O professor e escritor Paulo Franchetti, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), acaba de lançar Oeste (Atelier), reunião de haicais traduzidos para o japonês por Masuda Goga Hidekazu. O interesse do docente pelo gênero foi despertado há quase 30 anos, quando o escritor desenvolveu pesquisa acerca da poesia concreta. Na entrevista que segue, Franchetti fala sobre sua nova obra e analisa o papel do haicai na literatura brasileira contemporânea, sem perder de vista sua dimensão transnacional. “A leitura dos haicais produzidos hoje no Japão por pessoas jovens nos mostra que eles se parecem muito com os haicais produzidos em outras partes do mundo”.
Jornal da Unicamp O haicai é um tema recorrente no conjunto de sua obra e em suas áreas de interesse, com ênfase nos aspectos estéticos e históricos. Agora, com a publicação de Oeste, o senhor deixa o ensaio de lado e parte para a prática, digamos, poética, já presente de certa maneira nos contos de O Sangue dos Dias Transparentes, nos quais a concisão era uma das características mais acentuadas. Como foi construído esse processo?
Paulo Franchetti Tenho trabalhado com o haicai desde o final dos anos de 1970. Minha dissertação de mestrado foi sobre a teoria da Poesia Concreta, para a qual a escrita chinesa (e japonesa) era uma referência importante. Para entender melhor as reflexões de Haroldo e Augusto de Campos, via Ezra Pound, sobre a escrita então chamada de “ideogramática”, dediquei-me ao estudo da língua japonesa. E, na seqüência, sob a supervisão e com a parceria da minha colega do IEL, professora Elza Doi, à leitura e tradução de haicais.
Foram vários anos de trabalho, de que resultou, entre outros textos, o livro Haikai antologia e história, publicado pela Editora da Unicamp, em 1990. Aos poucos comecei a escrever haicai, depois de assistir aos concursos nacionais que se realizavam no Centro Cultural São Paulo e de me aproximar de um grupo de praticantes da arte que se reuniam, em São Paulo, numa sala da Aliança Cultural Brasil-Japão. Creio que foi o estímulo dessa convivência que me levou a escrever haicais de modo regular. E essa é uma característica do haicai que me agrada muito: o seu caráter de prática coletiva.
Nisso, o haicai se parece com outras artes tradicionais japonesas: o ikebana, o origami, o chá, o sumiê é simultaneamente uma forma de sociabilidade e um exercício prático de domínio de uma técnica artesanal. Ao mesmo tempo, como as demais artes, é um “caminho”, um “dô”, isto é: uma forma de ver, numa dada prática, um modelo do mundo e, complementarmente, um jeito de olhar para as coisas derivado diretamente do exercício de uma dada arte.
Daí que seja difícil, no caso do haicai e demais artes tradicionais, estudá-las sem as praticar, pois a prática é o lugar onde se pode avaliar o progresso da aprendizagem. Penso que esses anos de estudo e exercício do haicai, de convívio com os haicaístas e, principalmente, de leitura sistemática de textos clássicos do budismo deixaram marcas. Uma delas, eu creio, é o gosto da concisão que você percebe nos contos que publiquei naquele livro.
JU Os haicais de Oeste foram traduzidos para o japonês, fato raro (inédito?) não só no gênero mas também no mercado editorial. Como se deu essa transposição? O fato de a edição ser bilíngüe trouxe novos elementos à obra?
Franchetti Talvez existam outros livros de haicai, escritos por brasileiros, com versão para o japonês, embora eu não me recorde de ter visto nenhum. No caso de Oeste, o dado relevante é o tradutor. Os haicais foram vertidos para o japonês por Hidekazu Masuda Goga, que foi um dos fundadores da associação a que me referi há pouco, o Grêmio Haicai Ipê.
JU Masuda Goga é considerado um dos mestres do gênero no país. Qual foi sua importância no campo teórico e na difusão do haicai no Brasil?
Franchetti Goga nasceu no Japão em 1911 e veio para o Brasil em 1929. Como todos os imigrantes japoneses, trabalhou primeiro na lavoura. Depois estudou e dedicou-se a outras atividades, entre as quais o jornalismo. Discípulo de Nempuku Sato, que foi o grande mestre do haicai na colônia, Goga dedicou sua vida ao estudo e difusão do haicai, tanto em japonês quanto em português, sendo autor de pelo menos dois livros essenciais: uma história do haicai no Brasil e um dicionário de palavras que podem ser usadas para marcar a sucessão das estações neste país.
