SANDRA NEGRAES BRISOLLA
Como não cabíamos mais na embaixada panamenha em Santiago do Chile - éramos mais de 300 pessoas em um apartamento de 60 ou 80 metros quadrados - e não havia uma perspectiva concreta de quando nos iriam embarcar para o Panamá, foi necessário tomar uma providência pouco usual nessas situações: resolveram transportar-nos para um local maior, mais adequado para comportar toda essa população de asilados, inclusive para que se pudesse organizar as tarefas diárias para a sobrevivência do grupo. Até então éramos alimentados com sanduíches e pizzas que nos traziam de fora, mas isso ficava muito caro e dava muito trabalho. Por outro lado, os dois banheiros da embaixada tinham uma fila crescente na porta. O ar da área externa era insuficiente, mesmo que os fumantes já não fumassem. A presença de várias crianças e mulheres grávidas tornava a situação ainda mais dramática.
Foi uma idéia feliz a de alugar a casa de Theotônio dos Santos, sociólogo mineiro que havia saído na lista dos que deveriam se apresentar aos militares logo nos primeiros dias, e que se encontrava asilado com a mulher e os filhos, como nova sede da embaixada do Panamá. Theotônio acabava de construir uma casa em um terreno grande, e o lugar era ideal para comportar toda essa gente.
No transporte do pessoal para a nova sede da embaixada - uma bandeira do Panamá havia sido colocada em lugar bem visível - houve muito nervosismo, pois os militares que nos conduziram aos ônibus nos hostilizaram bastante e providenciaram uma claque de gente que nos xingava enquanto passávamos. Principalmente quando os ônibus se dirigiram para o bairro de Vila Olímpia, onde ficava o Estádio Nacional, várias pessoas dentro dos ônibus ficaram convencidas de que saíamos daí para a cadeia. Que coincidência a casa de Theotônio ficar no mesmo bairro do estádio, que estava servindo de prisão improvisada, onde se cometiam as maiores atrocidades!
Foi um alívio quando os ônibus pararam e vimos que o destino era mesmo uma casa ampla e com bastante terreno. Pudemos ocupar todo o espaço disponível na casa, cada um pôde ter seu cantinho para dormir, distribuíram-se cobertores para todos - o que terminou causando uma epidemia de conjuntivite, pois eles eram redistribuídos para diferentes pessoas em cada noite. E também conseguimos pela primeira vez contato com o exterior, pois podíamos receber visitas na porta da frente, ainda que a nova embaixada estivesse cercada pelo exército chileno. Foi quando consegui mandar notícias para casa por intermédio de uma amiga brasileira que foi me ver e estava de partida para a Argentina. Assim que chegou a Buenos Aires, ela se preocupou em ligar para meus pais e tranqüilizá-los sobre minha situação.
No Brasil, os pais que se conheciam estavam de alguma forma relacionados uns com os outros e minha mãe se comunicava diariamente com a mãe da moça que morava comigo e que era uma das grávidas da embaixada. Ela morava em Brasília e, desde o momento do golpe, não tinha notícias das filhas - a irmã de minha amiga também morava no Chile com o marido - e havia entrado em crise, não queria ir trabalhar. Minha mãe insistia em que trabalhando, o tempo passava mais rápido e logo iriam saber onde e como estávamos.
Quando tiveram notícia sobre meu paradeiro, eu não previ que houvesse tal comunicação e não avisei que tanto ela como sua irmã, assim como o marido e o cunhado, estavam comigo na embaixada, sãos e salvos. Minha mãe perguntou a minha mensageira sobre minha amiga, mas ela de nada sabia - na verdade não se conheciam. Esses momentos de contato externo eram tão rápidos e furtivos - temia-se pela integridade de quem estava fora da embaixada - que não pensávamos muito bem. Eram tantos os amigos e conhecidos que estavam conosco, que teríamos que elaborar uma lista deles para avisar os parentes e amigos, e nada disso havia sido pensado quando me avisaram de repente que havia uma visita para mim. Mas, principalmente, não me ocorreu que estivessem em contato, minha mãe em São Paulo e a mãe de minha amiga em Brasília!
Passaram-se alguns dias até que minhas amigas puderam conseguir um mensageiro e, finalmente, a sua mãe foi avisada e se tranqüilizou.
Em casa, no Brasil, o ambiente era de muita tensão: o longo tempo sem notícias, em que meus pais pensaram várias vezes ir ao Chile, mas sabiam que isso seria uma loucura, pois sequer suspeitavam onde podiam nos encontrar. Além disso, vivia com meus pais uma tia de minha mãe, de mais de 90 anos, mas totalmente lúcida, que estava exultante com o golpe de Pinochet. Extremamente religiosa, tia Guió tinha teorias interessantes sobre a injustiça social. Dizia, por exemplo, que os pobres sofrem muito menos, pois seus filhos trabalham e conseguem reunir uma renda que é maior que a da classe média, cujos membros, além disso, têm que se vestir bem e, portanto, têm maiores gastos e sofrem muito mais! De nada valia argumentar, como fazia minha mãe, que na casa dos pobres devia ser muito diferente da casa de todo mundo, onde as crianças nascem e levam 14 anos até poder ter idade para trabalhar!
Quando meu irmão lhe dizia:
- "Mas, tia Guió, Cristo dividiu o pão com os pobres! - ela respondia imediatamente:
- Dividiu não, multiplicou! - dentro de sua lógica irrefutável.
Pois essa tia passava os dias na frente da televisão, exultante com o golpe que "ia acabar com o comunismo no Chile", sem tomar conhecimento do drama que afligia minha família, sem notícias de meu paradeiro!
Uma amiga chegou a sugerir a minha mãe: - Bota essa velha pra fora!
Mas minha mãe respondeu logo: - Você acha que eu vou mandar minha tia, uma velha de 90 anos, pra fora de minha casa?
Mas, por sorte, quando correu o boato de que eu estava morta, já haviam passado vários meses do golpe, e eu morava na Argentina e havia falado com meus pais na mesma semana, de modo que eles puderam negar imediatamente a veracidade desse fato! Se fosse naquela época, não sei o reboliço que o boato poderia ter causado!
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Sandra Negraes Brisolla, professora aposentada e voluntária do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, morou no Chile de 1969 a 1973.