ARTIGO
Evasão na pós brasileira:
uma crise em formação?
LÉA VELHO
A pós-graduação é freqüentemente apontada como o grande sucesso brasileiro no setor educacional. Existem boas razões para isso. O primeiro indicador de sucesso é o número de cursos que veio crescendo desde os anos 70 até alcançar hoje mais de 3 mil programas, um terço dos quais oferece formação no nível de doutorado. Esses programas titulam, a cada ano, cerca de 26 mil mestres, sem contar os mestrados profissionais, e mais de 8 mil doutores. Como comparação, vale mencionar que o Reino Unido, que tem um sistema de pós-graduação muito mais antigo e conta com níveis de investimento muito mais altos no setor, tem formado cerca de 11 mil doutores por ano, 33% dos quais são estrangeiros. Mais importante que os números, entretanto, é que o crescimento brasileiro se deu dentro de critérios de qualidade estabelecidos por um sistema de avaliação que tem sido constantemente aperfeiçoado, à luz de parâmetros internacionais e com intensa participação da comunidade acadêmica nacional.
O crescimento, com qualidade, do sistema brasileiro de pós-graduação reflete-se na nossa crescente participação na produção científica mundial. No início da década dos 80, o Brasil contribuía apenas 0,2% para a produção científica total indexada no Science Citation Index, passando a 1,5% em 2002. Essa taxa de crescimento não é trivial. Além disso, os doutores formados no Brasil têm tido desempenho considerado excelente quando se encaminham para pós-doutorado no exterior.
Como em qualquer história de sucesso, entretanto, as realizações precisam ser analisadas. Várias questões relativas à qualidade da formação destes mestres e doutores, assim como à inserção e desempenho dos mesmos no mercado de trabalho ainda não foram devidamente estudadas. Da mesma maneira, faltam informações confiáveis sobre a evasão de estudantes de pós-graduação e as razões que motivam o abandono dos cursos.
Sabe-se que o sistema de avaliação da Capes solicita dos programas informação relativa a abandono e desligamento de estudantes. Mesmo que tecnicamente diferentes, essas duas categorias podem, para efeito de análise, ser agregadas. Segundo dados veiculados pela Capes, no ano de 2003, mais de 4 mil mestrandos e cerca de 1,4 mil doutorandos abandonaram os cursos ou foram desligados, provavelmente, pelas mais variadas razões. Assim, é difícil precisar o que esses valores significam já que eles adicionam estudantes que saem por vontade própria nos mais diferentes estágios do programa, àqueles que foram reprovados, e a outros que esgotaram prazos regimentais. Como não se sabe o ano de entrada dos evadidos, calcular a porcentagem de perda para um dado contingente de estudantes entrantes em determinado ano coloca certos problemas. Entretanto, parece razoável estimar que os mestrandos evadidos em 2003 são parte de um contingente entrante dois anos antes e, assim, representam cerca de 15% dos cerca de 26 mil estudantes de mestrado novos em 2001. Em raciocínio análogo para os doutorandos, pode-se dizer que os 1,4 mil evadidos significam 17% dos quase 8 mil estudantes de doutorado que entraram em 1999, ou seja, quatro anos antes. Como já dito, as porcentagens estimadas de perda no sistema são sujeitas à contestação, mas não devem estar muito longe da verdade. Se isso é aceito, o próximo passo é perguntar se esses valores são altos ou baixos. A resposta, evidentemente, depende de julgamento, mas, para tanto, informações sobre o que se passa em outros países podem ajudar.
Estudos realizados nos Estados Unidos e em vários países da Europa concluíram que dados sobre evasão “são, historicamente, o mais bem-guardado segredo da pós-graduação”. Não que haja uma ação deliberada das universidades em esconder os dados, mas sim uma falta de interesse em coletá-los. A principal razão para essa falta de interesse reside, conforme revelado pelos estudos, no fato de que a evasão é entendida pelos programas de pós-graduação como um fracasso pessoal do estudante. Entrevistas com inúmeros orientadores e coordenadores de curso nos Estados Unidos revelaram que os orientadores freqüentemente se consideram agentes ativos quando os estudantes obtêm seus títulos, mas como observadores passivos quando os estudantes se vão sem terminar o curso. O não-término é atribuído a características pessoais dos estudantes: falta de interesse na área, falta de habilidades acadêmicas, falta de determinação e de motivação. E porque a maior parte dos estudantes que evadem o fazem silenciosamente, é muito fácil para os orientadores e professores manter a ilusão de que eles não têm participação no evento, e de que os “melhores” estudantes são bem-sucedidos e os “piores”, fracassam.