Ao lado disso, escreveu sempre, tanto em japonês como em português, haicais que serviram de inspiração para todos os que se interessam por esse gênero de poesia. Sua presença nos encontros de haicai e nas reuniões do Grêmio era fonte de inspiração e estímulo para todos os que o conheceram e tiveram a alegria de com ele conviver.
No caso de Oeste, sinto que as traduções têm um interesse que em muito extrapola o dos originais. Ou seja, não tenho dúvida de que o maior interesse do livro, para quem lê japonês, reside na qualidade da tradução. Para valorizar o trabalho do Goga, o editor do livro deu um tratamento especial ao texto japonês, que foi belamente caligrafado e impresso sobre fundo colorido. De modo que o livro termina por ser, além de um agradecimento, uma homenagem ao velho mestre e à sua generosidade em se ocupar, nos seus últimos anos de vida, da tradução desses poemas.
JU Num dos primeiros registros sobre haicai feito no Brasil, Afrânio Peixoto escreveu em 1919 que o gênero era “ainda mais simples que nossa trova popular.” O senhor concorda com a afirmação? Em sua opinião, há algum gênero no país que se assemelhe ao haicai e consiga ter, ao mesmo tempo, a sofisticação deste e apelo popular?
Franchetti A declaração de Peixoto é ao mesmo tempo falsa e verdadeira.
É verdadeira se pensarmos no haicai como forma. Por esse aspecto, ele é ainda mais simples do que a quadra, tendo apenas três versos, sem rima. Ou se pensarmos que a forma básica de estruturação do haicai é, como a da maior parte das quadras, a justaposição de duas notações (uma íntima e outra objetiva), deixando a relação entre elas por conta do leitor.
Mas a declaração é falsa se entendermos que o haicai é tão simples quanto a quadra, do ponto de vista da sua composição ou da sua compreensão. Basta ler um conjunto de haicais, ainda que escritos por brasileiros, americanos ou franceses, e um conjunto de trovas, para que as diferenças saltem aos olhos. O haicai recusa o dito espirituoso, a graça evidente, a expressão sentimental direta. Sua beleza provém da contenção, do que é apenas insinuado, da economia de recursos e da modéstia dos objetivos.
Uma forma de resumir o haicai é dizer que ele é a arte de, com o mínimo, obter o suficiente. Uma arte minimalista, portanto. Daí vem a sua característica mais notável, que é a aliança de simplicidade de forma com sutileza espiritual. E o efeito mais impressionante do haicai é que uma anotação rápida e lacunar de uma cena qualquer produz muitas vezes, no leitor, uma impressão poderosa, que fica vibrando na memória, sem muita explicação. Nada disso se encontra na trova, de modo geral.
Penso que é o fato de não haver, na nossa tradição, um gênero de poesia que junte simplicidade formal, sofisticação e apelo popular que se deve justamente a grande voga do haicai no Brasil.
JU De Guilherme de Almeida a Paulo Leminski, passando pelos concretistas [irmãos Campos, Pedro Xisto e Pignatari], o haicai foi celebrado e teve entusiastas e praticantes na maioria das correntes literárias ao longo dos últimos 80 anos no Brasil. A que o senhor atribui esse interesse?
Franchetti O haicai foi descoberto pelo Ocidente no começo do século XX. Na França, foi uma verdadeira febre. Seu grande divulgador foi Paul-Louis Couchoud (1879-1959), escritor hoje esquecido, mas nome-chave no orientalismo do começo do século XX. Couchoud esteve no Japão de setembro de 1903 a maio de 1904 e tomou contato com a literatura japonesa por meio dos trabalhos de europeus ali radicados. Em decorrência dessas viagens e leituras, em 1905 Couchoud produziu com dois amigos seu primeiro conjunto de poemas inspirados no haicai: 72 tercetos sem métrica nem rima, que buscavam antes reproduzir o espírito do que a forma desse tipo de poesia japonesa.
A partir daí, tem-se uma intensa produção de haicais, em grande parte estimuladas por outro livro de Couchoud: uma apresentação do haicai japonês, com prefácio de Anatole France. Pela mesma época, Ezra Pound publica as notas e reflexões de Ernest Fenollosa, sinólogo de língua inglesa, nas quais a escrita ideogramática é proposta como um modelo explicativo da poesia chinesa (e japonesa). A partir daí, o haicai passa a ser uma referência básica também para a poesia moderna de língua inglesa. E a partir dos anos de 1950, quando a contracultura busca, no Oriente, formas alternativas de religiosidade, conduta e expressão artística, o traço simultaneamente moderno e marginal do haicai faz dele um objeto de grande interesse.
