Em 1988, pouco mais de 4 mil brasileiros residiam no Japão; em 2006, passavam de 300 mil, segundo os registros da Japan Immigration Association. No ano em que se comemora o centenário da imigração japonesa para o Brasil, já se pode afirmar que a história se repete na rota inversa, com a especificidade própria das atuais migrações internacionais (a de ir e vir continuamente), mas no principal do seu enredo: se os ancestrais vieram apenas para juntar um bom dinheiro e voltar à terra natal, mas acabaram ficando, os nikkeys brasileiros também começam a se fixar por lá. Fato é que os dekasseguis estão consolidando núcleos de vivência brasileiros dentro do Japão, o que já está completando 20 anos.
“O fenômeno dekassegui não vai acabar”, afirma a socióloga Lili Kawamura, que vem desenvolvendo pesquisas sobre os brasileiros no Japão desde 1993, enquanto professora da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp e professora visitante em universidades japonesas. Ela é autora de vários artigos e livros, como Para onde vão os brasileiros?, lançado pela Editora da Unicamp em 1999 (com edição revista em 2003), e também em japonês pela Editora Akashi Shoten (Sociedade Brasileira de Imigrantes Brasileiros), em 2000.
Na opinião de Lili Kawamura, o problema inicial de adaptação está se arrefecendo, devido principalmente aos núcleos de vivência que já oferecem uma infra-estrutura com todos os tipos de serviços e produtos brasileiros, facilitando a vida cotidiana. “Embora a maioria dos migrantes trabalhe para japoneses, eles vivem dentro de padrões brasileiros, sem falar a língua local e nem mesmo conhecer os aspectos culturais do Japão de hoje, livres das dificuldades enfrentadas por quem foi no início da migração”.
A professora informa que há desde pequenos estabelecimentos de produtos e de serviços técnicos, até grandes empreendimentos como shopping centers, escolas, fábricas, bares e danceterias, dentre outras atividades, todas voltadas para brasileiros e administradas por eles. “Atualmente essas empresas empregam não apenas os nossos migrantes, mas também trabalhadores japoneses. Em cidades como Oizumi, Hamamatsu, Toyohashi e Nagoya, as noites de fins de semana também são bastante agitadas”.
Segundo Lili Kawamura, muitos estão decididos a se adaptar e procuram os centros culturais que ensinam japonês e outras atividades culturais para os brasileiros. “Se antes a quase totalidade dos migrantes mostrava o desejo de retornar ao Brasil, atualmente observa-se uma tendência à permanência, especialmente dos que conseguiram sucesso nos negócios com produtos e serviços para atender ao mercado especifico dos migrantes latino-americanos, e ainda dos que se adaptaram no trabalho como assalariados”.
A socióloga ressalva, contudo, que o movimento de ir e vir continua, seja para rever parentes, seja para tentar se instalar definitivamente no Brasil muitas vezes sem sucesso. Quanto ao fluxo para o Japão, embora não apresente a mesma vitalidade do início dos anos 90, ele persiste. “A migração pode arrefecer por um tempo, como agora, com a expectativa de melhores condições de vida no Brasil, mas não podemos nos esquecer do alto índice de desempregados na faixa entre 18 e 24 anos no país”.
A grande maioria do migrantes brasileiros, de acordo com Lili Kawamura, continua em trabalhos operativos definidos como 3 Ks: kitanai (sujo), kiken (perigoso) e kitsui (pesado), aos quais os trabalhadores incluíram kibishi (exigente) e kirai (detestável). “Entretanto, podemos dizer que a homogeneidade do início da migração quando engenheiros, médicos e outros profissionais qualificados também exerciam essas tarefas foi substituída pela heterogeneidade que inclui de empreendedores a subempregados e desempregos, e até sem-teto. Instaura-se assim uma desigualdade social entre brasileiros, como no Brasil, numa sociedade com ampla classe média japonesa”.
De modo geral, acrescenta a professora, persiste dentre os migrantes a idéia de transitoriedade na vida, uma vez que consideram sua vivência no Japão temporária, mesmo com propensão à fixação. “Para eles, os sonhos vão ser realizados no futuro, na volta ao Brasil. Mas, quando no Brasil, adiam a solução dos problemas para sua volta ao Japão, e assim sucessivamente. Esta postura tem trazido graves problemas, principalmente à educação dos filhos”.
