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Para Scliar, ciência e literatura são compartimentos da mesma cultura
A medicina é um terreno fértil de inspiração para os escritores na opinião de Moacyr Scliar, um dos palestrantes do evento “Diversidade na Ciência II uma reflexão sobre o conhecimento e seu modo de produção”. Médico sanitarista e um dos mais importantes escritores brasileiros, Scliar revela que sua literatura se beneficiou da leitura de textos científicos. “A influência da medicina sobre a minha literatura foi transcendente”. Na entrevista que segue, o escritor gaúcho fala também da importância da tecnologia na prática da medicina, discute a relação médico-paciente nesse contexto e a importância da transdisciplinaridade na difusão do conhecimento.
Jornal da Unicamp - O senhor pertence à linhagem dos escritores médicos, como Cronin, Pedro Nava, Guimarães Rosa e alguns outros. As duas atividades se interpenetram e dialogam entre si?
Moacyr Scliar - Não tenho dúvida. Acho que a prática da medicina representa um verdadeiro mergulho na natureza humana, que é afinal o terreno fértil de inspiração para os escritores. Médicos e escritores partilham esse interesse pelo ser humano. De outra parte, a literatura ajuda também a prática da medicina. Não só escrever, como ler. Muitos escritores souberam traduzir, nos seus textos ficcionais ou não-ficcionais, o fenômeno da doença e a relação médico-paciente, de uma forma que resulta em aprendizado muito útil tanto para o estudante de medicina como para os médicos. Aliás, não é por outra razão que muitas faculdades de medicina desenvolvem uma disciplina chamada “Humanidades médicas”, que busca alargar o horizonte intelectual dos profissionais. E, nessa disciplina, a leitura de texto ficcionais, como é o caso de A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstoi, é usado como uma forma de aumentar a compreensão do profissional em relação à aproximação com o paciente.
JU - O senhor diz na súmula de sua palestra que as humanidades, “aí compreendidas a literatura, línguas, filosofia e arte, precisam do rigor lógico da ciência”, assim como a ciência “precisa da flexibilidade, da liberdade de imaginação que resulta da prática humanística”. Em que sentido a literatura, para ser específico, poderia servir-se do “rigor lógico da ciência”?
Scliar - Posso dar um exemplo pessoal. Acho que o texto científico prima pela objetividade, pela concisão e pela precisão. Essas qualidades, paradoxalmente, ajudam muito no texto literário. A escrita de um texto ficcional não necessariamente rejeita essas qualidades que caracterizam o texto científico. Não existe aquilo, que no passado se falava, de duas culturas separadas: a literária e a científica. Na verdade, são dois compartimentos de uma mesma cultura. Acho que o meu texto, de uma maneira geral, se beneficiou muito dessa leitura dos textos médicos e dos textos científicos.
"O texto científico prima pela objetividade, pela concisão
e pela precisão. Essas qualidades ajudam muito no texto literário"
JU - Da mesma forma, o senhor diz que a ciência teria muito a lucrar com uma aproximação da prática humanística. Mais uma vez: em que sentido? Em sua opinião, a ciência está desumanizada?
Scliar - O que acontece hoje com a prática médica é que ela recorre muito à tecnologia. Praticamente não existe hoje uma área da medicina à qual a tecnologia não desempenhe um papel. Isso significa procedimento, exame, equipamento. E pode acontecer que essa tecnologia em excesso funcione como uma barreira entre o médico e o paciente, que pode passar a se sentir um objeto de uma investigação, ressentindo-se da falta do contato humano. A literatura é um exemplo do contato humano sob a forma de um texto. Acho que o ato de ler e escrever afina a sensibilidade do médico e faz com que ele, sem desprezar a tecnologia, valorize essa relação médico-paciente.
JU - Ao depender cada vez mais da ciência e da tecnologia, o senhor afirma que a prática médica estaria se afastando da “arte da medicina”. Pode exemplificar como isto se dá? Como resolver a questão?
Scliar - Quero dizer em primeiro lugar que a tecnologia melhorou enormemente a prática médica. Se ela gerou problemas, esses problemas não devem ser enfrentados com a marginalização da tecnologia. Nós precisamos de mais tecnologia, não de menos. O que precisamos é fazer com que a tecnologia não desloque o relacionamento entre seres humanos porque, afinal de contas, a prática médica é fundamentalmente isso, uma relação entre pessoas, sendo que uma das quais tem habilidades e a outra tem um problema. Mas, ao cabo de tudo, são pessoas que em algum momento terão que se relacionar como pessoas.
JU - Se o senhor não fosse médico, mas advogado, jornalista ou engenheiro, sua literatura seria diferente?
Scliar - Seria diferente, sem dúvida. A influência da medicina sobre a minha literatura foi transcendente. A gente muda como ser humano quando estuda e pratica a medicina. É uma profissão que exige um tal envolvimento pessoal que acarreta inevitavelmente uma transformação. O médico pode usar vários instrumentos no seu trabalho, mas o principal instrumento é ele. É o que ele diz, a maneira como se relaciona com o paciente, a maneira como o toca. Todas essas coisas são importantes. Vejo isso na minha literatura. O próprio texto mudou, doença é uma coisa que freqüentemente aparece, assim como médicos. Mas, além disso, mergulhei mais fundo na natureza humana do que mergulharia com qualquer outra profissão. Não digo que isso seja uma condição sine qua non, mas que ajuda, ajuda.
