Marangoni recorre a este exemplo para demonstrar onde se pode chegar com pesquisas básicas como as realizadas no Laboratório de Química de Proteínas (Laquip), que ele coordena. Ali, o objetivo é isolar e caracterizar as estruturas de proteínas de interesse farmacológico e fisiológico a partir de modelos biológicos. “A natureza nos oferece modelos prontos da maquinaria molecular que permitiu a manutenção e perpetuação de espécies animais e vegetais. Nós as chamamos de moléculas ‘bem boladas’”.
Segundo o docente, os estudos no Laquip envolvem principalmente venenos de serpentes e também de escorpiões e aranhas. Há entre 2.500 e 3.000 espécies de serpentes conhecidas, sendo aproximadamente 15% venenosas. Estas injetam um coquetel de proteínas e enzimas responsáveis pela imobilização, morte e digestão da presa. “O veneno representa um processo molecular muito complexo. Se o camundongo pudesse correr após a picada, a serpente teria dificuldades para sobreviver”.
Neurotoxinas, assim são denominadas as proteínas do veneno que atuam na transmissão nervosa muscular (sinapse), paralisando os músculos bulbares, oculares e respiratórios, o que resulta em morte da presa. “Trata-se de uma paralisia flácida, pois outras proteínas agem para amolecer e dissolver a carne; com a ação apenas das neurotoxinas, ela ficaria rija, dificultando sua deglutição pela serpente”.
Quando o Departamento de Bioquímica do IB, o Laboratório Nacional de Luz Sincrotron (LNLS) e a Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto caracterizaram e mostraram detalhes da estrutura tridimensional da fosfolipase responsável pela miotoxidade do veneno da serpente Bothrops pirajai o trabalho mereceu a capa da revistia Biochimie.
Pesquisadores da Bioquímica e do Laboratório Síncrotron também isolaram, purificaram e determinaram a estrutura tridimensional da neurotoxina do escorpião Tityus serrulatus. “Tal como o da serpente, o veneno do escorpião paralisa a presa, mas bloqueando o canal de sódio do axônio onde ocorre a transmissão do impulso nervoso”, esclarece o professor do IB.
Os trabalhos orientados por Sérgio Marangoni possuem foco diferenciado em relação, por exemplo, aos do Instituto Butantan ou do Centro de Intoxicação do Hospital de Clínicas da Unicamp, mais preocupados com a ação biológica e os sintomas provocados pelas proteínas do veneno em seu conjunto. “Nós isolamos as neurotoxinas e analisamos a contribuição específica de cada aminoácido na expressão da atividade biológica destas moléculas. Essas informações foram aperfeiçoadas ao longo de mais de 200 milhões de anos e perpetuadas através de um código genético muito bom”.
Aplicações A química de proteínas é apenas o primeiro passo, obrigatório, até que se alcance uma aplicação terapêutica. No caso do Captopril, Marangoni recorda que pesquisadores em farmacologia, estudando o modelo biológico do veneno da Bothrops jararaca, descobriram que ele contém peptídeos (proteínas menores) capazes de baixar a pressão sangüínea. “Na verdade, foi isolado um octapeptídeo peptídeo com oito aminoácidos”.
Ocorre que, ao contrário do que se faz com vegetais, plantando uma espécie em grandes extensões para produzir um xarope em escala, não haveria quantidade de veneno suficiente para viabilizar comercialmente um hipotensor. “Em busca de uma substância química que simulasse estruturalmente o octapeptídeo, a indústria farmacêutica utilizou variadas técnicas, como a síntese química, a clonagem molecular e um equipamento chamado sintetizador de peptídeos. Não teve sucesso”.
Persistindo na busca, bioquímicos observaram, na estrutura tridimensional da molécula, uma característica atômica peculiar dos aminoácidos, com a presença de ácido glutâmico ciclado e de prolina nas extremidades esquerda e direita. “Imitando as duas regiões que a natureza criou, constatou-se que elas impediam a destruição do peptídeo pelos sistemas imunológico e digestivo da presa. É um octapeptídeo indestrutível”.
