio Buarque de Holanda e Raízes do Brasil são as palavras-chave sugeridas pelo estudante.
O valor do microfilme
O Arquivo Edgard Leuenroth é o único centro de documentação brasileiro dotado de um equipamento que permite a leitura e digitalização de microfilmes. O pesquisador, que não faz muito tempo era obrigado a copiar documentos à mão, agora pode levar para casa a edição inteira de um jornal do século 19 gravada em CD. Uma segunda máquina, cotada em R$ 44 mil, será adquirida dentro de uma linha de financiamento da Finep. “Essa quantidade de máquinas leitoras de microfilmes é um conforto para o pesquisador e uma característica raríssima mesmo em arquivos no exterior”, afirma o professor Sidney Chalhoub, diretor do AEL.
Segundo Chalhoub, os microfilmes deverão formar uma percentagem cada vez maior dos acervos da Unicamp. Ele revela que o projeto Instituto do Milênio, submetido ao CNPq, prevê a montagem de um laboratório de microfilmagem, provavelmente dentro do AEL, o que vai implicar em melhor preservação da documentação em papel e maior disponibilidade para os usuários. Também está em seus planos a incorporação de grande quantidade de documentos da Justiça do Trabalho. “Em Campinas, há uma situação alarmante, com cerca de 70 mil processos sob risco de serem simplesmente descartados”, informa.
Sidney Chalhoub considera que a Unicamp construiu uma infra-estrutura admirável para a pesquisa em ciências humanas, citando como exemplo desta política a construção da nova sede do próprio AEL, que vai dobrar a capacidade de atendimento. Contudo, o professor ainda vê como um problema importante o fato de a Universidade não prever uma rubrica orçamentária para a compra de acervos pelos centros de documentação. “Na verdade, dependemos das doações ou de iniciativas de centros internos do IFCH, como do Centro de Pesquisas de Opinião Pública (Cesop), que viabilizou a vinda da Coleção Ibope, e do Centro de Pesquisas em História da Cultura (Cecult), que comprou a coleção de jornais do século 19”, ressalta.
O diretor AEL argumenta que a falta de dotação orçamentária impede que se cubram lacunas importantes para os pesquisadores. “Temos muito material do período da ditadura militar, mas nenhuma coleção completa de grandes jornais deste período, embora cópias em microfilme possam ser adquiridas junto à Biblioteca Nacional”, exemplifica o professor. Chalhoub acrescenta que mesmo os editais lançados pela Fapesp para a compra de livros por bibliotecas, não contemplam os centros de documentação. “O microfilme não entra nesta linha de financiamento porque não é considerado material permanente. A ausência de uma política de aquisição impõe limites claros”, insiste.
Como exemplo desta limitação, Elaine Zanatta mostra uma carta enviada pela filha de Libóni Justo, um argentino trotskista que trouxe sua biblioteca para o AEL em 1982 e morreu em 2004, aos 104 anos de idade. Fotógrafo talentoso, Justo clicou movimentos sociais por toda a América Latina, sendo que uma série retratando anônimos americanos vitimados pela grande depressão de 1929 já foi vendida para uma galeria de Nova York. Na carta, a filha, Mônica, se diz disposta a ouvir propostas pelo restante da coleção fotográfica do pai, sublinhando que já recebeu lances de Amsterdã e Buenos Aires. “Vamos conversar e ver se ela está disposta a fazer uma doação. Não temos como cobrir uma partida em dólares”, lamenta.
Documento primário da pesquisa
médica é a história do paciente
Documentos primários, para quem faz pesquisas na área médica, são os prontuários dos pacientes. No Serviço de Arquivo Médico (SAM) do Hospital das Clínicas da Unicamp, os estudantes consultam entre 150 e 200 prontuários por dia, uma procura gerada por duas motivações principais: os estudos de caso, em que o professor pede o levantamento de uma série de ocorrências de determinada doença, e as pesquisas de mestrado ou doutorado, ou investigação científica, que exigem levantamento e tabulação mais apurados dos dados.
“Enquanto hospital-escola, nossos arquivos mantêm um acervo com inúmeras patologias e até casos raros. Havendo um diagnóstico de síndrome de Kawasaki, por exemplo, vamos atrás dos prontuários de todos os pacientes tratados no HC, verificando quais foram os procedimentos adotados. Provavelmente, o consulente obterá informações mais úteis do que na literatura internacional, onde talvez sejam relatados apenas casos da síndrome no Japão, país que apresenta uma realidade completamente diferente”, explica Carlos Henrique Oliveira de Paulo, diretor do SAM.
