A pesquisa foi desenvolvida entre os anos de 2003 e 2004, sob a orientação do professor Fábio Buraretchi. Foram visitadas 1.756 residências nos dois municípios, considerando os setores censitários definidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os pesquisadores foram de casa em casa indagando se ali moravam crianças e se elas haviam consumido algum medicamento nos 15 dias anteriores à visita. “Quando a resposta era positiva, nós perguntávamos se os pais ou responsáveis concordavam em responder algumas questões”, explica Francis. Ao todo, foram realizadas 772 entrevistas. Entre as pessoas ouvidas, mais da metade (56,6%) admitiu que as crianças e adolescentes haviam ingerido remédios sem prescrição médica no período.
Um dado curioso, conforme a autora do trabalho, é que na maioria dos casos (51%) a indicação do medicamento havia sido feita pelas mães das crianças e adolescentes. Outros 20% dos entrevistados disseram que a recomendação do uso do remédio partira do balcão das farmácias, enquanto que apenas 1,8% afirmou que a automedicação havia sido estimulada pela propaganda na mídia. “Apesar do rigor das entrevistas, nós temos razões para desconfiar deste último dado, visto que outros estudos consideram a propaganda como um fator que exerce grande influência em relação a essa prática”, pontua a enfermeira. Outra constatação feita pelo trabalho é que em 15,3% dos casos o emprego dos remédios se deu com base em prescrição médica antiga. Ou seja, os pais ou responsáveis relacionaram o problema dos filhos com algum sintoma antigo, manifestado por eles próprios ou por familiares, e resolveram repetir o medicamento.
De acordo com as entrevistas, os principais sintomas atacados pela automedicação foram febre, dor de cabeça e cólica abdominal. Entre os medicamentos mais empregados por conta própria aparecem os antibióticos. “Esses dados são extremamente preocupantes porque revelam o grau de desconhecimento da população sobre os riscos oferecidos pela automedicação. O uso indiscriminado de antibióticos, por exemplo, pode levar à ampliação da resistência das bactérias. Já o uso inadequado de um ‘simples ácido acetil salicílico’, como as pessoas normalmente classificam, pode acarretar problemas gastrintestinais e até mesmo levar à morte no caso de o paciente desenvolver síndrome de Reye, que aparece associada à varicela”, alerta Francis.
A partir das informações levantadas pelo estudo, a enfermeira concluiu que as crianças com idade acima de 7 anos têm maior chance de receber automedicação. Isso ocorre possivelmente porque os pais temem dar remédio sem orientação médica aos filhos mais novos, por considerar que o organismo deles ainda não apresenta resistência necessária para receber determinadas substâncias. “Além disso, os programas de puericultura oferecidos nos municípios brasileiros normalmente são de boa qualidade”, analisa a autora da tese. No que se refere aos adolescentes, destaca Francis, a automedicação está fortemente relacionada ao uso de anticoncepcionais por parte das meninas e de medicamentos contra acnes e espinhas por parte dos garotos.
O estudo apontou, ainda, que as crianças e adolescentes assistidos pelo sistema público de saúde também têm mais chances de receber ou recorrer à automedicação. A explicação para o comportamento é relativamente simples. Por conta da dificuldade ou demora no atendimento, muitos enfrentam seus problemas de saúde tomando remédios indicados pelos pais, amigos ou vizinhos. Durante as entrevistas, os pesquisadores também tiveram a oportunidade de analisar as características das chamadas farmácias domiciliares, ou seja, os estoques de remédios que as famílias mantinham em casa. Entre os medicamentos mais comuns apareciam antibióticos e antiinflamatórios. Uma situação relativamente comum foi a identificação de produtos vencidos, e que poderiam eventualmente ser utilizados.
Ainda em relação às farmácias domiciliares, os pesquisadores constataram que os locais mais comuns para a guarda dos medicamentos eram, respectivamente, quartos, cozinhas e banheiros. “Em algumas casas, os remédios ficavam na gaveta do criado-mudo ou até mesmo em caixas sob a cama. Ou seja, permaneciam ao alcance das crianças, ampliando dessa forma o risco de um caso de intoxicação”, adverte Francis. Ainda segundo ela, a despeito de alguns estudos relacionarem o problema da automedicação com a condição social da população, na pesquisa em questão não foram identificadas diferenças significativas de comportamento que pudessem ser associadas à situação socioeconômica dos entrevistados. “De certa forma, a prática é comum a todas as classes sociais”, afirma a enfermeira.
A partir das constatações feitas pelo estudo, Francis defende a necessidade de intensificar as campanhas de esclarecimento sobre os riscos da automedicação, mas com abordagens que sejam mais explicativas. “As campanhas existem, mas elas não estão conseguindo atingir os resultados desejados. Talvez seja preciso mudar a linguagem, para que as pessoas entendam mais claramente o que está se propondo. Ou seja, não adianta dizer apenas que os medicamentos devem ser mantidos fora do alcance das crianças. É necessário ensinar a melhor maneira de se fazer isso”. Paralelamente, prossegue a enfermeira, é urgente adotar medidas complementares que ajudem a desestimular o uso indiscriminado de remédios por parte da população.
A mais complexa delas é facilitar o acesso dos brasileiros ao atendimento médico. Mas há outras, mais simples, que poderiam já ter sido adotadas, porém estão sendo proteladas sem que haja uma razão justificável. É o caso de um projeto de lei que está tramitando no Congresso Nacional desde 1994, portanto há 14 anos, que determina que os medicamentos devem ser acondicionados em embalagens de segurança, o que dificultaria o acesso das crianças. “Infelizmente, não sabemos o motivo dessa lei ainda não ter sido aprovada. Na Europa, legislação semelhante fez com que caísse drasticamente o número de casos de intoxicação infantil, bem como o de transplantes hepáticos, visto que o uso de paracetanol em doses excessivas pode causar lesões graves no fígado”, exemplifica a pesquisadora.
Problema mundial A automedicação não é uma prática exclusiva do brasileiro. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que o problema alcançou dimensões globais. Segundo a OMS, aproximadamente metade da população mundial toma remédios sem prescrição médica. No Brasil, de acordo com dados da Associação Brasileira das Indústrias Farmacêuticas (Abifarma), cerca de 20 mil pessoas morrem anualmente porque consomem medicamentos por conta própria. Os óbitos estão freqüentemente relacionados com intoxicações, reações de hipersensibilidade e alergias. Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) revela que os remédios são responsáveis por 27% das intoxicações registradas no Brasil e por 16% das mortes relacionados a esses episódios.