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CMU leva educação não-formal à periferia de Campinas e cidades vizinhas visando transformação social
Memória em movimento
LUIZ SUGIMOTO
Guardar na memória. Temos aí uma expressão corrente que não deve satisfazer à professora Olga Rodrigues de Moraes von Simson, pois remete mais a memória estática e não traduz plenamente as atividades do Centro de Memória da Unicamp (CMU), que ela dirige. Mas é verdade que o CMU, criado em 1985 pelo professor José Roberto Amaral Lapa para preservar a memória histórica de Campinas e região, guarda hoje um acervo importantíssimo que municia pesquisadores de todas as áreas na construção do conhecimento. "Nossa proposta é de também atuar sobre a realidade", realça a socióloga, definindo o centro como um espaço neutro de estudos interdisciplinares, que atrai graduandos, pós-doutorandos e professores da Unicamp e de outras universidades para projetos ali desenvolvidos.
Assim, equipes do Centro de Memória vêm trabalhando com história oral e educação não-formal na periferia de Campinas e em cidades vizinhas, buscando uma transformação social por meio da recuperação da memória desses locais, em parcerias com empresas, organizações não-governamen-tais e prefeituras. As fontes são as crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos dos cursos e oficinas. "Educação não-formal é aquela realizada em espaços fora da escola normal, respondendo às demandas dos educandos, sem currículo pré-determinado, avaliação ou diploma, e que por isso se pretende mais agradável, envolvente e sedutora. Queremos desenvolver talentos e conhecimentos para que essas pessoas enfrentem as dificuldades de uma realidade muitas vezes marginalizada", explica Olga von Simson. A pesquisadora explica ainda que história oral é uma metodologia de pesquisa que permite reconstruir a realidade através da voz dos próprios atores sociais que dela fazem ou fizeram parte.
Um tema como a negritude, por exemplo, já fez com que o projeto fosse recusado por escolas formais de bairros originados por negros em Campinas, sob o argumento de diretoras e orientadoras pedagógicas de que tocar em feridas despertaria problemas de discriminação racial que, segundo elas, inexistem em suas unidades. Por isso, o CMU desistiu de parcerias com escolas formais. As primeiras experiências de história oral envolveram os antigos moradores do Cambuí e Vila Industrial, tradicionais bairros de Campinas, estendendo-se depois com oficinas de fotografia, memória histórica, informática, samba de roda, teatro, hip-hop, vídeo e jornalismo comunitário oferecidas aos adolescentes dos nos bairros periféricos da Vila Costa e Silva, Jardim Campineiro, Jardim São Marcos e, agora, na Vila Castelo Branco.
Oficinas - "Os adolescentes, por exemplo, incorporam em sua maioria a visão imposta pela grande imprensa de que a periferia é o espaço da violência, do desemprego, da marginalidade. Ao avaliar criticamente a imprensa, eles se transformam em jovens pesquisadores que procuram conhecer sua realidade e contam a história do bairro com outro olhar, num processo de construção da auto-estima", exemplifica Olga von Simson. O professor e jornalista Amarildo Carnicel, que responde pelas oficinas de jornalismo comunitário, lembra que ao introduzir o curso pedia que os adolescentes sugerissem bons assuntos que aconteciam no bairro. A primeira reação era de riso. "Não viam nada de bom, vestiam a carapuça, lembrando-se apenas da violência, das drogas e da falta de opções de lazer. Depois fomos identificando as pessoas que organizam o carnaval do bairro, a procissão, que faziam artesanato, um cantor, as lideranças, produzindo notícias que a grande imprensa ignora", recorda Carnicel.
A pesquisadora Zula Garcia Giglio conta que em algumas oficinas de criatividade, optou por trabalhar com a identidade grupal dos adolescentes, visto a animosidade entre grupos no bairro e mesmo a questão de gênero, numa idade de relacionamento complicado entre meninos e meninas. A professora tem a ajuda de um voluntário artista plástico no trabalho com argila, em que um adolescente, por exemplo, deve moldar o rosto de um colega. "O objetivo é basicamente o de desenvolver a auto-estima. Inicialmente, os jovens sempre se acham incapazes de mexer com a argila, dizem que ‘não dão para isso’, vêem o talento como algo que vem pronto. À medida que aprendem as técnicas básicas - como modelar, fazer o jogo de luz e sombra num desenho -, ficam encantados com o que produzem. Se antes trabalhavam meio que escondidos, quase embaixo da mesa, depois se animam para exposições, querem mostrar o trabalho em casa. Passam a se achar capazes", explica.
Outra visão - Boa parte dos adolescentes da periferia descende de famílias que, por serem de migrantes, sofreram com a discriminação quando se estabeleceram em Campinas, segundo observa Olga von Simson. Por isso, pais e avós reivindicam para esses jovens a condição de campineiros, evitando discutir suas origens em regiões pobres. "A falta de uma discussão transparente no âmbito da família, que permita ao jovem reconstruir suas origens e compreender seu papel como membro de um grupo familiar na história da cidade, impede a passagem da agressividade natural na adolescência - de brincar, urrar, gritar - para aquilo que chamamos de uma agressividade sublimada no campo da arte - a música, a poesia, as artes plásticas e tudo mais. Daí o surgimento das gangues, nas quais a agressividade é o fator que marca", pondera a pesquisadora.
