De acordo com o autor, a pesquisa enfoca o período que vai de 1653 a 1769, corte temporal que coincide com a chegada do padre Antônio Vieira ao Estado do Grão-Pará e Maranhão para implantar a Companhia de Jesus e se estende até o final da visitação do Santo Ofício. A ordem religiosa, de abrangência internacional, tinha por objetivo evangelizar os índios da Amazônia Portuguesa. Carvalho Júnior lembra que, à época, Brasil e Grão-Pará e Maranhão eram dois estados distintos, embora respondessem à Cora Portuguesa. Eles só vieram a se juntar após a independência do Brasil. A atuação dos missionários, tanto da Companhia de Jesus quanto de outras ordens, se dava junto a um grande número de etnias, embora houvesse certa hegemonia dos tupinambá. A convivência entre os diversos povos, segundo o pesquisador, normalmente era belicosa.
O processo de evangelização implantado pelas ordens religiosas no Grão-Pará e Maranhão, assim como no Brasil, seguia o mesmo modelo adotado em outros países do mundo, notadamente na África e Oriente. No caso específico da Companhia de Jesus, explica Carvalho Júnior, o trabalho obedecia determinadas diretrizes, mas apresentava uma certa flexibilidade, de modo a considerar as especificidades de cada local. “Havia uma troca de informação fantástica para a época. De cada lugar do mundo, os missionários mandavam cartas semanais, mensais e anuais narrando suas experiências, medida que ajudava a orientar as atividades. Era uma espécie de internet do período colonial”, conta.
O contato dos missionários com os índios, continua o historiador, sempre foi marcado por tensões e, não raro, pela violência. Inicialmente, o processo de evangelização era feito nas próprias aldeias indígenas. Posteriormente, houve o entendimento de que o método não era eficiente, e assim foram construídas aldeias destinadas especificamente para o ensinamento do evangelho. “Eram espaços diferenciados, que estabeleciam uma espécie de mundo europeu dentro daquele universo multifacetado de etnias. Nessas aldeias, havia o controle total do corpo e da mente dos gentios”, diz. Um dos recursos usados pelos jesuítas para transmitir os ensinamentos era a língua nheengatu, de base tupi. Sob a justificativa de salvar as almas dos indígenas, foram perpetrados muitos abusos.
Segundo Carvalho Júnior, nas primeiras visitas às aldeias os religiosos chegaram a seqüestrar filhos dos líderes locais para levá-los às vilas coloniais, onde eram evangelizados e doutrinados. Posteriormente, os missionários os devolviam aos pais, com a expectativa de que realizassem um trabalho de convencimento junto aos integrantes da aldeia. Entre os argumentos utilizados para atrair os índios estava a oferta de terras e de ferramentas para lavoura. Mas a violência não parava por aí. O autor da tese de doutorado observa que, à época, havia a chamada “guerra justa”, cujo objetivo era castigar os gentios que porventura tivessem atacado os colonizadores, missionários ou aliados, entre estes últimos os próprios índios. “Havia também a guerra deflagrada por causa da não-aceitação da palavra de Deus”, afirma.
Carvalho Júnior diz ser impossível quantificar o número de vítimas produzido pelos conflitos, uma vez que não há registros confiáveis a esse respeito. “Fala-se que cerca de 50 mil índios foram mortos ou capturados como escravos, mas esses dados não são resultado de um trabalho estatístico. Mesmo assim, é provável que o número de vítimas entres os índios tenha sido bastante significativo. Já entre os portugueses o volume de baixas foi bem menor, inclusive porque eles constituíam uma população pequena em comparação à dos gentios”, destaca.
Aqui, o historiador faz uma pausa para esclarecer que a violência marcou o processo de evangelização de forma diferenciada. Os colonizadores, prossegue, fizeram alianças com vários povos indígenas, o que de certa forma minimizou a agressão contra eles. Como aliados dos portugueses, os índios desempenharam papel importante em diversos conflitos, especialmente contra os franceses ou mesmo contra outras etnias. “Alguns índios aliados chegaram a receber honrarias por defenderem os interesses da monarquia”, relata Carvalho Júnior.
Inquisição A hipótese de que o processo de evangelização não alcançou os objetivos traçados pelas ordens religiosas começou a ser formulada pelo pesquisador a partir de dados contidos em documentos investigados por ele. Essas fontes registram um certo pessimismo por parte dos missionários quanto à possibilidade de converter os gentios. Os religiosos demonstravam desconforto com a repetição de rituais pagãos entre homens e mulheres que já se consideravam cristãos. “Já havia três gerações de índios cristãos, mas os rituais baseados no universo cosmológico continuavam, conforme relatado nos documentos a que tive acesso”, diz Carvalho Júnior.