De acordo com o coordenador do Laquip, juntando compostos químicos que imitam as nuvens eletrônicas da esquerda e da direita, a indústria farmacêutica chegou a um produto que reproduz algumas partes da molécula e expressa a mesma função biológica de baixar a pressão arterial. “O peptídeo batizado de Captopril foi isolado em meio a dezenas e dezenas de proteínas que compõem o veneno, um modelo que já estava à disposição na natureza”.
Outro modelo pronto vem da aranha Phoneutria nigreventer, conhecida como ‘armadeira’, por armar suas patas quando ameaçada e saltar sobre a vítima. Por vezes, uma criança chega ao hospital apresentando a marca da picada, mas sem que se saiba de qual animal peçonhento. “Identificamos a aranha porque seu veneno contém um peptídeo que provoca priapismo ereção peniana involuntária”.
A equipe de Marangoni e do professor Gilberto de Nucci, da Farmacologia, conseguiram isolar e caracterizar bioquimicamente o peptídeo responsável pelo priapismo, o que possibilitou avançar nas pesquisas que podem resultar em um ‘viagra’ nacional contra a disfunção erétil.
Curare Outra contribuição significativa para a medicina veio dos índios sul-americanos. Para derrubar da árvore o macaco, uma das suas fontes de alimentação, eles maceram um tipo de cipó (Chondrodendron strychnos) para ‘ervar’ a ponta da flecha. “A erva é o curare, que traz um composto químico que impede a transmissão do impulso nervoso. Reproduzido quimicamente, o curare é utilizado em processos cirúrgicos, juntamente com o anestésico, tendo o efeito de relaxar os músculos para a incisão”.
Sérgio Marangoni cita exemplos de aplicações a partir da química de proteínas, já viabilizadas e futuras, mas evita entrar em detalhes sobre os aspectos clínicos, alegando pouco conhecimento fora da sua especialidade. Contudo, orientou o doutorado da dentista Daniela Garcia, que testou frações de venenos de serpentes como bactericidas, primeiramente em plantas e depois contra a cárie, com resultados animadores. O mesmo efeito bactericida pode servir à indústria de alimentos.
O professor do IB insiste que seu papel é comparar as proteínas dos venenos e observar as sutis diferenças em suas estruturas, atestando a contribuição de cada região molecular para determinada função biológica. “Alguém pode questionar o porquê de lidar com venenos de tantas espécies, mas é comparando substâncias aparentemente iguais, da mesma família de proteínas, que podemos descobrir importantes diferenças promovidas pela natureza”.
Serpentes e seus venenos
As serpentes venenosas são divididas em quatro gêneros: Bothrops, onde estão as diversas espécies de jararacas (inclusive a jararacuçu), a urutu e a cotiara; Crotalus, composto majoritariamente pelas cascavéis; Lachesis, como a surucucu; e Micrurus, integrado pelas corais verdadeiras. As serpentes brotópicas e crotálicas respondem pela maioria dos acidentes no Brasil, que registra uma média de 20 mil casos por ano, segundo dados do Ministério da Saúde.
O professor Sérgio Marangoni, do Departamento de Bioquímica do IB, explica que os venenos das serpentes possuem dois tipos de proteínas: as neurotoxinas, que atuam em dois lugares, inibindo a transmissão nervosa (pós-sinápticas) ou bloqueando o fluxo de cálcio no axônio (pré-sinápticas); e as miotoxinas, que destroem as fibras musculares.
“Os venenos das serpentes crotálicas são predominantemente neurotóxicas e, apesar da ausência ou da presença de apenas um edema leve no local da picada, podem causar a morte de um adulto por paralisação flácida do diafragma, fazendo com que a vítima pare de respirar”, alerta o docente.
Já os venenos das serpentes botrópicas, segundo o pesquisador, são predominantemente miotóxicos, mas também neurotóxicos, e motivaram o dito popular de que “cobra venenosa, quando não mata, aleija”. “As miotoxinas começam a destruir as fibras musculares já no local da picada, causado dor intensa, às vezes com hemorragia, quebrando vasos sangïneos; a falta de sangue causa infecção secundária, com necrose tecidual que, dependendo da gravidade, obriga à amputação do membro”. |