Núcleo de Economia Agrícola avalia resultados
de programas no Nordeste financiados pelo Banco Mundial
Para o combate à
pobreza rural dar certo
LUIZ SUGIMOTO
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Lata d’água na cabeça. Água amarelada, trazida do barreiro a quilômetros de distância. O cidadão cosmopolita, que esquece a torneira pingando, não imagina o conforto que significa uma cisterna garantindo água na porta de casa, por metade do ano que seja, aliviando mulheres e crianças daquele périplo e deixando os vermes de doenças no barreiro que é o lugar deles. Mas pobreza não se lava apenas com água de chuva. Os programas de combate à pobreza no Nordeste existem há muito tempo e conhecemos todas as histórias de como as oligarquias locais se apropriaram dos recursos que nunca chegaram às populações pobres, enquanto açudes e redes de eletricidade eram instalados em fazendas. Somente o mau uso e o desvio de recursos explica porque esta região, que ao longo de décadas recebeu bilhões de dólares para programas sociais e de combate à seca, continua apresentando a maior concentração de pobreza da América Latina”, afirma o professor Antônio Márcio Buainain, do Núcleo de Engenharia Agrícola (NEA) da Unicamp.
Buainain coordena uma equipe de mais de 60 pessoas entre professores, estudantes e técnicos da Unicamp e de outras universidades que começa a avaliar os impactos do Programa de Combate à Pobreza Rural (PRPC), na sua versão dois. Trata-se da avaliação de milhares de projetos pontuais de infra-estrutura água, energia elétrica, moradias, pontes, estradas em centenas de municípios de quase todos os estados do Nordeste. “É uma pesquisa pioneira num país sem a tradição de avaliar os resultados das ações do Estado. Costuma-se medir apenas o desempenho físico: quantos cursos foram organizados e quantos alunos participaram, quantos sem-terra foram assentados e quantas propriedades desapropriadas etc. Esse tipo de estatística interessa pouco, pois o objetivo não é apenas desenvolver cursos ou assentar famílias, mas capacitar gente e tirá-las da pobreza. Não sabemos se esta capacitação ou assentamento resultou em melhoria de vida, em aumento de oportunidades de trabalho e de salários. É como distribuir remédios sem saber se os doentes estão se curando”, observa o professor do Instituto de Economia.
Financiada pelo Banco Mundial (Bird) e pelos estados, a pesquisa de campo é exaustiva e profunda. Neste início de ano, a equipe de Antônio Buainain já visitou Pernambuco, Ceará e Bahia, percorrendo 50 municípios em cada estado e empregando questionários em conselhos municipais, associações comunitárias e famílias beneficiárias. No segundo semestre, o trabalho será estendido para Sergipe, Maranhão e Paraíba. O professor explica que a avaliação engloba os projetos em execução a partir de 2002. Para esta fase, o Bird já liberou empréstimos de US$ 60 milhões para Pernambuco, US$ 110 milhões para o Ceará e US$ 120 milhões para a Bahia. Por cada dólar emprestado, o governo estadual deve oferecer uma contrapartida no valor de 50% do câmbio oficial. É dinheiro utilizado em cerca de 950 projetos em mais de 150 municípios, beneficiando 20 mil famílias. Na Bahia e Ceará mais que o dobro. Verificar se esses gastos estão valendo a pena, se a população pobre vem sendo mesmo beneficiada, é o objetivo dos pesquisadores.
Nova ótica Segundo o professor José Maria da Silveira, coordenador adjunto da pesquisa, a regalia de drenar recursos públicos conforme interesses pessoais ou políticos começou a se esvair, quando o Banco Mundial, em meados dos anos 1990, decidiu não mais financiar obras de infra-estrutura geral, mas apenas pequenos projetos direcionados diretamente para população pobre. Outro aspecto que o pesquisador considera positivo foi a restrição, a 10% dos recursos, dos gastos com a tecnoburocracia, ou seja, com serviços da máquina estatal. Sob esta nova ótica, surgiu o Programa de Desenvolvimento Rural-1, em 1995. “Ocorre que as obras, embora direcionadas de fato para a população rural pobre, eram todas decididas e executadas pelo Estado, que indicava as comunidades beneficiadas e se encarregava, por exemplo, da construção de moradias ou da contratação das empreiteiras. Os recursos eram usados fundamentalmente como instrumentos de barganha política”, afirma Silveira.
