| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 363 - 25 de junho a 1o de julho de 2007
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Projeto permitirá troca de conteúdo acadêmico
entre instituições de 10 países de língua portuguesa

A cátedra que fala todas as línguas

ÁLVARO KASSAB

Quando o professor Fernando Costa, coordenador geral da Unicamp, assinou no último dia 22 o convênio que oficializou a “Cátedra Unesco multilingüismo e produção de conteúdo em língua portuguesa no mundo digital”, a lingüista Cláudia Wanderley viu materializada uma antiga aspiração: dar voz, na internet, a falantes de línguas minoritárias, investindo na disponibilização e na troca de conteúdo científico produzido em países que têm em comum a língua portuguesa.

14 instituições de ensino já aderiram ao projeto

A professora Isabel Morais, de Macau: foco nos patrimônios histórico e linguístico (Foto: Antoninho Perri)Cláudia é a coordenadora do projeto Multilingüismo no Mundo Digital, que já conta com a adesão de pesquisadores e docentes de 14 instituições de ensino superior de dez países: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Índia (Goa), China (Macau), Timor Leste, Portugal e Brasil.

Além da Unesco, apóiam o projeto a Reitoria da Unicamp, por meio da Coordenadoria de Relações Institucionais e Internacionais (Cori), e os ministérios da Educação e da Cultura. A iniciativa idealizada por Cláudia Wanderley está sendo conduzida, ainda em caráter experimental, por pesquisadores do Laboratório de Estudos Urbanos da Unicamp (Labeurb), onde funcionará a “sede” do projeto – as atividades da Cátedra estão centralizadas na Unicamp. Participam também docentes dos institutos de Linguagem (IEL), Artes (IA) e Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Informações podem ser obtidas no endereço www.multilinguismo.unicamp.br.

Além de todo o conteúdo acadêmico a ser compartilhado na internet, a ferramenta mais importante no início do projeto, segundo a coordenadora, será uma rádio web, que poderá ser sintonizada em todos os países que integram a rede de pesquisa. A programação, segundo a pesquisadora do Labeurb, será abrangente, privilegiando a troca de conteúdo e de informações. “Trabalharemos com várias mídias e combinações tecnológicas, de acordo com as condições de cada país”.

Cláudia acredita que uma das vantagens do Projeto Multiligüismo é a mudança de paradigmas no que se refere à produção de conhecimento. “Os projetos abrigados pela Cátedra tornam essa relação mais fluida e democrática, inclusive porque todos terão acesso ao material de pesquisa por meio de softwares livres”.

O fato de a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) financiar o projeto, diz a pesquisadora, não só permite a sua viabilização e a liberdade de circulação de conhecimento, como também confere “neutralidade” à iniciativa. “Se o Brasil estivesse articulando as iniciativas, seria uma coisa completamente distinta. Não queremos mimetizar a história dos colonizadores”, afirma Cláudia, que iniciou seus contatos com a Unesco em 2004, quando cursava, na França, seu pós-doutorado na área de tecnologias de linguagem.

O professor Isaías Barreto da Rosa, de Cabo Verde: acesso a livros e material acadêmico (Foto: Antoninho Perri)Nessa época, o multilingüismo já era seu principal objeto de pesquisa. Intrigava a pesquisadora o fato de a língua portuguesa ter baixa penetração no espaço digital. Ademais, prossegue Cláudia, segundo estimativas da própria Unesco, as línguas que não se estabelecerem fortemente no espaço digital correm o risco de desaparecimento em duas ou três gerações. “Uma criança sem acesso ao espaço digital em sua língua materna, por exemplo, deverá desenvolver o bilingüismo. Assim, um idioma que não apresenta recursos para informações e pesquisa está fadado ao esquecimento, quando não à extinção. Vai ser muito bom falar diretamente uns com os outros, depois de tantos anos de silêncio”.

Segundo explica a pesquisadora, o projeto propõe uma reflexão sobre a produção contemporânea de conteúdo na língua local dos países lusófonos, propiciando a integração das minorias lingüísticas, por meio de registro, circulação e interação de suas práticas discursivas. “O projeto abre novas perspectivas na compreensão dessas minorias em países de língua portuguesa, respeitando as peculiaridades de cada povo”, afirma Cláudia, destacando que não será imposto um modelo aos participantes. “Vamos respeitar as diferenças”, afirma a pesquisadora do Labeurb, acrescentando que o espaço digital abrigará desde teses acadêmicas até redes de discussões.