As redes sociais e culturais formadas pelos brasileiros no Japão serão tema do novo livro que Lili Kawamura está preparando, também pela Editora da Unicamp. “As redes tornam muito mais fácil a vida dos dekasseguis, mas também dificultam sua integração na sociedade japonesa, já que eles permanecem isolados, ao passo que os filhos que freqüentam escolas japonesas viraram japonesinhos. As crianças sentem vergonha dos pais que, quando falam o idioma, usam um japonês errado e de um século atrás”.
Os números A socióloga e pesquisadora Elisa Massae Sasaki, que está concluindo sua pesquisa de doutorado pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, confirma com números a hipótese de que os brasileiros estão se fixando mais no Japão. Ela levantou dados demográficos significativos na Associação de Imigrantes do Japão, como por exemplo: em 1994, havia 0,23% de residentes em caráter permanente; em 2006, este índice alcançou 25,09%.
Como foi dito no início, a população de brasileiros era de apenas 4.159 há 20 anos; em 1989, de 14.528. Em 1990, ano em que o governo japonês liberou a entrada de descendentes até a terceira geração para trabalhos comuns, o número já saltou para 56.429. Em 1991, dobrou para 119.333, chegando aos 254.394 em 2000. O último levantamento, de 2006, informa que havia 312.979 brasileiros divididos em 47 províncias do Japão, mais da metade deles em Aichi, Shizuoka, Mie e Gifu.
Elisa Sasaki observa que depois da grande revoada de 1990/91, o crescimento da população desacelerou nos anos subseqüentes, tornando-se paulatino na segunda metade daquela década. Há seis anos, quando a pesquisadora divulgou seu estudo de mestrado por meio dos Textos Nepo (Núcleo de Estudos de População), atribuiu esta desaceleração ao “visto de reentrada”, que permitiu aos dekasseguis um ir-e-vir constante entre Brasil e Japão, e incluiu esses trabalhadores na categoria dos “transnacionais” (migrantes de longa distância).
Note-se, entretanto, que a partir dos 2000 o crescimento da população tornou-se mais paulatino ainda, ficando em poucos milhares por ano, enquanto que os índices de residentes permanentes subiram acentuadamente, de 3,56% na virada do século até 25,09% em 2006. O ir-e-vir talvez seja cada vez menos para novas temporadas de trabalho, mas apenas para entretenimento no Brasil, endossando as observações da professora Lili Kawamura.
Também para Elisa Sasaki, o fluxo migratório vai persistir. “O fenômeno estabeleceu um patamar. Quem tinha que ir como dekassegui, já foi na primeira leva. Agora são outras levas, com pessoas ligadas aos integrantes da primeira, e que tiram proveito da grande rede de parentes e amigos que se formou no Japão. Não faço idéia de onde esse movimento vai dar. É como a nascente de um rio, que se inicia transbordando suas águas e depois vai marcando sua trajetória e suas características”.
Quando a vida se esvai entre dois mundos
A socióloga Adriana Capuano de Oliveira, hoje professora da Unesp de Franca, tem os dekasseguis como tema favorito desde o mestrado na Unicamp iniciado em 1995, quando o fenômeno ainda não havia ganhado repercussão. “Uma amiga muito próxima do colégio, sansei, foi para o Japão no início dos 1990, momento do boom, e começou a me mandar cartas sobre sua vida por lá. Percebi, também, que todos os descendentes que conhecia começaram a ir embora”.
Chamava a atenção de Adriana que os não-descendentes, como ela, sempre se referissem a esses colegas como “japoneses”, sem o menor questionamento deles próprios, ainda que nascidos aqui e inseridos na cultura brasileira. “Nas cartas, eles sempre enalteciam que se sentiam brasileiros, sensação que era muito despertada no Japão. Como ainda não contavam com a rede social que existe hoje, pediam o envio de produtos como cosméticos, bombons e outros alimentos”.
