| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 401 - 30 de junho a 13 de julho de 2008
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Opinião

Indústria de defesa,
tecnologia e a universidade

RENATO DAGNINO

Renato Dagnino é professor do Departamento de Política Científica Tecnológica (DPCT), do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp (Foto: Antoninho Perri)O lobby da revitalização da indústria de defesa brasileira (IDB), embora sem muito êxito no cumprimento de seus objetivos, vem ganhando crescente espaço na mídia. Formado basicamente por militares, empresários, jornalistas e alguns membros da comunidade de pesquisa, ele tem veiculado insistentemente algumas idéias que, devido à influência que podem vir a ter na orientação das nossas atividades, merecem ser discutidas pela comunidade da Universidade.

Respeitando o direito que têm as pessoas que participam desse lobby de defender seus interesses e crenças, me sinto no dever de questionar algumas dessas idéias a partir de resultados de pesquisa e evidências empíricas a que tenho acesso na qualidade de estudioso do tema.

A primeira, especialmente importante para a universidade, diz respeito ao impacto tecnológico (e econômico) positivo que, segundo alegam, teria a IDB sobre a indústria civil e sobre o desenvolvimento econômico e social do País (o que se conhece na literatura como spin-off).

Essa idéia tem sido tão questionada por pesquisadores e economistas de defesa em centenas de livros, artigos e relatórios, que só os políticos comprometidos com o complexo industrial-militar (além de seus próprios integrantes) se animam a defendê-la nos países avançados. É hoje lá dominante entre pesquisadores e fazedores de política a idéia de que o impacto no sentido contrário, do setor civil para o militar – o chamado spin-in – é mais importante e freqüente.

O que não quer dizer que, para contrabalançar o caráter intrinsecamente deficitário da IDB, cuja existência se legítima por razões geopolíticas, não seja implementada uma política que tente – a duras penas, é verdade – promover o spin-off. Aquilo que, nos (saudosos, para alguns) anos do imediato pós-segunda grande guerra, foi quase natural e automático.

Mas se naqueles países algumas pessoas ainda se deixam convencer de que as empresas de alta tecnologia do setor civil podem estar interessadas nos resultados de pesquisa e desenvolvimento (P&D) provenientes do setor militar, para se abastecer de tecnologia, o mesmo não deveria acontecer aqui.

Existem muitos e conhecidos argumentos a respeito. Menciono apenas três resultantes de pesquisa empírica divulgada pelo IBGE acerca das empresas locais inovadoras que diminuem ainda mais a força do argumento do lobby da revitalização: (1) quando perguntadas acerca de sua estratégia inovativa, essas empresas declaram que ela se apóia na aquisição de máquinas e equipamentos e não em atividades de P&D; aquelas que poderiam transferir, se fosse válido o argumento do spin-off, os resultados disponibilizados pelo setor militar; (2) o pequeno número delas que se relacionam com instituições de pesquisa e universidades declaram que estas são de muito pouco importância para sua estratégia inovativa; (3) e as que poderiam estar interessadas na pesquisa de fronteira realizada no setor militar, aquelas que nos últimos três anos introduziram processos novos à escala mundial, não chegam a cem.

Diminui ainda mais a credibilidade do lobby o fato de que as “nossas” empresas de alta tecnologia são, na sua esmagadora maioria, multinacionais. As quais, como se sabe, ainda mantêm sua lógica racional de não realizar P&D no País (que dirá absorver tecnologia desenvolvida pelo setor militar brasileiro!). A Embraer, apontada como exceção, além de não o ser de fato, por atuar também no setor militar, é, como as demais empresas locais, uma grande importadora de tecnologia incorporada.

A segunda idéia, também uma “transferência” do que eles assumem como verdadeiro nos países avançados, é a do alegado impacto positivo tecno-econômico das chamadas “tecnologias de uso dual”. Essas tecnologias passaram a ser crescentemente prospectadas e apoiadas em função da brutal conglomeração ocorrida no setor de armamentos, e da convergência tecnológica com o setor civil daqueles países que cada vez mais apóiam sua vantagem competitiva na introdução de inovações de produto. Em conseqüência, os custosos military mission-oriented programs dos EUA passaram a ter seu apoio político multiplicado e o seu custo, teoricamente pelo menos, dividido entre as finalidades de warfare vs. welfare que preside a alocação dos fundos públicos para a P&D deste país.

O caso brasileiro, como já mostrei, é bem diferente. E mais, a existência desses programas, dos quais o submarino de propulsão nuclear iniciado há quase trinta anos é o principal sobrevivente, nunca aspiraram seriamente uma racionalidade econômica. Eles repousaram em considerações geopolíticas e de prestígio e, encerrado o regime militar, em injunções político-corporativas. Sua irrelevância para a dinâmica tecnológico-industrial e a realidade (e racionalidade) econômico-produtiva nacionais, torna desnecessária a sua abordagem. Deixo sua discussão desses programas aos colegas que analisam questões estratégico-militares relacionadas à defesa, muitos dos quais os consideram um equívoco e creditam sua manutenção a um “acordo de cavalheiros” em que participa o lobby da revitalização.

A terceira idéia é a de que a IDB revitalizada poderia, “como no passado”, satisfazer as demandas de nossas Forças Armadas evitando a importação. Neste caso, não se trata de opinião infundada, mas de desconhecimento.

Basta olhar os valores globais de exportação e importação de sistemas de armas para constatar que mesmo naquele “passado” exportador o País foi sempre um importador “líquido”. Isso porque a IDB nunca foi capaz de produzir os equipamentos, mais sofisticados e caros, demandados pelas Forças Armadas. E é praticamente impossível, qualquer que seja o cenário de defesa que se projete, que os sistemas de armas (que são os que mais pesam no orçamento) possam vir a ser objeto de um processo de “substituição de importações” como defende o lobby.

A quarta idéia se refere à possibilidade do País vir a exportar, “como no período áureo do passado”, bilhões de dólares. Ela também demonstra um grave desconhecimento. Em primeiro lugar, da contribuição de pesquisadores nacionais e estrangeiros que explicitaram a “maquilagem inflacionária” que militares, empresários e diplomatas fizeram na exportação de material de defesa. No seu pico de 1987, que coincidiu com o auge das compras internacionais pelo Iraque, um ano antes do término da guerra com o Irã que levou a IDB à crise, a exportação foi de 570 milhões de dólares (sendo que na média no período 1975-88 foi de 186 milhões de dólares anuais).

Em segundo lugar, do mercado internacional para o tipo de armamento que a IDB pode produzir. Estimativas realizadas e não refutadas pelo lobby da revitalização mostram, a partir de fontes internacionais fidedignas, que a fatia do mercado que ela poderia abarcar não é significativamente maior do que os 30 milhões de dólares anuais ano que ela vem exportando nos últimos anos.

O espaço não me permite comentar outras idéias que, ainda que menos ligadas ao meu tema central, merecem ser discutidas. Entre elas, as que decorrem de um pretenso nacionalismo – nocivo, fora de lugar e de tempo – de que um país para se desenvolver deve possuir uma ID “respeitada” (quando não um artefato nuclear!) ou de que o Brasil, que sozinho gasta mais do que todos os outros países sul-americanos juntos, estaria sendo acossado por uma “corrida armamentista”...

Espero ter cumprido meu objetivo de alertar os colegas não familiarizados com o tema para o conteúdo falacioso das idéias veiculadas pelo lobby da revitalização.

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