| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 399 - 16 a 22 de junho de 2008
Leia nesta edição
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Corte, costura e memória
Xenofobia pintada de amarelo
Arte oriente
Dekasseguis
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Parceria bem-sucedida
Haicai
Japão ilustrado
 


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A imigrante Michie Akama, fundadora da São Paulo Saiho Jogakuin, e suas alunas na frente e no interior da escola: 5 mil mulheres passaram pelo internato ( Fotos: Antoninho Perri/ Divulgação)

Da xenofobia
pintada de amarelo ao
‘quase silêncio’ dos intelectuais

MANUEL ALVES FILHO

Priscila Nucci, pesquisadora do IFCH: vazio bibliográfico acerca do preconceito (Foto: Antoninho Perri)Nesta semana, mais especificamente no dia 18 de junho, comemora-se o centenário da imigração japonesa no Brasil. Decorrido esse tempo, o balanço que se tem feito sobre a presença da colônia em solo brasileiro é extremamente positivo. Afinal, ela se integrou à vida nacional, conquistou ascensão social e contribuiu, entre outros aspectos, para o desenvolvimento econômico e intelectual do país. Ocorre, entretanto, que tal trajetória não foi cumprida de forma tranqüila. Ao longo dos últimos 100 anos, o grupo teve que superar situações extremamente adversas, que vão das tensões geradas dentro da própria comunidade ao racismo perpetrado pelo restante da sociedade. Esses temas, pouco debatidos pela academia e praticamente desconhecidos do grande público, são tratados com profundidade em estudos elaborados pelas sociólogas Célia Sakurai e Priscila Nucci, ambas da Unicamp. Nas entrevistas que seguem, elas falam das dificuldades enfrentadas pelos japoneses e seus descendentes até alcançarem a condição atual.

De acordo com Célia Sakurai, pesquisadora do Núcleo de Estudos de População (Nepo), o racismo e o preconceito contra os imigrantes japoneses e seus descendentes marcaram a presença do grupo no Brasil. Desde o século XIX, destaca a socióloga, a política imigratória brasileira sempre foi extremamente dura e seletiva. Naquela época os imigrantes já eram divididos em dois grupos: os desejados e os indesejados. Dependendo do período e dos interesses envolvidos, os japoneses foram inseridos numa ou noutra classificação. “Por ocasião da elaboração da Constituição de 1946, por exemplo, havia a discussão se o país deveria ou não admitir novos imigrantes japoneses. Os debates ocasionaram inclusive um racha na Constituinte. A vinda de novos contingentes somente foi aprovada porque o presidente da Assembléia, que detinha o voto de minerva, posicionou-se a favor”, lembra a estudiosa.

A socióloga Célia Sakurai: intolerância estava presente dentro e fora da comunidade (Foto: Antoninho Perri)Os argumentos assacados contra os imigrantes, destaca Célia Sakurai, tinham variadas motivações. Na década de 30, por exemplo, afirmava-se que os japoneses não eram assimiláveis, ou seja, dificilmente se adaptavam à cultura e aos costumes do Brasil. Alguns opositores mais radicais defendiam a idéia de que os asiáticos pertenciam a uma raça inferior. “Além disso, por aquela época havia também uma questão ligada à geopolítica. Seguindo sua vocação imperialista, o Japão conquistava nações na Ásia. Assim, havia a apreensão por parte de alguns segmentos de que o Brasil pudesse ser igualmente invadido e dominado. As expressões ‘perigo japonês’ e ‘perigo amarelo’, muito empregadas no período, vêm desse temor”, explica a socióloga. Todavia, a postura intolerante e xenófoba por parte de determinados setores não constituía o único obstáculo a ser superado pela comunidade.

Dentro do próprio grupo, segundo Célia Sakurai, havia discriminação. “Quando os imigrantes vieram para o Brasil, eles eram egressos de várias partes do território japonês. Ocorre que, até metade do século XIX, o Japão não era um país propriamente dito, mas um conjunto de feudos. Em outras palavras, essas pessoas tornaram-se ‘japonesas’ no Brasil. Elas tinham em comum a feição, mas falavam dialetos diferentes. Quem vinha do norte falava um idioma completamente diferente de quem vinha do sul. Essa dificuldade de comunicação teve de ser superada a duras penas”, afirma. As diferenças atingiram tal proporção que os casamentos entre integrantes de grupos diferentes foram proibidos. “Em virtude dessas divergências, houve casos de pessoas que se suicidaram ou fugiram de casa para poder se casar. Esses episódios, porém, não aparecem na história oficial”, acrescenta a pesquisadora do Nepo.

