Ensaio reconstitui época de ouro da
comédia italiana através de um de seus clássicos
Filme de Monicelli é
analisado em dissertação
MARIA ALICE DA CRUZ
"Branca, Branca, Branca, Leon, Leon, Leon" é o grito de guerra dos quatro amigos que vão tomar posse do feudo de Aurocastro, sob a liderança de Brancaleone, o personagem interpretado por Vittorio Gassman em O Incrível Exército de Brancaleone, de Mario Monicelli. O filme, produzido num momento em que a commedia all'italiana atingiu seu ápice, foi objeto de análise na dissertação de mestrado do professor João André Brito Garboggini. "A proposta foi realizar uma análise da estrutura da narrativa fílmica, a partir do longa-metragem de 1965", explicou Garboggini. O pesquisador, cuja tese foi orientada pela professora Iara Lis e defendida no Instituto de Artes, estudou a relação do filme com o gênero cômico cinematográfico italiano e também com relação à reconstituição histórica a que o filme se propõe.
Monicelli, segundo o autor da dissertação, conheceu a commedia all'italiana na década de 1930, quando a crítica ainda era resistente à ingenuidade do gênero. Mas O Incrível Exército de Brancaleone (1965) foi produzido num momento em que o gênero atingiu alto nível de perfeição e em que os trabalhos não se configuravam como comédia de evasão. O objetivo era a sátira política, a contestação ideológica. Em entrevista ao pesquisador, o cineasta italiano revelou que a história frustrada da armata de Brancaleone contém aspectos de sua própria vida. A crítica é feita a líderes que investem tanto numa causa e têm suas investidas frustradas. Brancaleone, espécie de um Dom Quixote malvestido, é um desses líderes atrapalhados, cujo exército não consegue atingir seu objetivo. "Ele expressa sua própria desilusão com a esquerda, na época em que militava no Partido Socialista Italiano", explica Garboggini.
Na entrevista, o diretor admitiu criticar Mussolini e "qualquer outro exército atrapalhado". Foram subordinados também à sua crítica líderes totalitários, fascistas e generais. "Ri de si mesmo", em sua própria comédia. Até os grevistas se deram mal no longa Os Companheiros, de 1963, que conta a história de uma greve ocorrida em Turim, no século 19. De acordo com o professor, o pai de Monicelli participou do movimento sindicalista. "Ele sempre mostra pessoas idealistas que nunca conseguem atingir seus objetivos."
A equipe de roteiristas do filme, formada por Mario Monicelli, Suso Cecchi Amico, Age e Scarpelli, não teve o objetivo de passar uma visão fiel da Idade Média, mas simplesmente referir-se indiretamente a momentos políticos e difíceis de uma Itália governada por Mussolini. "Mas acabou sendo mais fiel ao período medieval do que outros filmes que se propuseram a isso", garante o pesquisador, fã declarado de filmes de cavalaria.
Os heróis da Idade Média, consagrados em outras produções, são desmistificados por meio da leitura cômica que Monicelli fez em O Incrível Exército de Brancaleone. Ao contrário do que normalmente se vê em roteiros sobre temas medievais, o cineasta italiano transformou heróis, duelos de lança, cortes luxuosas e damas em fome, pobres, ignorantes, ferocidade, miséria, fome, chuva e frio.
Entre o lírico, o drama e a ironia, Monicelli conquistou um estilo próprio. O tom irônico dado a situações dramáticas dos personagens marcou a linguagem dos filmes do cineasta. A análise de outros títulos do diretor levou o pesquisador à conclusão de que ele tinha muito interesse em exprimir a dificuldade da luta pela sobrevivência, que, apesar de muitas vezes levar ao riso, conseguia despertar a consciência crítica das pessoas. "É um riso que ameniza a realidade do drama. Ele mostra pessoas de classes inferiores, mas imprime às cenas uma comicidade irônica, sarcástica." Para Garboggini, o diretor buscou uma forma de fazer drama com um toque de humor.
Parente é serpente, outro filme de Monicelli, caracteriza bem esse estilo, pois o autor mostra a relação de pais e filhos e, no final do filme, os filhos explodem a moradia dos pais para matá-los. A narrativa desse filme é desenvolvida de forma cômica, que causa riso, no entanto, no final do filme, o riso é provocado como constrangimento de uma situação desagradável. "É desse riso estranho que falo."
Algumas produções da década desapareceram com o tempo. De acordo com o professor, a filmografia italiana nem se compara com o glamour da década de 1960. Mas Monicelli conseguiu uma projeção diferenciada, que virou o século e acompanhou as tendências da história da cinematografia. Produz em escala menor, mas continua trabalhando. Brancaleone foi lançado em DVD há dois anos.
Consagração - Mario Monicelli é um dos mestres e, principalmente, um dos sobreviventes do cinema italiano, que, entre 1975 e 1976 começou a se dissolver. Aos 84 anos, com uma filmografia de mais de 50 títulos, é um nome forte na indústria cinematográfica. "Além de ser muito procurado, já pode ser considerado um patrimônio da história do cinema italiano", informa o professor João André Garboggini. Em 2003, foi convidado a presidir o júri do 60.º Festival de Veneza, no qual ele já foi contemplado com o filme A Grande Guerra, de 1959.
Atualmente, o criador dedica-se à produção de documentários. Em um deles, faz uma crítica à globalização. Entre os últimos trabalhos está um segundo documentário sobre o Fórum Econômico de Gênova. No roteiro, uma manifestação de rua contra o evento.
Formado em artes cênicas pela Unicamp e em Publicidade e Propaganda pela PUC-Campinas, Garboggini é professor de estética e publicidade e ministra disciplinas audiovisuais na PUC-Campinas.