|
|
Obra de professor do IEL, crítico literário e ensaísta reúne 31 histórias curtas
Franchetti estréia como contista
ANTONIO ROBERTO FAVA
Quando adolescente, publicou um livro de poesias do qual não guarda boas lembranças. Mas isso não o impediu que continuasse a escrever. Tanto é que mais tarde escreveu haicais e, já na universidade, produziu obras de crítica literária e alguma ficção.
Agora o professor Paulo Franchetti, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL-Unicamp), acaba de lançar um livro de contos, O sangue dos dias transparentes (Ateliê Editorial), que reúne 31 textos. São histórias curtas, de uma página e meia a quatro, nas quais predominam conflitos, encontros e desencontros de casais, namorados ou amantes, atritos entre ambos e reconciliações. São narrativas que nem sempre acabam bem. Pelo contrário, observa-se que quase todas as histórias de Franchetti terminam, proposital e curiosamente, de maneira abrupta, e que, no todo, se formam elos com as outras histórias. "É como um quebra-cabeça de sentimentos, percepções, de coisas que não estão ainda bem definidas", explica.
O professor tem uma técnica particular de fazer literatura. De início, explica que "não se trata de uma atividade continuada". Ou seja, as histórias que compõem O sangue dos dias transparentes foram escritas em blocos. Às vezes, passava um ou dois dias escrevendo, duas ou três histórias. Depois parava por um longo período, retomava, escrevia mais um bloquinho e assim por diante. "É mais ou menos como se você tivesse uma coisa que vai se solidificando. Um nó na garganta, a partir de uma cena ou de uma lembrança que aos poucos toma corpo, tornando-se algo mais denso, que me obriga a entender o que estou sentindo. Ou imaginando o que a outra pessoa possa estar sentindo", diz. Aí, ele senta e escreve.
Desse livro, nenhuma história surgiu isoladamente. Sempre apareceram pelo menos duas juntas. "Primeiro concluo uma outra, embora nem sempre uma história seja continuação da outra", explica.
Hemingway e Balzac - Como todo autor tem seu modo particular de trabalho, Paulo Franchetti também tem o seu. Diz, por exemplo, que não tem o hábito de escrever todos os dias, como faziam Balzac e Hemingway, de quem é um apreciador incondicional. "Pelo contrário, escrevo muito raramente. Quando tenho uma percepção de algo que preciso compreender, então escrevo. Escrevo pouco, mas tenho o hábito de trabalhar bastante o texto, até o momento em que sinto que não há nada me incomodando, nenhuma palavra fora do lugar ou em excesso", diz. Prova dessa obsessão em busca do texto perfeito é o próprio livro que acaba de chegar às lojas, no qual Franchetti já fez uma série de alterações - cortou palavras, acrescentou outras.
Como é que Paulo Franchetti consegue conjugar a ficção com a vida de professor universitário? Segundo diz, ambas as atividades não são excludentes. Na verdade são muito parecidas. "Entendo que ensinar literatura é ensinar as pessoas a ler, instruí-las a olhar algum texto e respeitá-lo e conseguir compreendê-lo de acordo com a sua situação no tempo e no espaço, dentro de uma tradição", diz. Acredita que escrever seja um pouco de exercício de leitura, leitura da tradição, leitura dos autores que o ser humano lê.
O professor do IEL revela não acreditar que seja diferente escrever um bom ensaio e escrever um bom texto literário ficcional. São gêneros diferentes, mas na verdade escrever é uma atividade penosa em qualquer circunstância. "Um artigo para revista, na nossa área, exige tanto de reflexão quanto um conto. Na área das ciências exatas, cuja linguagem é um tanto codificada, a coisa talvez possa ser diferente."
Por outro lado, Franchetti não acredita que uma universidade como a Unicamp, por exemplo, seja pródiga em ensaístas, mas pobre de ficcionistas. "Não creio também que esse seja um problema tão acentuado na Unicamp. Acontece que as pessoas de fato publicam muito pouca ficção. Isso não significa que não haja bons autores produzindo literatura de qualidade dentro da universidade. Tem muita gente escondida por aí", argumenta Franchetti.
Um conto
|
ESTRADA
nPAULO FRANCHETTI
Enquanto dirigia, olhava de relance para as pernas dela. Ela usava um vestido cor-de-rosa, e o pano era tão leve, que flutuava mesmo com as janelas fechadas. Olhava a intervalos. Primeiro para os pés, calçados nos sapatos altos, cujo corpo eram apenas algumas tiras de couro. Depois, para as pernas, que subiam longas, paralelas, dobradas nos joelhos onde o pano modelava as juntas numa queda suave. Então, o ventre. Não era magra. Tinha as carnes redondas como um fruto, e ele imaginava que o ventre parecia o umbigo de uma pêra, com a suave carnação brilhante em volta da pequena depressão central.
Chegava agora aos seios, que o decote destacava. Ao ritmo da respiração, que era lenta e bem marcada, subiam e desciam sob a seda do vestido.
Dividido entre a estrada e a contemplação, continuava dirigindo.
Depois, finalmente, vinha o colo, o pescoço, onde começava a penugem que logo se transformava numa selva sedosa e marrom, em que às vezes havia manchas brancas, esparsas, até a ponta da cabeça. Foi então que lhe veio a figura inteira: era uma mulher com cabeça de cachorro. Mais do que isso, embora seus olhos fossem doces, e tudo nela inspirasse um fundo sentimento de calor e de receptividade, tinha no rosto, presa por uma fivela atrás do pescoço, uma focinheira de couro cru, que parecia destoar do conjunto.
Quando percebeu tudo, estendeu a mão. Ela abaixou a cabeça e ele pôde, então, soltar a fivela. Jogou a focinheira pela janela e olhou de novo para ela. O olhar continuava o mesmo, e ele já não tinha medo algum. Prossegui na estrada, pensando em outras formas daquela situação: as fotos do livro dos mortos, as sombras projetadas na parede da infância, quando um lobo chegava para assustar as crianças à luz das lamparinas, os vira-latas que povoam as distâncias entre uma casa e outra, nos vários sítios espalhados ao longo da estrada.
Ela continuava a olhar para ele com doçura.
Dirigiu assim, pela noite adentro, com aquela companhia, até que algo como uma luz forte o despertasse, por instantes. Quando ia adormecendo novamente, estava de novo sozinho no carro e acendia um cigarro, abrindo a janela, enquanto pensava em pôr uma fita para tocar. Voltou logo a acordar, e a dormir. E a acordar outra vez. E ainda se passou um bom tempo até que mergulhasse, de fato, profundamente no sono.
|
|
|
|