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OPINIÃO

A luta pela terra e os
conflitos agrários no Brasil

JOSÉ MARIA DA SILVEIRA

(Foto: Antoninho Perri)A Organização Mundial para Agricultura e Alimentação da ONU, a FAO, está reunida para discutir a chamada “crise dos alimentos”. Um lado importante desta crise é que ela estimula a discussão sobre a forma de exploração do espaço rural. A propriedade da terra está sujeita ao cumprimento de função social e, portanto, cabe ao estado garantir que esta seja cumprida. Em um mundo globalizado, a produção agrícola deve ser responsável, há participantes (os hoje chamados stakeholders) de vários matizes, interesses e intenções. A efetivação da justiça social e a melhoria em geral da sociedade passam por um conjunto de medidas práticas, concretas, institucionalizadas: regras claras e bem definidas que sirvam de orientação para proprietários de terra, agricultores, trabalhadores rurais, moradores de vilas rurais e burocratas.

Todavia, é fácil definir critérios para uma ação redistributiva eficaz e que promova melhoria do conjunto da sociedade? Como este processo é conduzido de fato? Como poderia ser implementado de uma forma melhor do que a que tem sido feita desde o governo Fernando Henrique, quando o número de famílias assentadas aumenta de forma exponencial? A quem serve as diferentes maneiras de redistribuir ativos e qual o papel dos conflitos agrários neste processo?

A violência difusa e cotidiana no Brasil está nos noticiários. Os conflitos rurais fazem parte dela. É viável que isto se mantenha no tempo? Em existindo uma base concreta para a ocorrência de conflitos – incluindo as distintas visões de mundo das classes sociais envolvidas – sua permanência seria natural e desejável como motor das transformações? Em suma, pergunta-se qual seria o papel dos conflitos, da luta entre sem-terra, pequenos agricultores e os proprietários, neste processo de busca por melhoria das condições de vida das populações mais pobres e de construção de uma exploração sustentável do espaço rural.

O livro Luta pela Terra, Reforma Agrária e Gestão de Conflitos no Brasil (leia na página 3), organizado pelo professor Antonio Marcio Buianain, do Instituto de Economia da Unicamp, para a coleção “Agricultura, Instituições e Desenvolvimento Sustentável”, apresenta de forma aberta este debate. O interessante neste trabalho, recentemente publicado pela Editora da Unicamp, é que não se trata apenas de uma coletânea de artigos, mas de um livro de debates, em que as diferentes posições nele apresentadas em parte reproduzem os conflitos que ocorrem em outra dimensão – a do mundo real. Tomando como referência estudos de especialistas solidamente amparados na realidade atual, o livro transcende o tratamento estatístico de seu objeto de estudo, sua mera descrição. Ele toca nos pontos em que distintas visões de mundo e de desenvolvimento econômico e social conduzem a fortes divergências, permitindo que seus colaboradores sustentem suas posições.

Um bom ponto de partida para entender a proposta do livro e motivar sua leitura é a aceitação de todos de que o conflito agrário existe e perdura. Há razões claras e objetivas para isto. A estrutura agrária do Brasil é injusta, pois os níveis de concentração da posse da terra ainda são muito altos, a despeito de uma visível desconcentração nos últimos anos. Em várias regiões do país – principalmente Zona da Mata do Nordeste e região Norte – os títulos de propriedade da terra são precários, o que motiva formas primitivas e violentas de apropriação de riqueza. Principalmente na região Nordeste, a pobreza rural (extrema) está associada à insegurança alimentar e à precariedade dos serviços públicos. Há regiões em que a crise do território levou a uma profunda desorganização social ao mesmo tempo em que investimentos agroindustriais são realizados, como no sul da Bahia. Vale lembrar ainda que populações indígenas e de quilombolas lutam por direitos adquiridos e por formas de compensação a injustiças sofridas no passado e que em parte são mantidas, entrando em conflito inclusive com assentados e com agricultores pobres (dog eat dog). Finalmente, há o protagonismo ideologicamente embasado de parte do movimento social, com sua retórica revolucionária em claro contraste com a brutalidade e despreparo de parcelas mais agressivas dos “candidatos a latifundiários do dia”, parte deles encastelados nas formas caricatas com que a democracia se estabelece em rincões sem garantia de direitos e sem instituições democráticas. Entre os dois extremos ideológicos há um conjunto de organizações e seus representantes buscando o desenvolvimento de instituições que minimizem conflitos e garantam o progresso social.

O capítulo elaborado por Antonio Marcio Buainain abre o livro exatamente por permitir o entendimento mais amplo do que está em jogo, fornecendo inclusive uma proposta para mudança e desenvolvimento institucional. Há a clara visão de não só este desenvolvimento é possível como desejável. Conflitos podem ser parte do processo, mas conflitos demais levam a situações indesejáveis para o desenvolvimento rural e não seriam de interesse também daqueles que mais se beneficiam com as ações redistributivas. Uma justiça agrária rápida, eficiente e bem posicionada, associada a uma reforma agrária eficiente, seria capaz de atenuar conflitos, servindo de canal de comunicação e voz para os excluídos.

A mudança institucional defendida por Buainain seria aquela que deslocasse o foco da Reforma Agrária na direção de uma ação planejada, afastando-se da Reforma Agrária por conflitos, em que invasão cumpre o papel de sinalizar onde e quando desapropriar a terra supostamente improdutiva. Na mesma linha está o artigo de Tânia Andrade, que apresenta a experiência concreta de mediação dos conflitos, alertando para o papel de uma burocracia que dialoga e interage e desta forma posiciona-se efetivamente pela redistribuição e pela justiça social.

Em claro conflito com a visão acima, estão posicionados os artigos do pesquisador em Geografia professor Bernardo M. Fernandes e o do sociólogo Sergio Sauer. Não que defendam a permanência do conflito, mas sim seu papel fundamental na construção de uma identidade que preserve o que o avanço da agricultura capitalista e do agronegócio tende a destruir: a identidade de classe e do território rural, em suas várias dimensões. Os conflitos e os processos de reorganização fundiária são, portanto, elementos de uma transformação social mais profunda que a preconizada por outros autores do livro. Para eles a forma com que as instituições e as alternativas de redistribuição da terra assumiram desde o governo Fernando Henrique e também no governo Lula, não atenderiam a um projeto de sociedade de interesse da parcela mais pobre da população rural. O conflito desapareceria à medida que os territórios e as formas “democráticas” de organização social fossem afastando os vínculos com o capitalismo e suas formas de aliciamento e sedução.

Não fora este debate tão vivo na sociedade brasileira atual, ainda valeria a pena ler o livro para melhor entender a dimensão mais geral dos conflitos, o que é tratado pelo artigo do professor Dudelin. O livro presenteia o leitor com um artigo de Marcos Lins, falecido em 2004, cuja luta ímpar pela Reforma Agrária no Brasil combinou o conhecimento técnico ao empenho e envolvimento na luta pela justiça social do Brasil.

Vários pontos de vista, várias leituras e conclusões. Apenas uma é certa e garantida: depois de ler este livro deve-se pensar duas vezes sobre como é importante e difícil a construção da democracia no Brasil. Desenvolvimento e mudança institucional fazem parte de um processo permanente. O leitor será tentado a se posicionar em relação aos enfoques adotados, mas certamente ao final da leitura sua escolha será mais bem fundamentada e capaz de engendrar uma participação mais responsável como cidadão esclarecido.

José Maria da Silveira é professor do Instituto de Economia da Unicamp (IE)

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