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Do caldo de cana ao
suco de açaí (Parte II)



RACHEL LEWINSOHN

Amigos, podemos dormir tranqüilos. “O mal de Chagas está controlado no país”, afirmou o doutor Humberto Costa em Petrolina (PE), a 8 de abril.1 E as seis fatalidades e dezenas de pessoas internadas em Santa Catarina, segundo dados oficiais (quase certamente incompletos)? E o surto no Amapá, sobre cuja morbidade e mortalidade as fontes oficiais mantêm discreto silêncio? “São [casos] excepcionais, com uma nova forma de transmissão oral, totalmente diferente da tradicional.” Chamem-nos de “casos excepcionais”, “acidentais” (C.O.Miranda) ou do que quiserem – é indiscutível que não se trata de alguns casos esporádicos, mas de surtos de uma doença que, no ver das autoridades, está controlada. Controlada? Obviamente o termo precisa ser definido. Quanto à “novidade” da via oral de transmissão, ela é conhecida há décadas (ver parte I deste artigo).

Na mesma entrevista do doutor Humberto Costa, fomos informados de que “a pasta está desenvolvendo um trabalho para reduzir a incidência do mal de Chagas na Bahia, único Estado onde há registros de pessoas infectadas pelo...Trypanosoma cruzi (causador do mal)...”

(Itál.RL) Que registros são esses? Seriam por acaso os da doença aguda, de notificação compulsória em todo o Brasil? Devemos entender que a Bahia abarca o último reduto da doença? A frase, conforme consta, pouco informa.

Com o devido respeito, senhor ministro, tínhamos o direito de esperar coisa melhor. À vista da ignorância generalizada sobre a doença e os surtos recentes, o público precisa ser informado do ocorrido, dos perigos do contágio, e do que significam as medidas de controle. As notas técnicas do Ministério da Saúde (internet),2, 3 não alcançam o grosso da população. Por outro lado, afirmações pretensamente tranqüilizadoras são de pouca valia enquanto escamotearem essas explicações. O que se faz necessário e urgente são esclarecimentos sobre (1) causas, transmissão e manifestações da doença, e sua prevenção; (2) as medidas de controle; e (3) o significado e os limites do controle.4 Tentarei resumir estes dados complexos..

A tripanossomíase americana foi descoberta por Carlos Chagas, que em 1909 descreveu o primeiro caso humano. Sua causa é o Trypanosoma cruzi, protista flagelado transmitido a animais de sangue quente por um inseto sugador de sangue¯o barbeiro. O habitat de ambos, barbeiro e T.cruzi, é silvestre, assim como o dos seus hospedeiros naturais: tatus, roedores, morcegos etc. Forçados pelo desmatamento a voar à procura de outros nichos, os barbeiros adentram as habitações humanas, onde proliferam enormemente nas coberturas de sapê e folhas de palmeiras dos barracos e casas de pau-a-pique e nas rachaduras das paredes e tetos. Suas fezes “chovem” sobre os habitantes (e sobre alimentos, panelas e depósitos de água destampados). De noite saem de seus esconderijos para sugar o sangue de suas vítimas, em cuja pele ou mucosa, perto da picada, depositam suas fezes, que contêm o T.cruzi (transmissão vetorial, a via mais importante no passado). Quando a vítima esfrega o olho ou coça a pele, as fezes são introduzidas na corrente sangüínea pela mucosa ou a minúscula lesão da picada, ou qualquer outra (p.ex. picada de mosquito).

São outras vias de transmissão: a transfusão de sangue ou componentes sangüíneos, a via congênita (pela placenta), a via oral, o transplante de órgão de doador chagásico, o acidente de laboratório.

As formas da doença, aguda e crônica, são muito variáveis. São fatores de grande risco: a baixa idade, a imunodepressão. A infecção aguda aparece 8-10 dias após o contágio, dura de alguns dias até 8 semanas, e extingue-se espontaneamente. Começa com febre alta, contínua (2 a 5 dias), dores generalizadas, fígado, baço e gânglios linfáticos (ínguas) aumentados; taquicardia, miocardite, e outros sintomas. O chagoma, inchaço na pele em qualquer lugar do corpo, e o sinal de Romaña, inchaço em um dos olhos, que indicam o ponto de entrada do parasita, selam o diagnóstico. Note-se, porém, que podem faltar alguns ou todos os sintomas: o indivíduo pode não ter nenhuma suspeita de ter-se infectado. Na fase aguda são destruidos os gânglios parassimpáticos que controlam parte da atividade do coração e do aparelho digestivo. A extensão dessas lesões irreversíveis depende da carga parasitária, do estado do paciente e de outros fatores, e determina o curso da doença. As formas nervosas, aguda e crônica, são mais raras. Transmitida por transfusão de sangue, a doença pode assumir forma desde indeterminada até aguda.

O espectro da fase crônica é largo: desde silenciosa no portador assintomático, até moderada ou grave no doente sintomático, com todas as manifestações da cardiopatia e/ou megaesôfago ou megacólon. Na cardiopatia, de longe a forma mais comum e mais grave, predominam a cardiomegalia (“coração de boi”), os aneurismas, e em particular as arritmias, batimentos cardíacos irregulares, difíceis de controlar e que podem levar à morte súbita. Dos “megas”, o mais comum entre nós, além da cardiomegalia, é o megaesôfago (mal do engasgo) resultado da destruição maciça dos gânglios parassimpáticos desse órgão. Os problemas começam com a dificuldade de engolir alimentos sólidos, e aumentam até a impossibilidade de engolir mesmo água. Menos freqüente (mas não raro) no Brasil é o megacólon, que gradualmente vai impedindo o funcionamento do intestino grosso, até sua paralisação. Pode ser atacado um só órgão, ou vários ao mesmo tempo. Por motivos desconhecidos, a doença crônica pode se agudizar de repente, podendo levar à morte súbita.