No mestrado, Adriana de Oliveira utilizou como fontes as cartas e entrevistas com retornados da experiência migratória. Através dos relatos, teve a percepção de como se dava a relação dos brasileiros com os japoneses, como o enfrentamento do preconceito e as manifestações de brasilidade: o uso de bottons com a bandeira, a busca por roupas seguindo a moda daqui e a freqüência de lojas de produtos e de restaurantes brasileiros, apesar dos preços exorbitantes. Até mesmo o samba e o pagode tornaram-se prazerosos.
Há, também, dekasseguis que apreciaram a experiência. No entanto, a pesquisadora ressalta a freqüência com que, mesmo aqueles que reclamavam do trabalho pesado, do relacionamento com os japoneses e da saudade do Brasil, acabam voltando ao Japão. “Há uma diversidade grande de motivos, como a dificuldade de recolocação no mercado e os baixos salários. Mas outros, simplesmente, não conseguem mais conviver com problemas como da violência e do trânsito. A expectativa da volta é frustrada e o dia-a-dia fica intolerável”.
Adriana de Oliveira aponta outro aspecto importante a ser considerado, que é o nível de consumo com o qual se habituam os brasileiros no Japão, graças ao salário que não traz preocupações financeiras. “É um atrativo que conta muito para os mais jovens. Se aqui eles precisam fazer contas, lá têm muito mais acesso aos sonhos de consumo. Por isso, ficam neste vaivém”.
A socióloga atentou para essas pessoas que vivem entre dois mundos quando foi voluntária do Grupo Nikkey, um centro de promoção humana que, além de recolocar dekasseguis retornados no mercado de trabalho, conta com especialistas da PUC de São Paulo para um trabalho de orientação. “Eu via muita gente perdida, que não sabe onde ficar, se lá ou aqui. É um problema que pretendo estudar mais a fundo, pois retornar ao lugar de origem e não se readaptar é algo que causa muito sofrimento”.
No Grupo Nikkey, Adriana de Oliveira também conheceu dekasseguis que fracassaram nos negócios onde aplicaram suas economias, ou vítimas de assaltantes atrás dos dólares guardados em casa e de seqüestros relâmpagos. “São anos de trabalho perdidos. Nas conversas que organizávamos, essas pessoas eram orientadas a definir qual país adotar e se integrar à sociedade. Caso contrário, elas ficarão à margem, enquanto a vida vai passando, neste vai-e-vem”.
A pesquisadora observa, contudo, que o perfil do descendente que está indo para o Japão já não é daquele que não encontra trabalho ou pretende ganhar mais para juntar dinheiro. “Em geral, ele é de classe média e média alta, com boa formação e que poderia levar uma vida razoável no Brasil”.
Adriana de Oliveira teve a oportunidade de viajar ao Japão em 2002, com bolsa obtida junto à Universidade de San Diego, onde realizou pesquisa sobre a população asiática local e suas relações com o oriente. Pôde constatar, então, que existem lugares se sentiu no Brasil e que os dekasseguis não precisam encomendar mais nada pelo correio. “O Japão não é mais um outro mundo”.
Domínio do idioma japonês
abre a porta para pesquisas
O pai da socióloga e pesquisadora Elisa Sasaki, Yomei Sasaki, é o monge budista que vai rezar a missa de cem anos da imigração japonesa, momento solene das comemorações no Anhembi, no dia 18 de junho. A mãe, Midori, também concluiu a formação universitária, o que foi uma proeza em tempos de guerra. Por causa principalmente da ascendência dos pais, Elisa lê, escreve e fala o japonês culto, o que possibilitou seu primeiro contato com o tema dos dekasseguis e vem sendo fundamental para a continuidade de suas pesquisas.
O interesse da pesquisadora surgiu por acaso, em 1991, quando atendeu a um telefonema para o irmão, Eduardo Sasaki, geógrafo que também se tornou monge. “Era um amigo do Japão, Toru Watari, que eu também conhecia. Veio fazer uma pesquisa sobre dekasseguis, uma das primeiras mais sistematizadas realizadas no Brasil, financiada pela Fundação Toyota. Como eu estava de férias do curso de ciências sociais da Unicamp e as entrevistas seriam em japonês, entrei como voluntária”.
