A digitalização do acervo, segundo o professor Vielliard, nasceu da necessidade prática de preservar os conteúdos contidos nas fitas magnéticas. Ele explica que, desde que armazenado e conservado de maneira adequada, esse tipo de mídia tem no máximo 50 anos de vida útil. “Como os primeiros registros já completaram 35 anos, passei a temer pela qualidade e integridade das gravações”, explica. O problema levou o docente a buscar uma solução que o ajudasse a equacionar outra questão: abrir uma frente de pesquisa diretamente na Amazônia, sonho acalentado há muito tempo. “Procurei os reitores da Unicamp e da UFPA, com a qual colaboro freqüentemente, e propus um projeto que contemplaria tanto a preservação do acervo quanto a realização de estudos cooperativos entre as duas universidades. Felizmente, a proposta foi aprovada, o que deu origem a um convênio de colaboração, do qual sou executor. Além disso, também consegui apoio financeiro de dois empresários, Patrice de Camaret e Luiz Oswaldo Pastore, para a compra de equipamentos, sobretudo computadores”, relata.
Atualmente, o trabalho de transferência das gravações do formato magnético para o digital já soma três anos. O ornitólogo estima que perto de 7 mil rolos já foram digitalizados. “Inicialmente, eu calculava que tinha reunido cerca de 25 mil fitas, mas tudo indica que o número é maior. Talvez cheguemos a 30 mil”, arrisca. Vielliard afirma que é difícil apontar com exatidão, antes do término do trabalho, quantas espécies animais tiveram os sons registrados por ele e seus colaboradores. “Embora a maior parte do acervo seja composta por sons de aves, ele também reúne sons de sapos, onças, macacos, insetos e até baleias. Eu diria que devemos ter mais de mil espécies de aves representadas na coleção”. O docente do IB acredita que daqui para frente o processo de substituição de uma mídia pela outra será acelerado. Se tudo correr bem, em dois ou no máximo mais três anos a empreitada estará concluída.
Conforme Vielliard, o trabalho está sendo executado da seguinte forma. A digitalização é feita na Unicamp, com a ajuda de um gravador de rolo suíço de alta precisão e de um computador formatado especificamente para esse fim. Assim que o conteúdo de uma fita magnética começa a ser convertido para o arquivo digital, o software abre dois arquivos distintos: o primeiro registra o som propriamente dito e o segundo recebe dados textuais sobre a gravação, tais como espécie, local, data, hora, circunstância e o nome do responsável pelo registro. Na UFPA, a gravação, já em formato digital, passa por um processo de edição. “Parte desse material já está disponível para consulta da comunidade científica”, destaca Vielliard. Futuramente, conforme o pesquisador, todo o acervo poderá ser acessado gratuitamente pela internet, desde que o pesquisador faça um cadastro e receba uma senha. “Além disso, segmentos da coleção serão selecionados e disponibilizados para consulta pública”, adianta.
Mas por que a preservação do acervo do professor Vielliard é tão importante para a ciência brasileira? A resposta, fornecida pelo próprio cientista, tende a surpreender os leigos. O aspecto mais perceptível da coleção é que ela constitui uma base de dados que revela aspectos importantes sobre espécies que compõem a fauna nacional. Mas não é somente isso. De acordo com o docente do IB, ao se estudar o canto das aves é possível compreender um pouco mais sobre a biodiversidade de modo geral. “O canto do pássaro é uma forma de comunicação. Ele apresenta qualidades sonoras de freqüência, intensidade e duração que são próprias de cada espécie. Por meio do canto, os indivíduos de uma mesma espécie se reconhecem e podem demarcar seus territórios e formar seus pares”, explica o ornitólogo.
Além disso, prossegue o professor da Unicamp, as aves espalham-se por todos os pontos de um bioma. Estão nas copas das árvores, nas vegetações rasteiras, nos campos. “Assim, ao estudarmos o comportamento das diversas espécies de uma dada região, nós também poderemos obter informações a respeito da flora, do clima, do ciclo da água etc”. Mais recentemente, informa Vielliard, os neurocientistas também têm demonstrado crescente interesse em pesquisar a comunicação entre as aves. “Eles querem entender melhor como elas aprendem e como trocam informações. A vantagem de se trabalhar com o som é que ele constitui um sinal de comunicação cujos parâmetros físicos são muito bem determinados. É possível medir a sua freqüência, duração e intensidade. Com um bom gravador e um bom alto-falante, pode-se reproduzir o fenômeno, o que possibilita uma série de estudos de comportamento da natureza”, esclarece o ornitólogo.
Acervo reúne registros raros
Como o próprio professor Vielliard informa, o acervo reunido por ele e seus colaboradores é extenso. Na coleção, há registros de sons emitidos por animais considerados raros e, muito provavelmente, por espécies que já não podem mais ser encontradas na natureza. É o caso da ararinha-azul (Cyanopsitta spixii). Um pesquisador suíço, amigo do docente da Unicamp, gravou os sons emitidos por um macho e duas fêmeas no sertão nordestino. À época, o cientista comunicou ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) sobre a presença dos animais na área. Entretanto, quando o órgão resolveu agir para tentar preservá-las, as aves já haviam desaparecido. “Atualmente, temos alguns poucos indivíduos que vivem em cativeiro, mas que dificilmente serão reintroduzidos na natureza. Ainda que sejam, os sons que emitem não são iguais aos dos parentes que viviam livremente, visto que passaram pela interação com animais com os quais não tomariam contato em seu habitat natural”, explica Vielliard.
Para ficar ainda mais claro, o ornitólogo compara essa situação com a dos papagaios que são criados em ambiente doméstico. Embora muita gente se divirta e considere bonito o fato de a ave imitar a voz humana, isso nada mais é do que uma reação ao estresse a que o animal está submetido. “Ao ‘falar’ como uma pessoa, ele está compensando a falta de ‘conversa’ com outros exemplares da sua espécie”, acrescenta o professor do IB. Ainda sobre a agressão ao meio ambiente, o pesquisador revela que evita voltar a um determinado local depois de dez anos. Invariavelmente, ele diz ter surpresas desagradáveis. “Por isso estabeleci os melhores padrões técnicos para registrar e documentar as gravações. Se não fizesse assim, ao retornar a um lugar muito provavelmente não conseguiria encontrar as mesmas espécies nem as mesmas condições ambientais”, afirma.