Tratamento. Algumas feições da forma crônica admitem intervenção cirúrgica: implantação de marca-passo; transplante cardíaco; ressecção parcial do esôfago, etc. Para a fase aguda existem dois medicamentos, ainda controvertidos. Iniciado o tratamento o mais cedo possível, e mantido sob rigoroso controle médico (duração, efeitos colaterais!), o índice de cura é alto. Na fase crônica, a eficácia é baixa ou nula. Excetuando os casos cirúrgicos, e os agudos tratados da forma descrita, para todos os efeitos a doença crônica é incurável. A literatura médica não relata nenhum caso de cura espontânea. Não existe vacina contra a doença de Chagas.

A grande esperança para o chagásico crônico é o tratamento regenerativo com células-tronco, que há pouco vem sendo realizado no Brasil com resultados muito animadores. Porém, não é solução a curto prazo. A terapêutica, ainda na fase experimental, precisa ser pesquisada exaustivamente; há que considerar também os vastos problemas que surgirão com a aplicação a (literalmente) milhões de indivíduos.

A prevenção, discutida na parte I deste artigo, consiste em manter a moradia livre do barbeiro; proteger água e alimentos de poluição; evitar legumes, frutas ou sucos crus que deixem qualquer dúvida sobre sua possível contaminação.

Controle. A infecção natural é um estado de equilíbrio, resultado da presença do T.cruzi em inúmeros insetos e animais silvestres, infectados mas não doentes. Este reservatório, inacessível a qualquer medida de combate, é a fonte inesgotável do vetor e do agente causal da doença de Chagas humana. As campanhas visam à interrupção da transmissão vetorial, aplicando inseticidas de efeito residual nas moradias humanas. O barbeiro também tem papel na transmissão oral; portanto as campanhas antivetoriais assumem duplo significado, mas é claro que não atingem o vetor silvestre.

A colaboração da comunidade na vigilância constante é um dos fatores principais do sucesso das campanhas. Para garantir o terreno ganho, são essenciais: educação, pesquisa; cuidados ambientais; melhores condições habitacionais, rurais e urbano-interioranas; e em perspectiva mais ampla, a reforma agrária. Sobretudo são indispensáveis abrangência e continuidade na atenção de autoridades, médicos, sanitaristas, e da comunidade, aos problemas em pauta – na sua maioria econômicos, sociais e políticos. As campanhas das últimas décadas virtualmente eliminaram o Triatoma infestans em grande parte do Brasil, sucesso comprovado pela queda da incidência (casos novos por ano) em crianças de 0 a 6 anos e escolares. Mas quando as verbas antivetoriais foram desviadas devido a um surto de dengue, a incidência prontamente aumentou, provando que o combate ao barbeiro é indispensável para evitar a anulação dos sucessos já alcançados. .

Nos Estados considerados endêmicos, décadas de esforço conjunto conseguiram interromper a transmissão vetorial, eliminando o Triatoma infestans domesticado. Outra via importante de transmissão, a transfusional, está sendo efetivamente controlada em grande parte do Brasil. Mas, ao abrandar-se a vigilância, o T.infestans pode recolonizar os locais desinfestados, ou outra espécie pode ocupar o seu lugar. A existência do reservatório silvestre torna inatingível o controle total, e todos os especialistas ressaltam que não há nenhum canto do Brasil fora de perigo. A prova cabal disso são os surtos recentes da doença, em regiões consideradas não endêmicas. Provavelmente foram silvestres as espécies de barbeiros e as cepas de T.cruzi envolvidas em S.Catarina e na Amazônia, explicando em parte a virulência dos surtos. Até a década de 1960 a região amazônica era considerada indene; mas desde então, devido ao desmatamento, registram-se casos da doença cada vez mais numerosos, com predomínio da via oral de transmissão.

É indiscutível que houve progresso importante no controle da transmissão vetorial e transfusional no Brasil; mas não posso enfatizar o bastante que controle de transmissão não quer dizer erradicação da doença. “Seria um erro imaginar que a doença de Chagas está vencida,.” dizem três dos maiores especialistas na área.5 E acrescentam: “Paradoxalmente, o sucesso das campanhas constitui um dos maiores perigos, pois à medida que diminui o problema de saúde pública, parece diminuir a necessidade da vigilância contínua...” É o caso do tísico que, mal parou de tossir, interrompe o tratamento, considerando-se curado.

Não amigos, ainda não podemos dormir tranqüilos.


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1 Folha Online, 09/04/2005.

2 saude.gov.br/svs/destaques/nota_chagas3.htm

3 http://www.cpqam.fiocruz.br/noticia.php?id=95

4 Ver R Lewinsohn, Três Epidemias – Lições do Passado, Ed.Unicamp, 2003, cap.”Carlos Chagas”.

5 JCP Dias, AC Silveira, CJ Schofield, The impact of Chagas disease control in Latin America – a review. Mem.Inst.Osw.Cruz, 2002, 97/5: 603-612.

Formada pela Faculdade Fluminense de Medicina, a professora Rachel Lewinsohn fez pós-graduação (dois mestrados, doutorado e pós-doutorado) nas universidades de Londres e Cambridge, Inglaterra. Desde 1982, pesquisou, lecionou e ministrou cursos de História da Medicina na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.É autora do livro “Três Epidemias: Lições do Passado” (Editora da Unicamp).

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