Olga von Simson afirma que o interesse em desenvolver esse tipo de trabalho está em coletar, organizar e disponibilizar dados sobre a realidade de todas as classes sociais, e não apenas dos grupos hegemônicos. "Muitos voluntários do CMU têm sua história de vida nos bairros populares e chegaram à universidade pública graças a um esforço muito grande. Querem oferecer algum retorno para a população de onde vieram. Por outro lado, ao promovermos essa interação dos adolescentes com os velhos e suas memórias, recebemos informações e visões sobre a vida na periferia que o CMU, por si, nunca seria capaz de recolher", observa. Foi dessa maneira que ela soube da "lenda do corpo seco", que corre no Jardim Campineiro mas é desconhecida no resto da cidade: que o Barão Geraldo de Resende, não tendo cumprido a promessa de levar um escravo a Aparecida do Norte, acabou amaldiçoado e sua alma segue cavalgando um cavalo branco, depois das oito da noite, nos arredores da Mata Santa Genebra. "A história da elite, contada no acervo que a família do barão doou para o CMU, agora tem outros ângulos retratados sob o olhar das classes populares"
A professora Margareth Brandini Park, do Centro de Memória da Unicamp, atua há dez na formação de educadores em cidades vizinhas de Campinas, também embasando seu trabalho nas questões da memória e da história oral. "Trabalhando com depoimentos, histórias de vida, biografias, conseguimos recuperar pessoas que estão à margem da sociedade, rompendo com certa sacralização da escrita que existe dentro da universidade", afirma, referindo-se ao trabalho com alfabetização de idosos. Um projeto executado a partir de 1994 em Itupeva resultou no livro Memória, educação e cidadania, publicado dois anos depois. Em 1998, a pedagoga foi convidada pela prefeitura local a ir para Jarinu, onde entra no sétimo ano de atividades.
Servindo de escriba para os idosos que lhe contavam a história da cidade e incentivando os professores a produzirem textos sobre a realidade dos bairros, Margareth Park reuniu esses materiais num livro sobre o projeto em Jarinu, Memória em movimento na formação de professores, título que plagiamos para esta página. "Acredito que o papel do velho na nossa sociedade é extremamente frágil. Como ele não mais produz dentro do sistema capitalista, torna-se um fardo", critica. A professora afirma que, pessoalmente, não gosta de trabalhar com guetos, preferindo colocar em um mesmo ambiente crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos. "Considero os guetos como estigmas sociais. Na família, convivemos todos nesta heterogeneidade. Reunir um grupo só de determinada faixa etária empobrece as relações propostas", justifica.
Um achado no trabalho de Jarinu, segundo a pedagoga, foi a percepção de que a marginalidade do idoso dentro do sistema é parecida com a da criança, que ainda não produz, enquanto o velho já produziu. "Em nossas atividades, a criança cumpre o papel de provocar o idoso na reconstrução de suas memórias. É um casamento fantástico que nos tem trazido informações importantíssimas", diz a pesquisadora.
Margareth Park observa que jovens e adultos analfabetos, por exemplo, possuem uma auto-estima muito ruim. A idéia, dentro do projeto de educação não-formal, foi de aproximá-los das crianças que chegam para também serem alfabetizadas. "Entre outras coisas, as crianças escreviam para os velhos e estes, em troca, ensinavam brincadeiras para elas. Um pedreiro construiu uma maquete maravilhosa, em alvenaria, que deixou as crianças encantadas. É quando os idosos percebem que não sabem escrever ainda, mas têm o que ensinar aos mais jovens. Começam a olhar com certa relatividade as defasagens que eles trazem", observa a professora.
Tao Sigulda - O mesmo tipo de convivência foi levado para o campo das artes, entre as crianças e Tao Sigulda, um artista local, de origem européia, premiado internacionalmente e que reside na cidade, onde fundou um centro cultural. Arte, educação e projetos - Tao Sigulda para crianças e educadores é o livro lançado em 15 de abril pela editora Árvore do Saber, organizado por Margareth Park e a arte-educadora Suely Aparecida Iório, diretora da Cemei Alexandre Sartori, unidade da rede municipal de Campinas. A arte de capa do livro ilustra esta página. "Existem muitos trabalhos com esta linha na educação infantil, mas esse livro traz a idéia nova de trabalhar o artista local. Dentro da proposta de recuperar a memória e o cotidiano da cidade, elegemos um artista que está vivo (completou 90 anos em 4 de abril), que pode mostrar suas obras e conversar sobre elas com as crianças. O envolvimento das crianças é maior do que ao estudar inicialmente imortais como Monet ou Van Gogh", compara a pesquisadora do CMU.
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