O autor da tese de doutorado, entretanto, enfrentou dificuldades para poder se aprofundar no tema. Ele explica que isso decorreu do fato de boa parte dos documentos consultados inicialmente, obtidos no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, ter sido produzida pelos colonizadores, em particular pelos oficiais militares, missionários e cronistas a serviço da Coroa Portuguesa. Ou seja, essas fontes ofereciam apenas pistas, e não elementos específicos acerca da possível apropriação pelos índios da simbologia cristã para a construção de novos padrões religiosos. A saída encontrada por Carvalho Júnior foi buscar informações adicionais nos registros feitos pelo Santo Ofício, mantidos no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, também na capital portuguesa. A Inquisição de Lisboa era responsável pelas possessões ultramarinas, em particular o Brasil.
Na Amazônia Portuguesa, o Tribunal Eclesiástico instalou uma rede de funcionários, denominados de comissários, que atuava no cotidiano da sociedade colonial. Durante o processo de colonização, esses “observadores” acolhiam ou ofereciam denúncias sobre atitudes heréticas por parte da população. Ao analisar detalhadamente cerca de 35 coleções de manuscritos, cada uma com 300 a 500 folhas, Carvalho Júnior encontrou elementos que ajudaram a confirmar a sua hipótese. Os relatos contidos nessas fontes dão conta que, mesmo depois de evangelizados, os índios continuaram a praticar rituais gentílicos. Um deles era interpretado pelos comissários como o ritual de “descer demônios”. Nessas ocasiões, os indígenas usavam, por exemplo, maracá e figuras de animais que desciam do teto.
Para o historiador, uma leitura atenta desses relatos revela a diferença entre a projeção feita pelos inquisidores e a articulação que as populações indígenas faziam entre as simbologias cristã e cosmológica. “As atividades eram descritas como demoníacas, mas quando olhadas com mais cuidado, elas lembram rituais indígenas anteriores”, sustenta. Carvalho Júnior também localizou acusações contra a índia Sabina, personagem histórico relativamente conhecido. Segundo as descrições dos comissários, a despeito de fazer orações cristãs e freqüentar a igreja, ela reproduzia rituais indígenas, como sugar a doença pela boca, defumar a moradia ou administrar plantas medicinais. “Sabina não chegou a ser presa, pois gozava de certo prestígio junto às autoridades portuguesas, algumas delas suas clientes. Elas justificavam a condescendência dizendo que a índia não fazia feitiço, mas sim o retirava”, esclarece o especialista.
A preservação dos costumes originais, no entender do historiador, foi a principal responsável pelo insucesso parcial do projeto evangelizador das ordens religiosas. “Os missionários não contavam que os índios fariam uso do idioma nheengatu¸ sistematizado para facilitar os ensinamentos, como instrumento para reinterpretar a simbologia cristã a seu modo. Na verdade, esses índios não resistiam propriamente ao processo de evangelização. Eles apenas buscavam nos rituais cosmológicos referências para poder traduzir o que estavam aprendendo. Eles se sentiam efetivamente cristãos, mas esse cristianismo tinha que fazer sentido. E para conferir sentido ao cristianismo, eles o articulavam com a simbologia anterior”, argumenta Carvalho Júnior.
A fim de exemplificar as dificuldades encontradas pelos missionários para cumprir sua empreitada, o historiador toma emprestada uma metáfora cunhada pelo padre Antônio Vieira, trabalhada inclusive por outros estudiosos, como faz questão de frisar, para explicar a diferença entre a evangelização dos gentios brasileiros e os do Oriente. Conforme Vieira, trabalhar com os orientais era o mesmo que dar forma a um pedaço de mármore. Tratava-se de uma tarefa árdua e dolorosa. Entretanto, ao final do esforço, o resultado ficava para a eternidade. Já no caso dos “brasis”, conforme termo da época, o trabalho de evangelização se assemelhava à manipulação da murta, um arbusto. Ou seja, era fácil imprimir uma forma ao material, mas a partir de um determinado momento novos ramos começavam a surgir, desfazendo a imagem inicial. Em outras palavras, a inconstância dos índios impunha aos religiosos a obrigação de promover uma constante reevangelização. A tese de Carvalho Júnior foi orientada pelo professor John Manuel Monteiro e contou com financiamento do CNPq e da Capes.