Em 1999, sob a denominação de PCPR-2, o programa ganhou um formato mais participativo, cabendo às comunidades a decisão sobre em que gastar, bem como a execução dos projetos, deixando para o governo estadual o papel de fiscalização. O dinheiro é transferido diretamente para as associações comunitárias. Em meio aos projetos de infra-estrutura, pode-se incluir um trator comunitário, um pequeno armazém, uma unidade de conservação a frio, uma padaria. “Esse formato também visa desenvolver o que chamamos de capital social: é a capacidade de ação coletiva, de interação na comunidade para solucionar seus problemas, desenvolvendo competências e ganhando poder de pressão política”, acrescenta Antônio Buainain.
Questionário A pesquisa, nesse primeiro momento, vai avaliar o funcionamento do PCPR-2: como a unidade técnica responsável, sediada nas capitais, toma as decisões estratégicas, definindo prioridades e regras; como os conselhos municipais encaminham os problemas, decidem a alocação dos recursos e se há ou não interferências políticas; como as associações comunitárias discutem suas decisões e executam as obras; como e quais famílias são beneficiadas. “Uma informação é básica: a família é mesmo pobre ou nem tanto? Pretendemos traçar um perfil da população beneficiária para assegurar que de fato o projeto atinja atingje seu alvo, bem como se as necessidades da população são atendidas ou se suas necessidades são outras”, esclarece Antônio Buainain.
Num segundo momento, dentro de dois anos, os pesquisadores voltarão aos estados para medir os impactos do Programa de Combate à Pobreza Rural, auferindo sucessos ou indicando correções de rota. Nas visitas realizadas este ano, no entanto, a equipe já pôde testemunhar o impacto de projetos como o de construção de casas em alvenaria, em lugar do barro e da palha que abrigavam o barbeiro, ou da chegada da luz elétrica com um televisor que colocou aquele cidadão no mundo. “Sabemos que este programa não vai eliminar a pobreza, o que depende de mudanças estruturais muito mais amplas como educação e criação de condições de trabalho. Mas, quem se vê em sua casinha própria, já projeta um pequeno galpão para as ferramentas; quem vê uma luz acesa, planeja a compra de uma geladeira usada. São coisas mínimas que despertam fantasias, dão esperanças, geram expectativas e colocam a comunidade em movimento”.
De acordo com o professor Antônio Márcio Buainain, nos últimos anos, o poder de decisão sobre projetos sociais no Nordeste tem sido efetivamente transferido das oligarquias para os conselhos municipais. Mas ele ressalta que esse processo precisa ser visto dentro do jogo político. A velha estrutura foi rompida primeiramente no Ceará, com a experiência pioneira do Projeto São José, estabelecido em 1995, seguindo a diretriz de envolver as populações pobres nas decisões e na condução do Programa de Combate à Pobreza Rural. “Foi quando Tasso Jereissati assumiu e criou os conselhos municipais de desenvolvimento sustentável, cujos representantes líderes de comunidades, federações, associações, sindicatos estavam fora da estrutura de poder político tradicional. Seu objetivo foi justamente o de esvaziar o poder das oligarquias locais que controlavam as prefeituras”, observa o pesquisador.
Contudo, à medida que o grupo de Jereissati foi consolidando o poder no estado, eliminando de fato a oligarquia tradicional, o papel dos conselhos passou a se debilitar, segundo Buainain. “Embora os conselhos continuem, seu papel tornou-se menos relevante, agora que o governo possui interlocutores diretos na estrutura convencional”, afirma. Para o professor, em Pernambuco acontece o mesmo. “As prefeituras do agreste eram dominadas pelo partido de Miguel Arraes, ‘o governador do sertão’. Eleito governador, governo, Jarbas Vasconcelos criou os conselhos municipais, transferindo para eles o poder de decisão sobre o uso dos recursos, rompendo a estrutura tradicional. Mas tenho a sensação de que a consolidação do governo em Pernambuco levaria à mesma debilitação dos conselhos vista no Ceará”, especula o professor.
Na Bahia, não se quebrou a oligarquia e o PCPR foi uma arma política importante durante a primeira fase. E a transferência de poder para os conselhos municipais, com a versão dois, também se deveu a sutilezas políticas. Buainain nota que o governo baiano, de uns tempos para cá, aparentemente embarcou em um processo de modernização política semelhante ao do Ceará. E, em época de recursos escassos para programas sociais tanto por parte dos governos como dos organismos internacionais , atender a alguns, em detrimento de muitos, implica em ônus elevado. “Quando a escassez aumenta, fica interessante criar mecanismos de alocação de recursos mais ou menos automáticos. Havendo uma regra de distribuição através dos conselhos municipais, com a aprovação de todos, o poder central pode se omitir de arbitrar o dinheiro, protegendo-se politicamente”, pondera o pesquisador.
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