Entretanto, quando recentemente se levantou, metodicamente, informação sobre a evasão nos programas de doutorado norte-americanos, encontrou-se o número alarmante de 50% de não completude, ou seja, 50% de estudantes rotulados como ADBs (All But Dissertation), que cumpriram todas as disciplinas exigidas, assim como exames de qualificação, mas nunca terminaram a tese. Nestas circunstâncias, fica difícil acreditar que os cursos detinham 50% de alunos com características inadequadas para o trabalho de pós-graduação e, então, as razões do fracasso foram investigadas. A principal conclusão foi que já era hora de parar de culpar a vítima. As taxas de evasão estão muito mais associadas à cultura institucional dos programas de pós-graduação, tais como a falta de uma comunidade de referência, tanto intelectual como social, levando o estudante a trabalhar de forma isolada; à falta de conhecimento e discussão sobre as normas e expectativas do programa; à falta de informação prévia sobre o conteúdo do programa e de orientação sobre o mercado de trabalho futuro. O fator isolado mais importante na decisão dos estudantes de concluir a tese ou nunca terminá-la foi identificado como sendo a relação do estudante com o orientador. Entre os ABDs existe uma enorme insatisfação com a qualidade da orientação que recebiam, assim como do tempo destinado a eles pelo orientador.
Finalmente, o acesso a financiamento que, se esperava, tivesse grande impacto na evasão, de fato revelou que aqueles estudantes que não tinham qualquer tipo de apoio financeiro eram os de maior risco e os que tiveram maiores taxas de evasão. Entretanto, esse grupo é minoritário nas universidades de pesquisa dos EUA, já que a maior parte dos estudantes têm bolsas de assistente de pesquisa (RA) ou de assistente de ensino (TA), e uma fração também pequena tem bolsas plenas, tal como no modelo Capes, CNPq, Fapesp. O inesperado foi que a menor taxa de evasão se deu não entre aqueles que tinham bolsa plena, mas entre os que tinham bolsas de assistente (seja de pesquisa ou de ensino). A explicação para isso está associada ao papel já destacado da comunidade de referência e relação com o orientador. Em outras palavras, os estudantes que têm bolsa de ensino, têm que passar boa parte do tempo na universidade, interagir com os professores dos quais são assistentes, com os estudantes das disciplinas que ensinam, assim como com outros estudantes que têm a mesma bolsa. Essas atividades criam um ambiente intelectual e social que estimula o estudante no seu treinamento e pesquisa. Aqueles que têm bolsa como assistente de pesquisa, muitas vezes trabalham como assistentes de seus orientadores ou de outros professores do programa, também estabelecendo vínculos intelectuais e sociais estimulantes para sua formação pós-graduada.
Como as informações sobre o que se passa nos Estados Unidos em termos de taxas e motivos da evasão no doutorado podem nos ajudar a julgar o caso brasileiro? Quanto a taxas, parece que nosso problema é bem menor 17% de evasão no doutorado do Brasil, contra 50% no norte-americano. Mas, se pensarmos nos motivos da evasão revelados nos estudos feitos nos EUA, principalmente no impacto da ausência de apoio financeiro, e mantida a tendência de diminuição da cobertura de bolsas para os estudantes brasileiros que tem se manifestado nos últimos anos, é razoável esperar um aumento na nossa taxa de evasão no futuro. De fato, uma análise recente feita no Reino Unido encontrou que, entre os doutorandos que tinham bolsa dos diferentes Conselhos de Pesquisa, cerca de 70% obtiveram os títulos em 4 anos, porcentagem que sobe para 85% em cinco anos, resultando em uma taxa de evasão de 15%, bastante próxima da brasileira. Entretanto, entre aqueles que não tiveram apoio financeiro (25% dos doutorandos em tempo integral e 50% daqueles em tempo parcial) a taxa de evasão é muito mais alta (não revelada pelo estudo porque ainda faltam informações detalhadas por área e instituição). Esses dados vêm confirmar que a expansão da pós-graduação brasileira sem a expansão dos meios de apoio financeiro aos estudantes pode levar a uma crise do sistema, manifestada em altas taxas de evasão.
Finalmente, ainda que as taxas de evasão da pós-graduação no Brasil estejam em níveis bem mais baixos que as do Estados Unidos e comparáveis com a do Reino Unido, uma perda de 17% no sistema indica desperdício de recursos públicos e necessita ser investigada. Os estudos relatados acima fornecem pistas importantes de possíveis razões para a evasão e indicam que, com medidas adequadas, é possível reverter o quadro. Para isso é necessário que cada programa mantenha informações detalhadas sobre a evasão, e reconheça que suas práticas e cultura institucional, assim como a política das agências financiadoras, podem estar fazendo com que os estudantes não se titulem.