A formação do grupo multidisciplinar colocará a Unicamp, ao lado de poucos centros no Brasil, na vanguarda das pesquisas com células-tronco. Ângela Luzo explica que as linhas de investigações foram definidas a partir das experiências acumuladas pelos especialistas, que há vários anos desenvolvem trabalhos relacionados ao tema. Num primeiro momento, os cientistas tentarão diferenciar as linhagens celulares, a partir de fontes como a medula óssea, célula-tronco periférica (CTP) e sangue de cordão umbilical. O objetivo é identificar quais as vantagens e desvantagens proporcionadas por elas. A pesquisadora do Hemocentro esclarece que a ciência tem um razoável nível de informação sobre o funcionamento das células-tronco, mas considera que ainda há muito que ser descoberto.
O uso da medula óssea como fonte de células-tronco, por exemplo, soma 40 anos. Já as pesquisas em torno do cordão umbilical e da CTP têm, respectivamente, ao redor de 20 e 30 anos. “As células-tronco obtidas dessas fontes parecem ter características diferentes, sendo as de sangue de cordão mais primitivas que as da medula e de sangue periférico. O Hemocentro começou a investigar o uso de célula-tronco de cordão em 1995, em pesquisa com camundongos portadores de imunossupressão severa combinada (SCID), que foram transplantados com sangue de cordão. Os estudos de diferenciação de células-tronco de linhagem hematopoiética (medula óssea, sangue de cordão e CTP) para outras linhagens celulares estão apresentando resultados interessantes, na literatura internacional, mas ainda se encontram em fase experimental na maioria dos centros de pesquisa. Tudo isso ainda é muito inicial”, diz. Sobre as pesquisas com células-tronco embrionárias, Ângela Luzo considera que elas são ainda mais incipientes, inclusive no plano internacional.
Os trabalhos nessa linha, segundo ela, ocorrem em poucos países. Na maioria das nações européias, por exemplo, esse tipo de pesquisa segue proibido. “A célula embrionária é tão indiferenciada que alguns experimentos apontam que ela tem capacidade de se transformar em qualquer tipo de tecido, inclusive o neoplásico [com tumor], que evidentemente não é o que a gente quer. Em outras palavras, até que os cientistas saibam como manipular adequadamente esse tipo de célula, será preciso algum tempo. Se pensarmos que as pesquisas com células-tronco de cordão umbilical têm 20 anos e que ainda sabemos pouco sobre elas, isso dá um parâmetro do que ainda temos que percorrer para encontrar todas as respostas”, compara.
Trabalho conjunto De acordo com Ângela Luzo, embora as equipes que comporão o grupo multidisciplinar ainda estejam sendo formadas, o projeto já está estruturado. Ao Hemocentro, por exemplo, caberá fornecer as células-tronco para os demais laboratórios. O professor Antonio Carlos Boschero, do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Biologia (IB), desenvolverá um estudo em colaboração com o laboratório da professora Sara Saad, médica hematologista e vice-coordenadora do Hemocentro. Será uma tentativa de diferenciar, a partir de sangue de cordão, a linhagem pancreática. O professor Ibsen Bellini Coimbra, do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), estará voltado para diferenciação de sangue de cordão para condrócitos [células cartilaginosas adultas]. O professor Li Li Min, do Departamento de Neurologia da FCM, também trabalhará com célula-tronco extraída do sangue de cordão, mas a relacionará à linhagem neuronal. O especialista pretende utilizar nanopartículas para marcar a possível diferenciação celular.
A professora Joyce Maria A. Bizzacchi, hematologista e coordenadora do Hemocentro, atuará junto com uma equipe do Incor, que estuda o uso da célula-tronco de medula óssea no tratamento da insuficiência arterial periférica. Outro trabalho a ser executado, este pelo grupo do Hemocentro e sob a coordenação da professora Sara Saad, é a análise da diferenciação das células-tronco de sangue de cordão e de medula óssea em células hepáticas. Por fim, há outros dois projetos em andamento, que também deverão fazer parte do “pacote” de pesquisas. Um deles é elaborado por especialistas em neurocirurgia do Hospital Estadual de Sumaré, unidade de saúde administrada pela Unicamp, juntamente com o grupo do Hospital Sírio Libanês, de São Paulo. O outro envolve o grupo de cirurgia cardíaca e está sob supervisão do professor Reinaldo Wilson Vieira. Em ambos os projetos a manipulação da célula-tronco caberá ao grupo do Hemocentro. “Nossa expectativa é que os trabalhos comecem ainda no segundo semestre. Trata-se de um grupo multidisciplinar e cooperativo. Cada especialidade vai interagir com a outra, de modo que tenhamos a oportunidade de promover análises conjuntas. Esta parceria entre diferentes pesquisadores e instituições certamente enriquecerá o trabalho”, prevê Ângela Luzo.