Além disso, pondera Cláudia, a iniciativa objetiva criar um grupo de educação superior apto a abordar o multilingüismo nos espaços de língua portuguesa, particularmente no mundo digital. “Trata-se de um espaço inédito para a produção e divulgação lingüístico-cultural e tecnológica, na qual o português configura-se como fio condutor e língua de trabalho dessa interação”.

O professor Matondo Kiese Fernandes, de Angola: laços com o Brasil foram estreitados (Foto: Antoninho Perri)Angola – É essa também a expectativa de pesquisadores estrangeiros que participaram na semana passada, na Unicamp, do I Encontro Internacional de Multilingüismo no Mundo, evento que praticamente inaugurou as atividades da cátedra e por meio do qual foram discutidas e apresentadas as condições e as tecnologias específicas de todos os países envolvidos.

“Em Angola, umas das prioridades da reforma educacional em curso no país é o ensino de línguas locais, chamadas por nós de línguas nacionais. São sete ao todo. Elas são utilizadas na comunicação regional, ou seja, unem os habitantes de cada localidade para além da língua portuguesa, que chegou com os colonizadores”, atesta o professor Matondo Kiese Fernandes, coordenador do Projeto Multilingüismo na Universidade Agostinho Neto, instituição que conta com campus em dez das 18 províncias do território angolano.

Fernandes trabalha em Lubango, no sul do país, onde dá aulas de francês no Departamento de Línguas do Instituto Superior de Ciência da Educação, centro formador de professores. Segundo o docente, os portugueses, quando chegaram em Angola, adotaram como política o silenciamento das línguas locais. “Eles queriam impor a sua cultura”. Com a independência, em 1975, explica Fernandes, foi colocada em prática a revalorização dessas línguas. O português é adotado nas esferas administrativas, nas escolas e na imprensa em geral, entre outros setores.

De acordo com o docente, em algumas regiões mais afastadas do país emergiu uma contradição: embora as crianças não falassem o português, língua oficial do país, elas eram obrigadas a aprendê-lo nas escolas. “A reforma educacional colocada em prática fez com que essas línguas locais passassem a ser ensinadas já no primário”.

A lingüista Cláudia Wanderley, coordenadora do projeto: trabalhando com várias mídias  (Foto: Antoninho Perri)Nesse sentido, opina Fernandes, a cátedra vai auxiliar na elaboração de projetos concretos, fazendo com que seja discutido a relação entre a língua portuguesa e as línguas nacionais. “Vamos ver que tipo de complementaridade isso pode ter. Teremos também a oportunidade de valorizar, preservar, difundir e publicar essas línguas, fazendo, conseqüentemente, com que haja mais falantes”.

Na avaliação do professor Fernandes, o Projeto Multilingüismo tem a vantagem adicional de colocar à disposição ferramentas do mundo digital, tornando-as acessíveis a um número maior de pessoas, além de abrir possibilidades para intercâmbios em várias áreas acadêmicas. O Brasil, acredita Matondo, ocupa um papel central. “O angolano identifica-se muito com o brasileiro. Na Copa do Mundo de 2006, por exemplo, 95% da população de Angola torceu pela seleção brasileira. Nossos laços são hoje muito estreitos”.

Cabo Verde – O cabo-verdeano Isaías Barreto da Rosa é professor da área de computação da Universidade Jean Piaget, instituição que integra uma cooperativa portuguesa, sem fins lucrativos, que tem cerca de dez campus espalhados por Portugal, Angola e Moçambique, além de Cabo Verde, país de 480 mil habitantes que enfrenta problemas estruturais semelhantes aos de outras nações africanas.

Rosa acredita que a maior contribuição do Projeto Multilingüismo é o seu perfil multidisciplinar e o fato de disponibilizar recursos e materiais cujo conteúdo, em língua portuguesa, será voltado para o ambiente digital. “Em Cabo Verde, por exemplo, praticamente não temos acesso a recursos bibliográficos – de livros a publicações científicas”. Segundo o professor, os mecanismos tradicionais de distribuição no seu país são precários, problema recorrente em países em desenvolvimento. “Não existe nenhuma grande livraria ou biblioteca”. Cabo Verde tem cerca de 450 mil habitantes.

