CLAUDINE HAROCHE E JACY SEIXAS
O colóquio Sobre a Humilhação: sentimentos, gestos e palavras, que reuniu 25 intelectuais na semana passada na Unicamp, se inscreve em uma reflexão transdisciplinar sobre o lugar dos sentimentos na história e sua relevância para a compreensão do político e sua gestão. O sentimento de humilhação e as formas históricas e culturais assumidas pelo exercício da humilhação parecem nos fornecer elementos cruciais para a compreensão dos acontecimentos mais relevantes da contemporaneidade. Este tipo de interrogação e de objeto supõe, portanto, a consideração de abordagens diversas.
A antropologia e a psicanálise, a história e a sociologia, a literatura, o teatro, o cinema e a cultura de uma maneira geral não cessam de evocar e denunciar as situações de humilhação, de questionar as respostas e as atitudes que suscitam, sejam elas de submissão ou de contestação e revolta. Apesar da importância concedida às situações como às práticas degradantes, poucos são os trabalhos de síntese realizados sobre estes temas; da mesma forma, nenhum trabalho coletivo, reunindo especialistas de diferentes disciplinas, foi até agora organizado. Ora, a atualidade política, os conflitos nacionais e internacionais reveladores do impacto destas situações, assim como das reações que desencadeiam, impõem hoje que nos interroguemos sobre as experiências e os significados da humilhação, que se exprimem tanto no sofrimento silencioso do indivíduo isolado como nas insurreições coletivas. E o que dizer das dores e “silêncios” aparentes da humilhação? O que dizer de suas implicações, efeitos e significações nas estruturas de dominação e na emergência dos conflitos? Face às humilhações reiteradas e interiorizadas, muitas vezes tornadas habitus, como pensar as possibilidades de resistência e recusa que se inscrevem no plano individual ou coletivo?
Nesse colóquio, propomos discutir os significados da humilhação na modernidade e pós-modernidade, suas formas de expressão e seus efeitos nos processos de individuação e de subjetivação que, desde o século 18, atingem as configurações sociais e a integridade da pessoa. Abordaremos a questão da humilhação interrogando seus efeitos psicológicos e morais, que acarretam formas diversificadas de dominação, opressão ou perseguições implicando a negação de reconhecimento e, mesmo, a negação da existência. Sob esta ótica, se impõe o reexame de fatos e situações sociais, regimes e sistemas políticos específicos como a escravidão, o colonialismo, os regimes totalitários nazismo, fascismo ou stalinismo e outros processos atuais impregnados e re-significados pela predominância da razão instrumental.
A delimitação temática e metodológica apóia-se em sugestões de análises da Escola de Frankfurt, dentre as quais as de Adorno e Horkheimer (A Eclipse da razão e a Dialética da razão), as de Fromm (O Medo da Liberdade), as de Mitscherlich consagradas ao luto impossível e à sociedade sem pai, de Hannah Arendt sobre o sistema totalitário e a banalidade do mal, de Norbert Elias sobre os valores e comportamento das classes médias alemãs e, enfim, os trabalhos mais recentes de Friedlander (como Beyond the limits of representation) que procuram pensar as formas de identificação e transferência que permitem e sustentam, acompanham e encorajam tanto os mecanismos de mitificação como o culto à personalidade. Interessa-nos, em particular, trazer à discussão elementos que auxiliem a compreender a destruição de si mesmo (l´effacement de soi), o recalque da experiência da violência e exclusão que parece estar presente em parte significativa dos processos políticos da modernidade.
Examinaremos, assim, situações singulares em que se desencadeiam os sentimentos de humilhação: por exemplo, a globalização e as formas extremas de individualismo e atomização, onde os indivíduos, sem serem escravos, mas não se reconhecendo e não sendo reconhecidos como consumidores, são em grande medida inúteis. Ou seja, não se encontram mais em situação de sujeição clara, mas, imersos em uma indiferença generalizada, sentem-se inúteis, o que provoca um sentimento de isolamento, de abandono e impotência, exclusão e humilhação radical. Compreender, em suma, o fato de que “as sociedades globalizadas contemporâneas produzem um subdesenvolvimento moral e psíquico”. (E. Morin)
O estudo da humilhação coloca fundamentalmente a questão da relação entre os fatos e os sentimentos: como abordar, estudar, qualificar os sentimentos? Enfatizamos a necessidade de retomar textos fundadores como os de Weber, Mannheim, Durkheim, Simmel, Mauss; textos que constituindo a base das ciências sociais colocam ou reconhecem que o factual, o “real” é atravessado e estruturado pelos sentimentos (as maneiras de fazer, de se comportar, de agir intimamente vinculadas às maneiras de sentir, como afirma Durkheim).
Nessa trilha de reflexões algumas questões precisam ser enfrentadas: deve-se excluir os sentimentos da esfera analítica, considerada aquela que implica em distanciamento e objetividade? Os sentimentos constituem-se em objetos paradoxais precisamente porque se inserem na interioridade, na intimidade mais profunda, no caráter instável e fugaz dos não-ditos ignorados ou recalcados e, no entanto, demandam forma e expressão para serem apreendidos. Ora, quais as formas e relações históricas pelas quais eles se exprimem? Quais processos os sustentam? Que condições e situações sociais provocam a humilhação?
O sentimento de humilhação que visa essencialmente a rebaixar e mesmo aviltar o outro física e moralmente pode provocar, de forma aberta ou camuflada, efeitos de enclausuramento em si mesmo, de alienação e recalque profundos, ameaçando a integridade física e psíquica de um indivíduo ou grupo social. A humilhação ou as humilhações são, muito vezes, o resultado de um acúmulo de elementos e fenômenos aparentemente insignificantes e cotidianos, de sua repetição ao longo do tempo, ou, ao contrário, decorrem de uma experiência singular de tipo traumático? Ou os dois fatores combinam-se e entrecruzam-se?
A questão da humilhação supõe diferentes métodos e diferentes enfoques analíticos. Quaisquer que sejam eles, o vínculo com o religioso parece impor-se: a forma de atingir a Deus implica freqüentemente a humildade. A compreensão da humilhação tornou-se, portanto, hoje uma questão política tão decisiva quanto as reivindicações identitárias dos anos 80 ou a problemática do assédio no final dos anos 90. Este colóquio busca responder à necessidade e urgência deste debate.