O professor Antônio Márcio Buainain, do Instituto de Economia (IE) da Unicamp, idealizou o livro a partir de um trabalho que apresentou num seminário internacional sobre gestão de conflitos agrários, em Quito, em 2003. Ao produzir um documento com mais de cem páginas, extenso demais para publicá-lo como um artigo, considerou expandir a própria pesquisa e escrever um livro solo, mas acabou optando pela idéia de juntar vários autores e opiniões diversas em um só volume.
“Neste setor, como em outros, vejo uma ‘igrejização’ ou ‘partidarização’ acadêmica, que transparece em revistas acadêmicas, seminários e workshops que reúnem apenas aqueles que pensam da mesma forma para acaloradas discussões dentro dos limites do dogma. Os ‘infiéis’ ficam de fora, em geral tachados com algum rótulo popular, desde o tradicional ‘direitista’ ou ‘esquerdista’ até o mais recente ‘neoliberal’”, pondera o docente.
Confirmando esta hipótese, vários autores sequer responderam e outros se recusaram a participar da publicação alegando discordância de pontos de vista. “Não compreenderam que a proposta era justamente a pluralidade. Felizmente, cinco autores que não conhecia pessoalmente, todos muito bons, gostaram da idéia e contribuíram para um debate rico e respeitoso sobre o tema”.
O livro coordenado por Buainain tem prefácio de José Maria da Silveira, também do IE. “Conflitualidade e desenvolvimento territorial” é o artigo de Bernardo Mançano Fernandes, geógrafo e professor da Unesp de Presidente Prudente. Jean Daudelin, professor da Universidade Carleton (Ottawa, Canadá), escreve sobre o uso da “Resolução alternativa de disputas em conflitos de terra”. Esta página traz comentários desses dois autores com suas visões sobre os conflitos.
Ainda na publicação, “Experiência concreta de mediação de conflitos agrários”, por Tânia Andrade, advogada e ex-diretora executiva da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo. Sérgio Sauer, professor da Universidade Católica de Goiás e que já assessorou a CPT, a Contag e a senadora Heloísa Helena, assina “Conflitos agrários no Brasil”.
Um dos autores, Marcos Lins, que foi diretor de Reforma Agrária da FAO em Roma, presidente do Incra e era assessor da Comissão de Justiça e Paz, faleceu em 2004. Lins, que segundo o coordenador do livro conhecia como poucos os vários significados e a importância tanto dos conflitos como da necessidade de superá-los, deixou “Uma agenda atual das políticas públicas” relacionadas à questão agrária.
Conflito motor Em seu artigo “Reforma agrária por conflitos” Antônio Márcio Buainain analisa a reforma agrária brasileira nos últimos 15 anos e procura mostrar que ela é movida pelo conflito, que tem dupla origem. “A primeira é de ordem histórica, fundada em uma estrutura agrária excludente e que se modernizou aceleradamente, quase inviabilizando a agricultura familiar. Outra está na crise econômica e social dos anos 1990, que gerou no campo um excedente descomunal de mão-de-obra, que não encontrou espaço nem na periferia das cidades”.
Segundo o pesquisador, desde então, qualquer decisão no processo de reforma agrária advém da pressão dos movimentos associados aos trabalhadores sem terra e agricultores familiares. “No entanto, se os conflitos movem a reforma agrária, também impedem o planejamento de uma política consistente, voltada efetivamente aos mais necessitados e não para atender quem possui maior poder de pressão. A reforma agrária está limitada a apagar incêndios”.
Buainain afirma que o Estado não possui instrumentos para a gestão dos conflitos, evidenciando o que ele caracteriza como “um estágio infantil” da democracia brasileira. “A oposição não consegue deixar de ser oposição em nenhum momento e estabelecer uma negociação séria com os governos. E os governos, ao invés de conviver democraticamente com a oposição, não resistem à tentação de tentar cooptá-la ou desmoralizá-la. E o que é pior: geralmente conseguem, por meio da distribuição de recursos, cargos e mais recentemente da própria entrega de segmentos do aparelho do Estado.”
Como conseqüência, acrescenta o autor, nunca se alcança os estágios seguintes, como da negociação e planejamento das terras a serem desapropriadas, das famílias beneficiadas e da melhor maneira de viabilizar os assentamentos. “Falo do estágio de maturidade que vemos na Europa, onde os movimentos sociais fazem oposição e reivindicam, mas também negociam metas e aceitam limites”.
Além das dificuldades de natureza política para a reforma agrária, o docente aponta as causadas pela institucionalidade vigente. “São Paulo tem casos em que o Estado demorou mais de 20 anos para obter posse de terra pública que estava em litígio. Em que pesem as reformas implantadas na segunda metade dos anos 90, a desapropriação continua sujeita a várias barreiras burocráticas que dificultam o acesso à terra e não se traduzem em aumento da segurança jurídica da propriedade privada, o que é essencial para o desenvolvimento sustentável da agricultura”.