A professora Laura Ward, presidente da Comissão de Biblioteca da Faculdade de Ciências Médicas, acaba de rever os prontuários dos pacientes com câncer de tiróide atendidos pelo hospital nos últimos 25 anos. “Esta é a área em que trabalho e queria saber os fatores que interferem para uma boa ou má evolução dos pacientes: um acompanhamento mais próximo ou menos próximo, o fato de serem mais jovens ou mais idosos, a utilização de uma cirurgia mais extensa ou menos extensa. Minha conclusão, publicada em revista especializada, é de que indivíduos com anticorpos positivos apresentam melhor evolução em relação ao câncer de tiróide. A riqueza de informações que obtemos a partir desses prontuários é imensa e tem um valor incomensurável para a pesquisa”, afirma.
Segundo a professora, um aspecto que vem sendo discutido com os técnicos do Arquivo Central (Siarq) é a possibilidade de se implantar um sistema de arquivamento único, objetivo e simplificado dos prontuários médicos. “Hoje, o que faço é ir ao Arquivo Médico com uma lista de pacientes e solicitar que o funcionário procure nome por nome nas prateleiras. Será que devemos digitalizar todas as informações dos prontuários? A informação digital é mais simples e de melhor acesso, mas também é menos durável e se perde com facilidade. Mesmo internacionalmente, não tem sido fácil encontrar uma solução para esses arquivos que tendem a ser cada vez mais imensos”, observa a médica.
Entraves – De fato, a quantidade de estantes deslizantes no SAM impressiona. As prateleiras apresentam um visual pitoresco, visto que, além dos códigos numéricos, as pastas são diferenciadas por cores, a fim evitar erros no arquivamento. “Um médico que fez pós-doutorado em Boston encontrou um sistema de arquivo idêntico. Mesmo em comparação com hospitais de países tecnologicamente avançados, a única diferença é que alguns preferem microfilmar os prontuários arquivados há mais de cinco anos, ganhando espaço”, informa Carlos Henrique de Paulo, que vem acompanhando as reuniões com o Siarq.
Assim como Laura Ward, o diretor do SAM acha que o processo de informatização é inevitável e factível. No entanto, alerta para a exigência de investimentos pesados numa área que sempre sofreu de escassez de recursos. Outro entrave se refere a implicações legais. “Legalmente, o prontuário eletrônico não é reconhecido como documento legítimo. Enquanto não houver uma regulamentação, todos na área da saúde guardarão o documento em papel para se respaldar frente a possíveis ações judiciais”, prevê. A esse respeito, ele acrescenta que o Serviço chega a fornecer 10 mil cópias de prontuários por mês. “A cópia serve para obter o auxílio-doença, mas também é comum, principalmente em óbitos de pacientes, que familiares procurem a Justiça para acusar erros de procedimento e solicitar indenizações. Já foi o tempo em que o médico dava a palavra final sem ser contestado”, conclui.
Novo sistema de busca entra no ar
O Arquivo Central da Unicamp, o Arquivo Edgard Leuenroth e o Centro de Computação estão colocando no ar, para validação de técnicos e usuários, o primeiro módulo do Sistema de Arquivos Históricos (Pesquisah), que permite o registro de documentos em diversos níveis, fundos, séries e itens, desde sua entrada no arquivo até a disposição de documentos digitais para pesquisa em rede. Isso possibilita, entre outros objetivos, a disposição de referência e de documentos em rede – livros, manuscritos, fotografias, imagens, sons – contidos em vários arquivos, além do atendimento à distância aos pesquisadores.
“O sistema segue requisitos e normas internacionais com a finalidade de ampliar o intercâmbio de informações com instituições do mundo. Sua construção levou dois anos, com o suporte técnico do Centro de Computação. De nossa parte, serão divulgados 245 fundos documentais, cada qual descrito item a item. Está no ar a produção científica digitalizada do professor Sérgio Porto, para testes, e em seguida introduziremos documentos digitais de outros 70 cientistas pioneiros da universidade, dentro do projeto de Memória e Gestão de Documentos Científicos da Unicamp”, informa Neire Martins, diretora do Siarq. Ela afirma que o sistema está aberto à adesão de todos os centros de documentação da Universidade
O AEL já catalogou no sistema informações sobre metade de seus cem fundos documentais, num total de 40 mil itens. Ema Maria Franzoni, supervisora do Setor de Atendimento, explica que a consulta avançada permite a escolha do centro de documentação (Siarq, AEL e os demais que entrarem no projeto), e a pesquisa por fundos e coleções, títulos, temas ou itens. A palavra-chave “estudante”, por exemplo, traz 482 documentos sobre o movimento estudantil, como fotos, cartazes, jornais e panfletos. “É um sistema de busca bastante completo e inédito na área da arquivologia, que ficou defasada em relação à biblioteconomia, em função até da falta de uma boa normatização. O importante é que o usuário não precisará se deslocar até o AEL para saber se temos o documento que ele precisa”, diz Ema Franzoni.
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