Nesse sentido, acredita o docente, o fato de o projeto colocar na rede obras de referência, em língua portuguesa, será fundamental para a comunidade acadêmica e, conseqüentemente, para a população. Para tanto, a Universidade Jean Piaget, que conta com 1,5 mil alunos, tem um departamento – Ambientes Virtuais – que abrigará o projeto.

Na avaliação de Rosa, a interação que se inicia tende a render ganhos para todos os envolvidos, a começar da troca de conteúdo acadêmico no que se refere às pesquisas desenvolvidas. “Temos muitas áreas nas quais podemos desenvolver, em nível institucional, projetos conjuntos. A de infra-estrutura, que no nosso caso é muito precária, é uma delas”, afirma Rosa, acrescentando que a instituição à qual é ligado foi fundada em 2001. “Há, portanto, todo um terreno a ser desbravado. Trata-se de uma iniciativa muito promissora. Vemos com muitos bons olhos”.

Em Cabo Verde, explica Rosa, embora o português seja a língua oficial, usada formalmente na administração pública e no ensino, toda a população fala o crioulo ou o cabo-verdiano, idioma que tem variantes e sotaques diferentes. “Não consigo, por exemplo, falar o português com muitos dos meus conterrâneos. Comunico-me em crioulo, que não é uma língua ensinada na escola”, revela Rosa, que acrescenta que iniciativas vêm sendo adotadas para mudar essa realidade. “Já temos inclusive um dicionário crioulo-português”. Nesse contexto, acredita Rosa, o Projeto Multilingüismo é importante porque ajuda a difundir e preservar o idioma cabo-verdiano.

Macau – A preservação do patrimônio histórico e de línguas é um dos focos de Isabel Morais, professora do Instituto Inter-Universitário de Macau, universidade que conta com 50 docentes e cerca de dois mil alunos. Moçambicana de origem, Isabel estudou letras germânicas na Universidade Clássica de Lisboa, doutorou-se em Hong Kong e é uma especialista em cultura e patrimônio histórico. Isabel chegou há 18 anos em Macau, ainda sob o domínio português, antes, portanto, de tornar-se região administrativa da China.

A professora acompanhou de perto as transformações decorrentes desse processo. A mais visível delas é a deterioração do patrimônio arquitetônico de Macau, que tem cerca de 500 mil habitantes. Nesse contexto, acredita a professora, o Projeto Multilingüismo vai ocupar um papel “fulcral”, até porque, explica, a área de humanidades é pouco explorada na região, mais especificamente na China como um todo. O centro histórico de Macau acaba de ser declarado Patrimônio Mundial da Humanidade pela ONU.

“A parceria entre o Projeto Multilingüismo e o Instituto, que tem dado voz à comunidade nesse processo, vai ser fundamental. Teremos acesso a pesquisas na área de patrimônio e poderemos mobilizar a sociedade por meio da internet”, afirma a professora. Segundo ela, o crescimento desordenado está colocando sob ameaça alguns dos monumentos construídos ao longo de mais de 400 anos de história.

Dois tesouros estão entre os mais ameaçados, segundo Isabel: o farol mais antigo do Sul da Ásia, em cujo entorno se pretende construir um prédio de 60 andares, e as Ruínas de São Paulo, complexo arquitetônico onde funcionou a primeira universidade da Ásia Oriental, criada por jesuístas. “O centro histórico está asfixiado”.

Segundo a especialista, há em Macau uma comunidade euro-asiática, os macauenses, de forte influência cultural portuguesa, cujas manifestações e tradições – da literatura à gastronomia, passando pelas artes plásticas e pela música – precisam ser registradas e difundidas, sob o risco de extinção. Conhecidos como os portugueses do Oriente, eles falam o patuá, língua que em Hong Kong, por exemplo, desapareceu. “Estamos muito interessados em preservar essas tradições e o idioma, que praticamente só é falado pelas gerações mais antigas. Uma das nossas propostas, no âmbito do projeto, é produzir registros visuais e sonoros dessa vivência”, revela. O português é falado por menos de 5% da população de Macau.

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