Para Buainain, outra dificuldade é criada pela própria legislação, ao determinar a desapropriação apenas de áreas improdutivas. “No passado, a terra era improdutiva porque o proprietário morava fora dela e a usava forma inapropriada; hoje, a terra não produz porque é ruim, está mal localizada, não é rentável. Por isso, os assentamentos em sua maioria já nascem ‘bichados’, como se diz no interior, e não progridem”.
Apesar da impressão de que os conflitos agrários vão perdurar, Antônio Márcio Buainain acredita que o problema pode ser amenizado com a sustentação desta retomada do crescimento econômico vivida pelo país. “Caso a geração de oportunidades se mantenha, creio num esvaziamento dos conflitos, pois muita gente buscou o movimento social agrário por falta de alternativas de sobrevivência”.
‘Ocupações são parte do desenvolvimento’
O foco principal do artigo do geógrafo Bernardo Mançano Fernandes é a análise da relação contraditória entre os diferentes tipos de conflitos no campo brasileiro e o desenvolvimento rural. “Depois de mais de vinte anos de pesquisas sobre o MST e a luta pela terra e pela reforma agrária, estou convencido de que as ocupações de terra não são um obstáculo ao desenvolvimento. Ao contrário, elas são parte do desenvolvimento”.
Para explicar essa relação contraditória, o autor analisa os diferentes paradigmas, políticas e situações, focando nas diferentes leituras que o paradigma da questão agrária e do capitalismo agrário fazem das situações de conflito e desenvolvimento. “Estudei como as políticas agrárias do governo Fernando Henrique Cardoso trataram de forma diferenciada as ocupações de terra nas duas gestões. E mostro como os paradigmas influenciam as políticas agrárias e determinam os modelos de desenvolvimento rural”.
Mançano analisa os diferentes territórios formados pela conflitualidade agrária, assumindo que este conceito de conflitualidade é central no processo de formação dos territórios. Ainda que com visão distinta da apresentada por Buainain, os pontos de vista parecem convergir quando Mançano afirma que “os conflitos impulsionam os desenvolvimentos”. E vai além, sustentando que “os paradigmas geram políticas que propõem diferentes modelos de desenvolvimento, que por sua vez geram conflitualidades.”
Nesta lógica, Mançano é menos otimista que Buainain e conclui que não há solução para a questão agrária dentro do capitalismo porque ela é estrutural. Mas considera que o diálogo pode minimizar os conflitos, e que o diálogo não exclui as ocupações. “Defendo o diálogo na construção da correlação de forças a fim de minimizar os conflitos para a realização dos diferentes modelos de desenvolvimento. Defendo ainda que a convivência com as ocupações é necessária para o desenvolvimento do país e mostro que a sua criminalização maximiza o conflito”.
‘A violência é expressão da ausência da política’
O artigo do professor Jean Daudelin promove o debate procurando, em primeiro lugar, fazer uma distinção entre violência (e seus promotores ou agentes) e os conflitos (uma inerente à lógica das sociedades democráticas, pois estão sempre em jogo diferentes interesses, motor dos conflitos). “Se os conflitos fazem parte da realidade agrária inclusive pelo alto nível de concentração da propriedade da terra, de um lado, e da exclusão e expropriação da maioria da população rural , a violência é a expressão da ausência da política (um conceito caro a Hannah Arendt), da ausência de poder”.
Para Daudelin, é falaciosa a noção muito comum na mídia e na opinião pública da violência no meio rural como fruto do atraso (atraso técnico, falta de desenvolvimento econômico e tecnológico, ou mesmo ausência do Estado), quando ela está presente em regiões onde o grande agronegócio é competitivo e avançado tecnologicamente. “Não há uma relação natural entre atraso técnico e violência ou entre avanço tecnológico e exercício da democracia e dos direitos humanos.”
A partir destes pontos, o artigo deixa claro que os movimentos sociais não são promotores dos conflitos muito menos da violência, da qual são vítimas mas reflexos ou expressão do conflito inerente a uma sociedade tão desigual e contraditória como a brasileira. “A luta pela terra não é promotora dos conflitos, mas resultado de uma sociedade conflituosa.”
FICHA TÉCNICA
Obra: Luta pela terra, reforma agrária e gestão de conflitos no Brasil
Autores: Antônio Márcio Buainain (coordenador), José Maria F. J. da Silveira (prefácio), Bernardo M. Fernandes, Jean Daudelin, Marcos Lins, Sérgio Sauer e Tânia Andrade.
ISBN: 978-85-268-0784-6
Edição: 1ª - Páginas: 344
Formato: 16 x 23 cm
Preço: R$ 52,00