Para registrar os sons da natureza que compõem o seu acervo de aproximadamente 30 mil fitas magnéticas, o professor Jacques Vielliard foi obrigado a realizar incontáveis expedições a regiões isoladas da Amazônia e a enfrentar situações extremamente adversas. “Existe um cálculo de que dormi mais de 3 mil noites na mata, mas não sei dizer se esse número é exato”, diverte-se o ornitólogo. De acordo com ele, as aventuras que protagonizou conferiram certo charme ao seu trabalho, mas não chegaram a representar perigos reais. Em termos. Na realidade, o pesquisador passou por alguns apuros ao longo da carreira, como admite com certa relutância. Recentemente, recorda, ele caminhava pela mata, em Belém, acompanhado da mulher, também cientista, e de alguns alunos. De repente, ouviu um grito de advertência. “Quando olhei para trás, percebi que havia acabado de pisar numa jararaca”, relata, aos risos.
Conforme a entrevista avança, Vielliard reconhece finalmente que tem um receio quando faz suas andanças pelas matas. Não, não se trata de nenhum animal selvagem. O que deixa o cientista ressabiado são as bromélias. Ele apressa-se em explicar. “Algumas espécies de bromélia são enormes, chegando a atingir um metro e meio de altura. Como elas funcionam como reservatórios de água, podem pesar centenas de quilos quando estão cheias. Quando uma delas cai, parece uma explosão. Numa ocasião, gravando numa localidade no Sul da Bahia, uma delas despencou perto de mim, fazendo um barulho parecido com um tiro de um canhão. Já pensou se eu estivesse passando embaixo?”, indaga. Em tempo: Vielliard também teve malária, que lhe deixou seqüelas. “Mas no fundo, não acho meu trabalho tão perigoso. Até mesmo para atravessar a rua a gente corre risco”, minimiza.
Viajando pelo país, o professor da Unicamp diz que teve a chance de conhecer boa parte da biodiversidade brasileira. A seu ver, o país tem recursos naturais “formidáveis”, mas que não são devidamente explorados. “Penso que é possível desenvolver estudos importantes, cujo foco deve ser o aproveitamento desse patrimônio natural de forma conseqüente e sustentável. Quando se fala da Amazônia, por exemplo, o interesse é generalizado. Muitos querem colaborar para o desenvolvimento de pesquisas que tenham por objetivo a preservação e a sustentabilidade. Em apenas três anos, eu já firmei convênios com instituições da França, Alemanha e Inglaterra. A Espanha também manifestou intenção de estabelecer cooperação. Está faltando o Brasil investir mais nessa área. Felizmente, a Unicamp e a UFPA estão contribuindo nesse sentido”, analisa o cientista, cujo laboratório assemelha-se a um estúdio, no qual a natureza tem vez e voz.
Descobertas marcam 35 anos de pesquisas
Ao longo dos 35 anos de estudos na área da bioacústica, que consumiram investimentos da ordem de U$ 2 milhões, o professor Vielliard teve a oportunidade de fazer descobertas interessantes. Segundo ele, não é raro que haja confusão acerca de algumas espécies de aves. “Depois de muita investigação, às vezes descobrimos que o que pensávamos ser duas espécies era na realidade uma ou vice-versa”. Isso aconteceu em relação a uma pequena coruja, considerada a menor do mundo, encontrada pelo ornitólogo durante uma expedição à Mata Atlântica, seu principal objeto de pesquisa. Acontece, porém, que indivíduos que pareciam pertencer à mesma espécie também ocorriam na Amazônia e na América Central. Intrigado, o docente da Unicamp foi novamente a campo e reproduziu o som do exemplar localizado na Mata Atlântica para o que vivia na Amazônia. “O que descobri foi que o segundo não reagia ao som do primeiro, pois era de uma espécie diferente. Ou seja, como são originárias da América do Norte, muito provavelmente as corujas promoverem duas colonizações diferentes na América do Sul. Sem os recursos da bioacústica, dificilmente chegaríamos a essa conclusão”, explica.