Outro motivo de tensão dentro da colônia japonesa foi a diferença de pensamento entre os imigrantes que vieram nas primeiras levas e os que aportaram no Brasil depois da Segunda Guerra. “Quem veio antes da guerra tinha uma experiência de Japão diversa daquele que sofreu as conseqüências do conflito no país. Quem veio depois, chegou com outra cabeça. Todos eram japoneses, mas as mentalidades eram distintas. Para os mais recentes, os demais eram caipiras, pois vieram para trabalhar na agricultura e falavam japonês misturado com português. Os do pós-guerra, ao contrário, consideravam-se superiores, dado que tinham vindo para atuar na indústria, com contratos de trabalho mais específicos, sendo que alguns tinham até mesmo formação técnica”, informa a estudiosa. E completa: “São 100 anos de imigração japonesa, mas se fizermos um zoom dentro da comunidade, veremos que a sua trajetória no Brasil não foi cumprida de forma calma. Atualmente, tudo indica que tais questões foram superadas, mas esse lado específico da história não pode deixar de ser lembrado”.

Ilustração de Shigeo Nishimura que integra o livro História do Japão em Imagens, a ser lançado em julho pela Editora da Unicamp, retrata cidade japonesa em 1946: no mesmo ano, na elaboração da Constituição, Brasil decidia se deveria ou não admitir novos imigrantes japoneses Mutismo – A socióloga Priscila Nucci, pesquisadora-colaboradora do Departamento de Sociologia e integrante do Centro de estudos Brasileiros, ambos ligados ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), também investigou a problemática do preconceito contra os japoneses e seus descendentes. Ela analisou mais especificamente a prevalência, durante um longo período, do silêncio dos intelectuais diante do racismo antinipônico no Brasil. “Constatei que houve no país um tempo de manifestações preconceituosas e racistas contra os japoneses e seus descendentes e um período de ‘quase silêncio’ sobre o assunto por parte da produção científica e intelectual”, afirma. A pesquisadora lembra que até a década de 40 a intolerância contra a comunidade era expressa de diversas formas, inclusive em livros e artigos de jornais.

Nesse período de aberta hostilidade, surgiram obras como O Perigo Japonês, de Vivaldo Coaracy, publicado em 1942. “O livro trazia uma série de artigos antinipônicos. Ao lê-lo, fiquei espantada com o teor preconceituoso e racista, o que me fez continuar pesquisando o tema. O que pude notar ao longo da minha investigação é que em parte da década de 30 e no contexto da Segunda Guerra houve um recrudescimento da intolerância contra os asiáticos, mais especificamente contra os japoneses. Entretanto, do final da década de 1940 até meados dos anos 1970 ocorreu uma espécie de vazio bibliográfico acerca do assunto”, esclarece. Dito de outro modo, conforme Priscila Nucci, as imagens e idéias relativas à imigração japonesa sofreram novas elaborações por parte dos estudiosos, de forma que durante aproximadamente 30 anos o tema do racismo foi minimizado ou tornou-se quase inexistente nos trabalhos acadêmicos.

Nesse período, de acordo com a pesquisadora, os estudos preferiram priorizar outros aspectos relacionados à imigração japonesa, notadamente a ascensão e a integração da comunidade à sociedade brasileira. “Por se tratar de um grupo que conseguiu se integrar econômica e socialmente num tempo relativamente pequeno, os pesquisadores, alguns deles japoneses e descendentes, optaram por pesquisas e recortes que destacaram esses pontos. Ao fazerem essa opção, deixaram de dar ênfase a alguns aspectos conflituosos do processo. Houve, portanto, uma dada construção sociológica e antropológica sobre a trajetória do grupo”, avalia. Ademais, infere Priscila Nucci, outro motivo que possivelmente contribuiu para o referido silêncio é a dificuldade de tratar do preconceito contra japoneses num país onde talvez seja mais urgente debater o racismo contra os afrodescendentes, que ainda lutam pela conquista de direitos na sociedade brasileira.

 No entender da socióloga, apenas recentemente pesquisadores e intelectuais voltaram o olhar ao assunto. A partir da década de 80, uma série de estudiosos, sobretudo da USP e Unicamp, começam a esmiuçar a questão. “O preconceito contra os japoneses e seus descendentes sempre foi muito complexo e sofisticado, pois envolve motivações étnicas, econômicas e geopolíticas. Dessa forma, ainda hoje é difícil tratar desse tema. No entanto, penso que a comemoração do centenário da imigração constitui oportunidade para promover uma reflexão mais ampla e aprofundada acerca desse fenômeno histórico e sociológico. Há que se tratar da trajetória de integração e ascensão social, mas não se pode deixar de abordar os conflitos que pontuaram esse processo. Considero que o tema da imigração japonesa ainda pode ser objeto de variadas e reveladoras pesquisas”, conclui Priscila Nucci.

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