A pesquisa de campo baseava-se em exaustivo questionário com 179 perguntas e resultou em um livro proporcionalmente volumoso, intitulado O brasileiro nikkey dekassegui e publicado em 1995. “O trato para ser voluntária foi de que eu teria acesso aos dados. Como leio em japonês, minha monografia de graduação foi praticamente um trabalho de tradução e compilação”.
A partir daí, Elisa Sasaki iniciou contatos com professores e pesquisadores envolvidos com o tema da emigração de brasileiros, como Teresa Sales, Rossana Rocha Reis, Bela Bianco, Michael Hall e Antonio Arantes. “Foi quando se começou a institucionalizar os estudos migratórios. O primeiro grupo brasileiro de pesquisa foi formado na Unicamp”, diz socióloga, que para o doutorado realizou pesquisa de campo em Nagoya, com bolsa da Fapesp.
Brasil cria tradição de emigração
“A partir dos anos 1980, criou-se uma tradição de emigração que nunca houve no Brasil. Por isso, o fenômeno dekassegui vai se manter por muitos anos ainda”, afirma Wilson Fusco, doutor em demografia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife. “A emigração só não é maior por conta das restrições impostas pelos Estados Unidos, sendo que a maioria dentre os que visavam esta rota está mudando a direção para a Europa”.
Wilson Fusco realizou uma pesquisa de campo comparativa com retornados dos EUA e do Japão, em 2001, a fim de evidenciar a importância das redes sociais no enfrentamento de desafios e adversidades para os brasileiros que vivem fora do país. “Na época, a rede social nos EUA funcionava principalmente para atender a os migrantes indocumentados, enquanto que no Japão, para onde os descendentes iam através de agências de recrutamento, com documentação e emprego assegurados, a rede era mais institucionalizada”.
Segundo o pesquisador, as facilidades de transporte e de comunicação oferecem outro pano de fundo ao processo atual, mas ele atribui ao dekassegui um status diferenciado, devido à alteração na lei de imigração do Japão que permite várias entradas e saídas no país. “Acontece que, apesar da diferença na distância, o número de viagens dos dekasseguis é bem maior em relação às de brasileiros para os Estados Unidos”.
Por outro lado, Fusco observa que no início do fluxo para os EUA, quem se aventurava ilegalmente no país tinha perfil diferenciado. “Precisava ser uma pessoa com bom nível de escolaridade, bem informada sobre o lugar, as pessoas e a cultura, com habilidades para executar qualquer serviço e com recursos para pagar a passagem. Conforme as redes sociais foram se formando, a seletividade diminuiu. No final do processo, entravam inclusive analfabetos e gente que levava dinheiro emprestado”.
Wilson Fusco concorda com a hipótese de que os dekasseguis, a exemplo dos ancestrais no Brasil, estão consolidando uma colônia no Japão, com o aumento do número de residentes permanentes naquele país. “Embora não exista levantamento estatístico do início do século vinte, houve japoneses que voltaram para sua terra. Os que ficaram estão aí até hoje, com sua descendência. Da mesma forma, se muitos dekasseguis voltaram, outros acabarão se estabelecendo no Japão, seja pela melhor qualidade de vida, seja pelas vantagens econômicas”.
Na opinião do demógrafo, a retomada do crescimento no Brasil vai impactar menos do que se imagina no fluxo migratório para o Japão, no sentido de preservar principalmente os descendentes mais jovens no país. “Uma vez criado o canal, é difícil interrompê-lo. Caso o Brasil passe realmente a eliminar problemas como os da falta de empregos e da violência, é possível que daqui a muitos anos a emigração cesse e comecemos inclusive a atrair pessoas de países mais desenvolvidos”.
Wilson Fusco acrescenta que uma melhoria das condições sociais no Brasil pode impactar mais rapidamente nos brasileiros que já estão no Japão, desejosos de reencontrar suas raízes. “As pessoas que estão saindo amadureceram esta idéia ao longo de muito tempo, elaborando planos, até tomar a decisão. A simples notícia de que as coisas estão mudando não vai fazer com que desistam”.
|