"É uma forma de agradecer às pessoas que foram referências em minha vida", explica Fúlvia Gonçalves. Na lista de agradecimentos estão artistas italianos com os quais ela lecionava em Ribeirão Preto e que presenciaram sua estréia européia com direito a prêmio em Milão; os mestres Pedro Manoel, Joaquim Brasil Fontes e Wesley Duke Lee; amigos da música como Almeida Prado, José Luiz Paes Nunes e Raul do Vale, os primeiros de quando chegou à Unicamp em 1976; e os companheiros no grupo que implantou o curso de artes plásticas no Instituto de Artes, Bernardo Caro, Suely Pinotti e Berenice Henrique Vasco de Toledo.
Esta retrospectiva na Unicamp não pretendia comemorar nenhuma data especial, mas o jornalista Eustáquio Gomes, que assina a apresentação do convite distribuído pela Galeria de Arte, foi quem lembrou que "Monalisa à luz das sombras" completa 20 anos: trata-se da primeira exposição realizada na Universidade, em 1985, e que quatro anos mais tarde comporia uma das primeiras teses de doutorado defendidas no Instituto de Artes. "Fúlvia Gonçalves mexeu no lago plácido da arte dos museus e criou círculos concêntricos em torno de uma idéia recorrente e sempre genial: buscou e encontrou a Monalisa não no seu santuário de séculos, a sala de exposições, mas nos salões bordelizados do mass media, a propaganda, os vidros de conserva, as páginas de jornais e revistas de variedades", escreve o jornalista.
Segundo Fúlvia Gonçalves, a retrospectiva traz um fragmento desta tese de doutorado, quando pretendeu discutir, entre outros aspectos, as conseqüências da banalização da imagem de Gioconda. "Na época, estudávamos a arte na era da reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin. Numa grande sala, distribuí produtos com o nome e a imagem da Gioconda, fotografei seu rosto estampado em dólar e montei inclusive uma bilheteria. Quis mostrar que uma obra de arte, ainda mais da categoria de Monalisa, poderia ser explorada de todas as formas sem que isso implicasse na perda de sua aura", recorda.
Águas puras - Apontando um retângulo azul de dez metros quadrados, Fúlvia Gonçalves antecipou que ali colocaria fragmentos em plotagem de um painel para a Estação de Tratamento de Água (ETA-3) de Campinas, sua obra de estréia na cidade em 1971. "Ao assistir um espetáculo que tinha uma referência a Nijinski e Mikhail Barishinikov como bailarino, não imaginava que aquele corpo de balé voando pelo palco viria a ser o ponto de partida para a produção do painel. Descobri depois que o movimento dos bailarinos significava a própria água passando por seu processo de tratamento. Coloco, então, um círculo amarelo representando o filtro e um círculo azul no final, que seria a purificação", descreve a artista, que intitulou o painel de "O Balé das Águas Do impuro à pureza".
Fúlvia Gonçalves também externou sua arte nos murais que humanizam um hospital-referência, o Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism) da Unicamp, havendo convite para que ela elabore um projeto para os murais dos dois novos prédios da unidade. Por salões do Brasil e do exterior, a artista exibiu "Entranhas da vida vegetal", série em que penetrou no interior das plantas para transformá-las em figuras. "Mas minhas figuras são fortes, meio violentas e passaram a me incomodar. Cansada e já aposentada, passei para outra série, inspirada em Giorgio Morandi, artista pacato que viveu algum tempo da arte metafísica e produziu um trabalho muito pessoal, fruto do isolamento para escapar de influências. Pensei que também queria trabalhar no isolamento e fiz "Relendo Morandi", com todas as obras em aquarela", conta.
A esferografia - O material de trabalho é preocupação central na obra da artista plástica. Já para o painel da ETA, ela desenvolveu fórmula própria a partir de cimento, verniz e outros componentes para chegar a um tipo de afresco seco que, diferentemente do fresco, permite um manusear mais lento. "Gosto de variações e sempre procuro texturas novas, um papel diferente, a colagem, a inserção de um objeto incomum", comenta. Da mesma forma, se a doença proibiu a inalação dos produtos químicos utilizados na gravura em metal, uma de suas atividades preferidas, Fúlvia Gonçalves criou a "esferografia", recorrendo à mera caneta esferográfica para obter resultados semelhantes.
Era a caneta tipo "rottrin" que possui uma reserva de nanquim que Fúlvia levava em suas andanças para registrar a arquitetura de Campinas. O conjunto de 174 desenhos, juntamente com textos do professor e jornalista Benedito Barbosa Pupo, resultaram em "Testemunhos do passado campineiro", livro zelosamente editado por Jaime Pinski na Editora da Unicamp. "De tanto admirar os livros de Carlos Bastos e Caribé com seus desenhos da Bahia, peguei a caneta e saí por aí durante muito tempo, mas também me baseei em álbuns do fotógrafo V-8 [Aristides Pedro da Silva]", afirma a artista, que doou os desenhos para o Centro de Memória da Unicamp (CMU) em 2003.
A fotografia foi base, ainda, para documentar a Universidade em construção. "Em 1980 havia muitas obras no campus e fiz fotos de fragmentos, como amontoados de tijolos, que ampliei e depois reproduzi em papel especial", recorda. A própria capa do catálogo de Fúlvia Gonçalves traz o efeito de uma foto ampliada dos trincados (craquelet) que apareceram no quadro de Monalisa com o decorrer do tempo.
Sem turbulência - Em suas obras mais recentes, como a série "No Arquivo das Formas", a pintora optou por técnicas mistas, retomando o afresco seco, as resinas, o pastel, a aquarela. "Minha vida foi muito entremeada de diferentes atividades: a parte gráfica, a parte pedagógica e a parte artística, congressos, cursos, palestras, uma turbulência. Era correria demais e me aposentei em 1989. No final de 2000, quando quis voltar a trabalhar, retomei a colagem, gravura, xilogravura, fotografia, coisas do passado no presente, o que talvez seja normal com a idade", pondera.
Fúlvia Gonçalves luta há anos com as seqüelas de uma doença visual hoje controlada e informa que por isso instalou em seu ateliê uma luz especial. Mas logo corrige: "Na verdade, é uma luminosidade especial, com a luz direcionada a partir da esquerda. Trabalho na prancheta, sem buscar os detalhes como há alguns anos, e também porque não estou mais em idade de subir em andaimes para pintar painéis ou quadros de dois ou três metros. Trabalho em superfícies pequenas e, se quero algo maior, vou fazendo por partes e emendando. A visão sempre faz falta, mas me conformo e fico feliz com o que sai de dentro de mim. Devo respeitar os limites", admite.