De modo que, nos nomes que você citou, encontramos representantes das várias linhagens de interesse no haicai. Guilherme de Almeida provém de Couchoud, os concretos de Pound e Leminski de uma convergência da tradição radicada em Pound com a contracultura zen dos anos 60. O interesse pelo haicai é, assim, resultado de vários fatores, que aparecem, em cada caso, em combinação variável.
JU Autores como Leminski e Millôr Fernandes recorrem ao tom declaradamente anedótico e irônico na feitura de haicais. A “matriz” japonesa comporta ou admite esse tipo de abordagem?
Franchetti Existe um tipo de poesia japonesa que se parece mais com o que Millôr Fernandes chama de hai-kai: o senryu, poema que tem a mesma forma do haicai, mas espírito mais jocoso e mesmo sarcástico. Já o tipo de haicai do Leminski se afasta menos da tradição do haicai que, como todas, tem muitas modalizações.
JU É possível afirmar que já existe um haicai genuinamente brasileiro? Se sim, quais são os aspectos que o diferenciam dos produzidos no Japão e em outros países?
Franchetti Essa é uma questão difícil, a do haicai brasileiro. Mas talvez seja possível dizer que existe um haicai internacional, isto é, ocidental. De fato, uma pesquisa na internet mostra a enorme quantidade de revistas e livros de haicai em várias línguas, principalmente a inglesa. E há publicações no Japão inteiramente dedicadas ao haicai internacional.
Sem dúvida, escrever haicai não é a mesma coisa para um japonês e para um ocidental. Como não é a mesma coisa escrever um soneto. As formas são carregadas de sentido histórico.
O que é curioso, porém, é que a leitura dos haicais produzidos hoje no Japão por pessoas jovens nos mostra que eles se parecem muito com os haicais produzidos em outras partes do mundo. O que me dá a impressão de que o haicai é hoje basicamente uma forma e uma arte transnacional.
JU Como o senhor definiria um bom haicai?
Franchetti Penso que um bom haicai é aquele que tem a modéstia e o despojamento da linguagem como valores centrais, aquele que não se satisfaz na banal exibição de virtuosidade técnica ou capacidade de associação brilhante. Ou seja, penso que um bom haicai é um texto que se limita voluntariamente a apenas situar uma dada percepção sensória, objetiva, num campo maior de referências (objetivas ou subjetivas) onde ela ganhe sentido e componha um quadro único; um texto que traz para o leitor a presentificação de um instante como algo inacabado, aberto, um esboço ou um diagrama do choque entre a sensação fugaz e irrepetível e seu longo ou profundo ecoar nas diversas cordas da sensibilidade e da memória.
JU Na sua opinião, a literatura japonesa é devidamente valorizada e difundida no Brasil?
Franchetti Creio que tem sido bastante valorizada e difundida, principalmente nos últimos anos, quando têm aparecido traduções de vários autores importantes, realizadas a partir dos textos japoneses e não de outras traduções.
JU E o haicai, é devidamente contemplado pelos departamentos de teoria literária das nossas universidades?
Franchetti Não creio que seja muito contemplado. Nem o haicai, nem outras formas de poesia.
A poesia que brota do Ipê
Massaru Miyatake era muito rico. Desfrutava de todas as regalias de um legítimo descendente de samurais. Na década de 30, sem maiores explicações, deixou sua terra natal para aportar no Brasil. Em Bastos, a cidade escolhida, fez as pazes com suas aspirações. Mesmo sem recursos, produziu haicais, escreveu peças teatrais para a comunidade, deu aulas de cerimônia do chá e editou, em casa, um jornal rodado em mimeógrafo. O comportamento de Massaro nada tinha de errático ele apenas não brigava com sua vocação, desempenhando funções que hoje talvez encontrariam equivalência nas atividades de um agitador cultural.
Quando menina, Sandra Miyatake Sakamoto, paulistana do Ipiranga, costumava caminhar pelas ruas de Bastos, reduto da colônia japonesa no interior paulista. Sandra ficava intrigada com as reações das pessoas quando sabiam que ela era neta de Massaru. Chamava a atenção da menina também o fato de a casa do avô paterno estar sempre cheia. Da cozinha, espiava o vaivém e o burburinho na sala.
