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ARTIGO

Gasto social e distribuição
de renda no Brasil



Marcio Pochmann


1. Apresentação

Por representar uma das maiores desigualdades de renda do mundo, acrescida de uma extrema dívida social acumulada historicamente, o Brasil não pode se furtar ao debate acerca do enfrentamento das mazelas econômicas e sociais. A discussão é fundamental, seja como contribuição ao correto diagnóstico das distorções distributivas, seja como elemento central na avaliação de resultados obtidos pela condução das políticas públicas.

Nesse sentido, a recente divulgação do documento do Ministério da Fazenda (Orçamento Social do Governo Federal: 2001 – 2004) adiciona mais do mesmo diagnóstico equivocado a respeito do papel do gasto social no Brasil, como sendo a principal razão explicativa para a atual desigualdade de renda. Isso já havia sido constatado em 2003, quando o mesmo Ministério da Fazenda difundiu um primeiro documento oficial sobre o Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002.

Naquela oportunidade houve importantes debates entre estudiosos e interessados, mesmo que a equipe gestora do Ministério da Fazenda deixasse de comparecer às discussões1. Agora, novamente com o intuito de oferecer uma visão alternativa à visão do Ministério da Fazenda, apresenta-se um conjunto de elementos empíricos que contradiz a relação desfavorável entre o gasto social e a desigualdade de renda.

Para isso, o presente estudo analisa, inicialmente, o atual contexto macroeconômico e seus perversos efeitos sociais. Posteriormente, o gasto social do governo federal entre 2001 e 2004 é tratado em termos reais e por habitante, como forma de melhor analisar a sua evolução recente no Brasil. As considerações finais sintetizam as novas evidências da relação entre o gasto social e a desigualdade de renda no Brasil.


2. Contexto macroeconômico anti-social

Após a mudança no regime cambial, em 1999, que permitiu avançar as exportações, com melhora considerável no saldo da balança comercial, o Brasil passou a ter que conviver sob o efeito mais constante do superávit primário nas contas públicas. Se, de um lado, o esforço fiscal do setor público assumiu maior centralidade na gestão da política macroeconômica, contribuindo para evitar a ampliação do endividamento público, de outro, passou a constituir um verdadeiro entrave ao atendimento da dívida social no país.

Não somente a restrição orçamentária comprimiu a efetividade das políticas públicas em torno do enfrentamento das mazelas nacionais, sobretudo das desigualdades sociais, como também modificou a natureza do gasto governamental. Não obstante a elevação da carga tributária, verificou-se a contração e a alteração na composição do gasto público.

Com isso, tornou-se possível a geração de significativo e recorrente superávit primário nas contas governamentais, capaz de atender parcialmente o pagamento dos juros, bem como evitar a explosão do endividamento líquido do setor público. Como não poderia deixar de ser, o esforço fiscal terminou resultando em maior constrangimento, não apenas ao combate sistemático da desigualdade social, mas à expansão das atividades econômicas.

O comportamento recente do Produto Interno Bruto (PIB) tem sido ridículo, sobretudo, quando comparado ao período de 1930 a 1980, com taxas de 7% médias anuais. Entre 2001 e 2004, por exemplo, o PIB cresceu, em média, apenas 2,2% ao ano, muito aquém das necessidades internas atuais de geração de trabalho e renda.

Os efeitos sociais que decorreram da ausência do crescimento econômico sustentado foram inquestionavelmente negativos. Não apenas ampliou-se o desemprego, em função da desconexão entre o aumento da população economicamente ativa e a baixa elevação dos postos de trabalho, como o rendimento do trabalho perdeu participação relativa na renda nacional.

Durante o período de 2001 a 2004, a população economicamente ativa (PEA) cresceu 2,7% ao ano, enquanto o ritmo de abertura de novas vagas foi de 2,5% por ano (7,8% abaixo da expansão da PEA). Por conta disso, cerca de 376 mil trabalhadores tornaram-se, a cada ano, em média, novos desempregados no Brasil.

Diante do crescimento per capita do PIB de somente 1,4% ao ano, verificou-se também que, no mesmo período de tempo, o rendimento do trabalho por habitante aumentou, em média, apenas 0,8% ao ano. Em contrapartida, as demais formas de renda, como juros, lucros e aluguéis, cresceram, em média, 1,8% ao ano (2,25 vezes superior à evolução da renda do trabalho e 1,26 vez acima da expansão do PIB per capita).

Em síntese, tem prevalecido um contexto macroeconômico de características anti-sociais, incapaz de permitir avanços consideráveis no enfrentamento da enorme dívida social. Não foi por outro motivo que a desigualdade da renda funcional permaneceu inalterada frente aos enormes diferenciais constatados entre as variações do rendimento do trabalho e das outras formas de renda no país.

3. Regressão no orçamento social real per capita do governo federal

Para agravar ainda mais o enfrentamento da desigualdade social no Brasil, observa-se que no período mais recente (2001-2004), o quadro de restrições fiscais tendeu a se concentrar justamente no orçamento social do governo federal. Dessa forma, não apenas o contexto macroeconômico manifestou-se predominantemente anti-social, como os recursos públicos per capita direcionados à área social apresentaram um movimento de regressão em termos reais.

Entre 2001 e 2004, por exemplo, houve uma involução do orçamento social do governo federal, quando considerado o seu valor em termos reais (deflacionado pelo IGP-DI/FGV) e o comportamento populacional. Para o mesmo período de tempo, o orçamento social do governo federal acumulou uma redução real por habitante de quase 8,5%.