JU - O avanço tecnológico coloca novas questões no campo da ética. Como o senhor analisa esse novo cenário?
Scliar - Ninguém tem uma resposta precisa sobre isso, mas algumas coisas certamente apresentam um caminho equivocado. Uma delas é a relação entre médicos e pacientes no tribunal. Pacientes estão constantemente processando médicos, que por sua vez estão praticando o que a gente chama de medicina defensiva. Trata-se de uma medicina que fica atenta à possibilidade de processos judiciais. Isso aumenta custos, perturba a relação entre médicos e pacientes e acaba prejudicando a qualidade do atendimento. Acho que não é por aí. É preciso rediscutir as relações entre médicos e pacientes à luz das novas tecnologias.
JU - Alguns intelectuais argumentam que a tecnociência é pouco afeita ao debate, sobretudo quando associada a grandes corporações. O senhor concorda?
Scliar - As grandes corporações têm uma presença muito grande no nosso mundo. Agora, as pessoas não são obrigadas a aceitar isso como fato consumado. Há muitas maneiras de reagir contra essa situação, afinal de contas a democracia que enseja o surgimento dessas corporações também dá meio para que as pessoas possam se defender do controle corporativo. Muitas entidades e organizações podem contrabalançar o poder das corporações.
JU - O senhor escreve que “ciência e humanidades constituem compartimentos quase estanques, ‘duas culturas’, segundo a expressão do físico e escritor inglês Charles Percy Snow. A barreira, contudo, é artificial e resulta de um especialismo que acaba por prejudicar tanto ciências como humanidades, que ganhariam muito mais se houvesse um efetivo intercâmbio entre as áreas”. O senhor acha que tem havido um esforço para que essa barreira desapareça?
Scliar - Não tenho dúvida. Em 1993, só para dar um exemplo, na qualidade de professor visitante da Brown University, nos Estados Undiso, dei um curso sobre a imagem do médico e da medicina na literatura. Então, as pessoas já se deram conta disso. A conferência do Snow foi muito importante no sentido de alertar, mas não se deve tomar aquelas afirmações que ele fez, naquela ocasião, como uma coisa definitiva.
JU - Até que ponto o senhor acha que a transdisciplinaridade é importante na difusão e na produção do conhecimento?
Scliar - Ela é fundamental. Na área que trabalhei e continuo trabalhando que é saúde pública, é uma tendência irreversível. Acho que na medicina e em outras áreas, também. A separação entre especialidades que correspondem a uma necessidade de aprofundar o conhecimento, não é inevitável. Em algum momento, até porque são especialidades, elas terão que se unir para resolver problemas que têm em comum.
"É preciso rediscutir as relações entre
médicos e pacientes à luz das novas tecnologias"
JU - O senhor acha que a literatura tem refletido as mudanças registradas no mundo?
Scliar - É uma pergunta interessante. Nos anos 40 e 50, houve uma explosão daquela literatura chamada de ficção científica. A maior parte das obras eram menores, sem grande valor literário. Mas isso não impede que a influência da ciência na literatura se faça não somente na área da temática, mas também no campo das idéias, desse progresso que representa o avanço científico. Acho que a cultura e a literatura se beneficiaram disso. Há exemplos maiores, como o do cinema, que mudou drasticamente com a tecnologia. Temos filmes de 20, 30 anos que já nos parecem superados.
JU - O senhor tem uma coluna que trata de fatos cotidianos em um jornal de circulação nacional. Como é essa experiência e no que ela difere da literatura?
Scliar - São muitas as diferenças. O jornal tem, de um lado, limitações de tempo, de espaço, de temática etc. E a gente precisa contemplar isso. Mas, a partir daí, posso exercitar minha imaginação, ou seja, funciona como um desafio. No caso do texto literário, ninguém me cobra. De uma maneira geral, tenho tempo para pensar numa história, não sou motivado por alguma coisa circunstancial. Mas, acontece também que o que se ganha em superfície também se perde em profundidade, e vice-versa. O texto de jornal pode não permitir um mergulho literário tão intenso, mas ele vai pegar um público muito maior. Incorporar público, sobretudo num país como o Brasil, é uma tarefa que deve envolver todo mundo, sobretudo os intelectuais. São duas coisas diferentes, cada qual com suas vantagens e desvantagens, mas acho que ambas se completam.
Quem é Moacyr Scliar
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Médico sanitarista por formação, o escritor Moacyr Scliar (Porto Alegre, 1937) é autor de mais de 60 obras que abrangem conto, romance e ensaio. Recebeu numerosos prêmios, entre os quais o Jabuti, Casa de las Americas, José Lins do Rego e Guimarães Rosa. Teve textos traduzidos para doze idiomas. Foi professor visitante no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University, EUA. Ocupa desde julho de 2003 uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Escreveu A Guerra no Bom Fim (1972), O Ciclo das Águas (1975), Mês de Cães Danados (1977), O Centauro no Jardim (1980), A orelha de Van Gogh (1988) Sonhos Tropicais (1992), A Paixão Transformada: História da Medicina na Literatura (1996), A Majestade do Xingu (1997) e Saturno nos Trópicos (2003).
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