Em 1997, cursando o primeiro ano no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL), Sandra tentou recuperar a produção do avô, para fundamentar seu projeto de iniciação científica sobre haicai. Era tarde. Massaro havia distribuído seu legado aos discípulos. Ademais, a família não se preocupou em guardar os escritos e outros registros de suas atividades.
Por sugestão da professora Suzi Frankl Sperber, sua orientadora no projeto e, posteriormente, no mestrado , a estudante fez uma visita ao Grêmio Haicai Ipê, fundado em São Paulo em 1987. Ali, encontrou os elementos para levar adiante as pesquisas de iniciação científica.
Os resultados desse mergulho estão na dissertação O haicai no Grêmio Ipê. No trabalho, apresentado no IEL, Sandra mostra as razões que fizeram da agremiação a mais importante do gênero no país. De quebra, reuniu uma impressionante antologia de 5,2 mil haicais produzidos por integrantes do Ipê em reuniões realizadas entre 1987 e 2001.
Para poder fazer a investigação, entretanto, Sandra vivenciou uma situação inusitada. Ao relatar suas intenções ao grupo, a pesquisadora ouviu de seus integrantes que teria toda a liberdade para desenvolver seu trabalho desde que virasse membro do Grêmio. Assim, não só freqüentou os encontros como também passou a produzir haicais que mais tarde integrariam antologias poéticas, tudo sob a supervisão de Hidekazu Masuda Goga, o mestre Goga, um dos fundadores do Ipê e a quem Sandra dedica a dissertação.
Ele era uma pessoa fascinante e enigmática. Ensinava sem precisar falar”, testemunha Sandra, referindo-se aos métodos adotados pelo mestre nas reuniões do Grêmio, realizadas no primeiro sábado de cada mês em sedes itinerantes. Nesses encontros, mestre Goga dava o mote (kigô), sempre relacionado às estações climáticas, para que os membros fizessem o poema de três versos com cinco, sete e cinco sílabas. Ao final, uma votação apontava os melhores. Os critérios de Goga, lembra Sandra, eram subjetivos. “Não raro ele escolhia poemas que sequer eram votados. Ele chamava nossa atenção para o conteúdo”, afirma a pesquisadora, ressaltando o fato de a produção ser coletiva. “Trata-se de um poema feito para o outro ler, ao contrário da tradição ocidental, na qual predominam os sentimentos individuais”.
A marca imprimida por Goga, observa Sandra, fez com as reuniões do Ipê ocorressem nos moldes das realizadas nos primórdios do haicai, cujo ícone foi Matsuo Bashô. “Nem no Japão é mais assim”, afirma a pesquisadora, que tem uma explicação para essa característica. De acordo com suas pesquisas, Goga teve como mestre Kenjiro Sato, cujo nome haicaístico era Nempuku. Este, por sua vez, era discípulo de Kyoshi Takahama, que o incumbiu de difundir o haicai no Brasil. Por fim, o mestre de Takahama foi Masaoka Shiki (1869-1902), que seguia os princípios da escola de Bashô, sendo considerado, ao lado deste e de Busson e Issa, um dos grandes nomes do gênero.
Em seu trabalho, Sandra envereda nas imbricações da filosofia, da religião e do pensamento oriental para lançar luz sobre os mecanismos que regiam o funcionamento do Grêmio Ipê, historiando-o a partir de vasta bibliografia, da análise do trabalho produzido por seus membros e da atuação do mestre Goga, recentemente falecido.
Ao cabo de oito anos de pesquisas, a pesquisadora já estava traduzindo haicais produzidos em japonês, chegando a receber de Goga um nome hacaístico (haimê), escrito em um guardanapo de papel: Yoshika aquela que exala um agradável perfume. O período também serviu para Sandra chegar a algumas conclusões, entre as quais a de que o Grêmio Ipê, que se tornou modelo de outros espalhados pelo país, ocupa hoje um papel importante na literatura brasileira.
Na esfera pessoal, Sandra foi entender a falta de apego às coisas materiais e a importância do avô na difusão da cultura de seus ancestrais. É como se ela voltasse a andar de mãos dadas com Massaru pelas ruas de Bastos. Caminhar com um mestre não é para qualquer um. Com dois, menos ainda.
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