ANDRÉ TOSI FURTADO
A introdução da ciência e da tecnologia na agenda da ação pública dos países desenvolvidos data do pós segunda guerra mundial. Foi essa guerra, com a formidável mobilização de recursos por parte da superpotência americana no Projeto Manhattan para desenvolver a bomba atômica, que fez com que se alterasse estruturalmente a relação entre Estado e C&T. O rápido sucesso do empreendimento revelou que uma maciça mobilização de recursos podia resultar em grandes rupturas tecnológicas. Essa percepção foi, inicialmente, essencialmente militarista e estratégica. Posteriormente, começaram a emanar novas demandas da sociedade civil nas áreas de saúde, energia e meio ambiente, entre as mais expressivas. Mas, sobretudo, o apoio público à C&T tornou-se um instrumento de promoção da competitividade de economias nacionais cada vez mais abertas e submetidas à concorrência externa.
O Brasil é um país de industrialização tardia que logrou aumentar bastante o gasto de P&D, principalmente durante os anos 70, quando o projeto militarista de país grande potência implicou em um grande salto no montante de recursos alocados pelo Estado. O apoio à pós-graduação e à criação de numerosos institutos públicos e de laboratórios de pesquisa em empresas estatais levou o sistema de ciência e tecnologia brasileiro, ainda retardatário e embrionário, a dar um salto qualitativo. Mas a crise da década subseqüente representou uma descontinuidade ao processo de consolidação desse sistema. Os gastos em P&D foram perdendo importância dentro das prioridades públicas. Nem todos os componentes desse gasto sofreram com a mesma intensidade. O braço estratégico-militar muito apoiado durante o regime militar foi paulatinamente perdendo espaço no gasto público em P&D no Brasil. Enquanto que os gastos em programas civis tiveram um pouco mais de continuidade.
A política científica e tecnológica foi perdendo espaço no âmbito político nacional à medida que ocorre o processo de redemocratização do país. Além da crise e do estrangulamento do gasto público, a relação de forças não beneficiou esse segmento que não mobiliza amplos interesses da sociedade ou da economia. A proporção do gasto federal em P&D dentro do PIB caiu praticamente pela metade num período de 20 anos. Essa queda ocorreu também com relação à receita corrente e à despesa global da União, revelando que houve ao longo das duas últimas décadas uma perda de prioridade da C&T no gasto público federal (tabela 1).
Durante a segunda metade da década de 90, com a volta do crescimento econômico, ocorreu uma certa recomposição do gasto público federal em P&D, sobretudo em relação as receitas correntes do Estado, a qual foi insuficiente para recuperar a posição anterior. O que é pior, a crise que se abateu sobre a economia brasileira, no final da década passada, conduziu a um novo ciclo de enxugamento do gasto federal em P&D.
Em 1998, ocorreram, em função da crise enfrentada pelo plano Real, cortes substanciais no orçamento federal que repercutiram muito negativamente no gasto público em P&D. Os recursos federais reduziram-se de 15% em termos reais em relação a 1996 (Tabela 2). Presenciando os cortes que estavam sendo feitos em importantes programas federais como o PADCT III ou o Pronex, alguns setores do Governo FHC decidiram tirar proveito da mudança institucional que estava em curso no país, em função de quebras de monopólios e da eventuais privatizações em setores dominados pelo Estado, para introduzir mecanismos fiscais que obrigassem o setor empresarial a financiar diretamente o gasto em P&D, compensando, assim, os cortes empreendidos nos recursos de origem orçamentária. Nesse contexto, surgem, a partir de 1999, os Fundos Setoriais que permitiram que houvesse uma certa reposição dos gastos federais, ainda assim incompleta (tabela 2).
Essa vitória foi apenas temporária. No ano de 2001, o gasto federal em P&D consegue se recompor, aproximando-se do valor alcançado em 1996. Mas, o aprofundamento da crise brasileira, no início da atual década, levou o governo federal a cortar, em 2002, a nova fonte de recursos proveniente dos fundos setoriais, embora eles fossem protegidos por lei. Diversas medidas foram adotadas pelo Ministério da Fazenda para restringir a execução desses recursos, que se manteve numa faixa de 40% dos recursos obtidos. O destino dos recursos foi se modificando paulatinamente dos fundos setoriais, propriamente dito (petróleo, energia elétrica, telecomunicações), para fundos de características mais horizontais (Verde Amarelo e CTInfra). Isto porque os recursos, inicialmente concebidos para servirem de instrumentos de política tecnológica setorial, se voltaram para atender às necessidades do sistema público de pesquisa, desguarnecido pelos crescentes cortes de verbas.
Esses dados são apenas um retrato parcial da realidade do financiamento público à P&D no Brasil, já que os recursos orçamentários aqui apresentados representam apenas parte do gasto nacional em P&D (26,2% em 2000), mas eles têm grande influência nos demais gastos e no direcionamento do sistema nacional de C&T. Eles revelam a perda de prioridade que a agenda de C&T adquiriu no ambiente público apesar da retórica existente em sentido contrário. Assistimos, no caso brasileiro, a mais uma ilustração da tese do saudoso professor Amílcar Herrera sobre o descompasso entre as políticas de C&T explícita e implícita existente nos países latino-americanos. A política explícita está presente nos documentos e discursos oficiais e a política implícita se revela nas opções concretas adotadas pelas decisões de política econômica, comercial e industrial e, sobretudo, nas opções de projeto nacional realizadas pelas classes dominantes. Assim, os técnicos “neoschumperianos” das esferas federais de Ciência e Tecnologia foram muito atuantes no sentido de gerar inovações institucionais que ampliaram e diversificaram as fontes de financiamento e as modalidades de ação pública. Entretanto, até o momento eles têm demonstrado uma certa incapacidade política em fazer prevalecer o seu projeto dentro das prioridades do gasto público federal. De fato, enfrentaram uma simétrica criatividade dos técnicos da Fazenda em desfazer suas iniciativas.
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André Tosi Furtado é economista e professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências da Unicamp.