Sem sensacionalismo As pesquisas com células-tronco são muito promissoras, mas ainda demandarão um certo tempo antes que gerem técnicas que possam ser aplicadas em seres humanos, como observa a médica e pesquisadora Ângela Luzo, do Hemocentro da Unicamp. De acordo com ela, a maioria dos estudos em desenvolvimento encontra-se em fase pré-clínica. Ou seja, os experimentos seguem sendo feitos com animais de laboratório. Além disso, os resultados alcançados por um grupo de pesquisa precisam ser repetidos por outros, a partir da mesma metodologia. Só a difusão da técnica e a troca de informações, explica a especialista, farão com que a ciência chegue a um grau de segurança e eficácia adequado. Por isso, prossegue a estudiosa, é preciso informar a população de forma correta e responsável sobre o andamento e as possibilidades das pesquisas.
Não foi isso o que aconteceu, na opinião de Ângela Luzo, num passado recente. O modo como o assunto foi tratado pela mídia, afirma ela, criou uma ilusão nas pessoas que sofrem de problemas sérios, como diabetes, cardiopatias, lesões neuronais ou limitações motoras. “Ainda tem gente imaginando que daqui a dois ou três meses poderá entrar numa fila, para ser voluntário num determinado estudo. E que daqui a um ano, o cego voltará a enxergar e o paraplégico tornará a andar. Não é assim. Insisto que vamos precisar de algum tempo para saber como e em que situações poderemos empregar a terapia da célula-tronco”, pondera. Diariamente, conta a especialista, o Hemocentro recebe e-mails e telefonemas de pessoas querendo se oferecer como “cobaias” para eventuais pesquisas.
Estas são informadas que não há experimentos desse tipo em andamento e que os possíveis avanços obtidos pela ciência serão oportunamente divulgados. Ocorre, porém, que uma pessoa portadora de doença grave acaba ficando ansiosa com qualquer tipo de informação positiva sobre o tema célula-tronco. Assim, uma notícia dando conta de que um paciente na Coréia melhorou ao ser submetido a esse tratamento já é suficiente para gerar uma expectativa enorme. “Antes de saber se o método é eficaz, é preciso checar se ele está respaldado pela ciência e se houve experimento prévio em animais. Se tudo isso for comprovado, ainda é preciso levar em conta que se trata de um único caso. Os resultados precisam ser repetidos algumas vezes, por diferentes equipes, para saber se a técnica pode ser utilizada de forma terapêutica. Nessa área, é preciso ter muito cuidado para não gerar falsas expectativas”, adverte Ângela Luzo.
A terapia do futuro
Células-tronco são células pluripotentes que podem se diferenciar e constituir variados tecidos do organismo. Trata-se de uma capacidade especial, pois as demais células só podem fazer parte de um tecido específico. Ou seja, células da pele só podem constituir a pele. Outra propriedade das células-tronco é a auto-replicação. Traduzindo, elas podem gerar cópias idênticas de si mesmas. Por causa dessa dupla importância, têm sido alvo de intensas pesquisas no mundo todo, pois poderiam funcionar como substitutas em tecidos lesionados ou doentes, como no caso de Alzheimer, Parkinson e outras doenças neuromusculares em geral, bem como no lugar de células que o corpo deixa de produzir por alguma deficiência, como no caso do diabetes.
A terapia com células-tronco consiste, portanto, em tratar doenças e lesões através da substituição de tecidos doentes por células saudáveis. Um dos exemplos mais conhecidos desse tipo de procedimento, cuja eficácia está amplamente comprovada, é o transplante de medula óssea em pacientes com leucemia. A medula óssea do doador contém células-tronco sangüíneas que fabricam novas células sangüíneas sadias. A expectativa dos cientistas é que no futuro muitas doenças degenerativas, hoje incuráveis, possam vir a ser tratadas por meio dessa terapia.