De acordo com a metodologia de composição do orçamento social do governo federal, apresentada pelo Ministério da Fazenda2, quatro dos cinco itens apresentaram queda real per capita no período de 2001 a 2004. As maiores reduções no gasto social ocorreram na habitação e saneamento (-55,6%), sistema “S” (31,1%) e benefícios aos servidores (27,7%).

De toda a composição do orçamento social do governo federal, somente o item empréstimo (10,6%), identificado com o PROGER e PONAF, registrou aumento real. No item gasto social direto, apenas a assistência social (18,7%) teve crescimento real per capita no seu orçamento.

Em resumo, o orçamento social total do governo federal por habitante em 2004 equivaleu a 91,7% do valor real do orçamento social do ano de 2001.

Ao se diferenciar o orçamento social do governo federal por períodos de governo, como os dois últimos anos de FHC (2001/02) e os dois primeiros anos de Lula (2003/04), pode-se analisar melhor o comportamento médio bianual do orçamento social do governo federal. No período de 2003/04, o orçamento social real per capita do governo federal foi 1,3% inferior ao do período imediatamente anterior, equivalendo, em média, a 98,7% dos dois últimos anos do governo FHC.

Dos cinco itens que constituem a composição do orçamento social do governo federal, dois registram queda real per capita. Os itens ajuste patrimonial e renúncia fiscal tiveram redução orçamentária, enquanto os demais itens como gasto social direto, empréstimos e subsídios implícitos apresentaram maior orçamento no governo Lula em relação ao governo FHC.

Ainda em relação ao item gasto social direto, cabe destacar que o seu crescimento real per capita de 2,1% durante os dois primeiros anos do governo Lula deveu-se fundamentalmente à expansão real dos recursos por habitante somente na previdência e assistência social. Os demais componentes do gasto social apresentaram queda real se comparados os valores médios reais per capita nos dois primeiros anos do governo Lula com os dois últimos anos do governo FHC.

Novamente, as maiores reduções se concentraram na habitação e saneamento, no sistema “S” e nos benefícios do servidor. Os componentes do gasto social direto, como a educação e cultura e a organização agrária, foram os que menores reduções tiveram no mesmo período de tempo.

4. Considerações finais sobre a combinação perversa

Conforme foi possível observar anteriormente, o Brasil caracteriza-se pela convivência simultânea do contexto macroeconômico anti-social com a regressão real per capita do orçamento social do governo federal. Diante desta verdadeira combinação perversa, seria uma exceção à regra, caso o país viesse a registrar melhora na qualidade de vida, com redução sensível na desigualdade social.

O que surpreende realmente, neste momento, é que os principais gestores das políticas públicas do governo federal parecem desconhecer a perversidade social que resulta tanto da condução das políticas macroeconômicas como do ajuste nas finanças governamentais, especialmente no que se refere à contenção real per capita do gasto social. Ao invés de considerações ligeiras e superficiais, muitas delas sem consistência real e que apontam para conclusões equivocadas, como a condenação do gasto social no Brasil, a equipe principal do Ministério da Fazenda deveria analisar melhor a sua própria contribuição ao aumento da dívida social, sobretudo no que diz respeito ao aprofundamento da desigualdade de renda.

De um lado, o contexto macroeconômico anti-social foi responsável, entre 2001 e 2004, pela redução relativa da participação do rendimento do trabalho na renda nacional. Estima-se que 19,3 bilhões de reais deixaram de fazer parte da massa de rendimento do trabalho, em virtude da queda no rendimento médio dos ocupados e do maior desemprego.

De outro, a queda real no orçamento social do governo federal durante o mesmo período de tempo, correspondeu a uma perda estimada em 9,9 bilhões de reais. Mesmo com a expansão de 13,1 bilhões de reais relativa aos programas governamentais de transferência de renda (previdência e assistência social), o seu montante terminou sendo insuficiente para compensar o esvaziamento de 29,2 bilhões de reais da renda do trabalho dos ocupados e do orçamento social do governo federal.

Por conta disso, pode-se observar que a desigualdade de renda entre os extremos da escala distributiva permaneceu alta, sem perspectivas de queda. De acordo com os dados da Região Metropolitana de São Paulo (Fundação SEADE e DIEESE), há uma relativa estabilidade na desigualdade entre o rendimento médio dos 10% mais ricos e os 10% mais pobres (aumento de 0,6% no grau de desigualdade de renda). Isso porque, na comparação de novembro de 2003 com novembro de 2004, ocorreu maior queda no rendimento médio dos 10% mais pobres (-6,5%) do que em relação ao rendimento médio dos 10% mais ricos (-5,9%).

Em outras palavras, contata-se que a recuperação econômica do ano de 2004 não foi suficiente para interromper o sentido do aumento da desigualdade nos extremos da distribuição de renda. Pode-se compreender, em virtude disso, que o padrão de recuperação econômica verificada em 2004 parece não ter sido capaz de alterar o grave e injusto perfil distributivo, especialmente quando predomina uma combinação perversa entre o contexto macroeconômico anti-social e a regressão do gasto social real per capita do governo federal.

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Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia (IE) e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT) da Unicamp. pochmann@eco.unicamp.br

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Notas

1- Sobre o debate ocorrido, assim como o documento do Ministério da Fazenda de 2004, ver o número especial da Revista Econômica, volume 5, de Junho de 2003, do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal Fluminense; “Gasto público social no Brasil”.

2 - Não se entra no mérito da discussão sobre o que deve ser considerado como gasto social. A metodologia do Ministério da Fazenda é demasiadamente ampla, incorporando itens duvidosos quanto a sua natureza social.



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