Pesquisando por música
MANUEL ALVES FILHO
Em 1989, a Unicamp tornou-se a primeira universidade brasileira a oferecer um curso de graduação na modalidade Música Popular. A iniciativa, aprovada pelo Conselho Universitário, refletia uma tendência verificada anos antes, em várias partes do mundo, de valorização do tema, notadamente como objeto de pesquisas acadêmicas. Atualmente, os estudos de pós-graduação nessa área ganham cada vez mais importância no país. No caso particular da Unicamp, pesquisas sobre esse tema são realizadas em várias unidades, especialmente no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Faculdade de Educação e no Instituto de Artes. Especialmente no IA, o assunto é tratado sob uma perspectiva multidisciplinar, o que tem possibilitado a produção de trabalhos de extrema relevância. "Reconhecidamente complexa e com presença marcante na vida cotidiana, a música popular exige, para ser compreendida, não apenas um olhar abrangente, mas um método adequado de investigação", afirma o diretor do Instituto de Artes (IA), o sociólogo José Roberto Zan.
Um exemplo do vigor dos estudos desenvolvidos pela Unicamp em torno da música popular vem do número de pesquisas que figuram com destaque nos anais dos congressos promovidos pela Associação Internacional para o Estudo da Música Popular (IASPM, na sigla em inglês), entidade fundada por pesquisadores acadêmicos em 1981 e que conta hoje com cerca de 700 filiados. No último encontro da IASPM, organizado em 2004 pela seção latino-americana, os alunos de pós-graduação do IA participaram com oito trabalhos. "No próximo evento, marcado para agosto, em Buenos Aires, vamos enviar outras seis contribuições", adianta Zan.
O conjunto de trabalhos, conforme o diretor do IA, contempla várias vertentes. Um exemplo é estudo sociológico feito por Daniel Muller sobre o selo Som da Gente, gravadora independente fundada pelos compositores Walter Santos e Tereza Souza. Entre 1981 e 1992, a Som da Gente produziu um catálogo composto por 51 discos, sendo 46 deles exclusivamente instrumentais e os demais predominantemente instrumentais. Tais álbuns registraram a obra de artistas importantes para a música brasileira, como Hermeto Pascoal, Hélio Delmiro, Nelson Ayres, Roberto Sion, Grupo D'alma, Grupo Cama de Gato, Grupo Medusa, entre outros. Por meio do levantamento e análise da experiência levada a cabo pelo selo, prossegue Zan, foi possível entender melhor o momento vivido pela música instrumental na década de 80. "Foi uma iniciativa heróica. A gravadora foi gerida de forma idealista, num modelo de produção que conferia ao músico total liberdade artística. Infelizmente, a empresa não conseguiu se sustentar financeiramente".
Também merece menção a pesquisa acerca do hibridismo na música sertaneja, desenvolvida pelo próprio Zan. Segundo ele, a temática permite uma reflexão sobre a cultura brasileira de modo geral. Parece que o nacional-popular, que exerceu forte influência na música popular dos anos sessenta, vem se convertendo atualmente num novo regionalismo, que bebe, por exemplo, na fonte das matrizes caipiras. Músicos-pesquisadores constituem o que se convencionou chamar de nova geração de violeiros, protagonistas de uma volta ao popular. O termo popular, nesse caso, talvez já não tenha o mesmo sentido daquele empregado pelo escritor Mário de Andrade, preocupado com a construção da identidade cultural brasileira. "Esses músicos não recriam a cultura popular como ela é. Eles fazem uma apropriação culta da música caipira para construir um estilo próprio", explica. Uma questão a ser resolvida nesse caso, afirma o sociólogo, é se esse movimento representa de fato um novo regionalismo ou é uma volta ao nacional popular.
Para tentar responder a perguntas desse tipo é que a pesquisa em torno na música popular vale-se da multidisciplinaridade. A orientação para esse tipo de abordagem vem do IASPM, mas começou a tomar corpo muito antes, a partir dos anos 30 do século passado. Segundo o diretor do IA, a musicologia já estava consolidada como disciplina acadêmica no final do século XIX tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, mas se voltava apenas para a música erudita. Somente algumas décadas depois, pesquisadores norte-americanos iniciaram estudos sobre a música popular, analisada como um produto industrial. Em 1941, o filósofo alemão Theodor Adorno, então radicado nos Estados Unidos, publicou um ensaio que se tornou referência na área, intitulado "Sobre Música Popular". No texto, ele tratava o tema como um produto da indústria cultural que cumpria o papel de reproduzir a ordem social alienante no contexto do capitalismo monopolista.
Em 1965, o sociólogo e pensador francês Edgard Morin escreveu um artigo, publicado também no Brasil, com o título de "Não se Conhece a Canção", no qual chamava a atenção do meio acadêmico para a importância de se produzir pesquisas em torno da música popular. Morin destacou que a música popular é uma manifestação artística e cultural com forte presença na vida cotidiana. Além disso, ele lembrou que a canção é uma linguagem complexa, de caráter multidimensional. Entre outros, destacou, existe o aspecto musical composto pela melodia, ritmo, harmonia, arranjos e orquestrações; e o poético-verbal, constituído pelas letras. A articulação entre essas dimensões, defendeu o autor, não é simples e tem desdobramentos que ampliam o alcance da canção como a dança, a encenação, a performance, o cinema, o rádio, a TV, o vídeo e outras mídias. Portanto, pontificou o sociólogo, somente uma abordagem multidisciplinar poderia dar conta de estudar todas essas facetas. Mas foi a partir da década de 70 que a música popular mereceu o status sugerido pelo pensador francês. Neste período, multiplicaram-se os trabalhos a partir dessa visão. De acordo com o diretor do IA, foram desenvolvidas pesquisas associando a música popular às questões ideológicas, sócio-culturais, identitárias, entre outras, exigindo abordagens apoiadas em disciplinas diversas como musicologia, sociologia, antropologia, história, lingüística, semiótica, etc. De lá para cá, o número de trabalhos só faz crescer tanto em quantidade quanto em qualidade no mundo todo. Atualmente, pesquisadores ligados à IASPM defendem uma musicologia popular apoiada em bases metodológicas adequadas às especificidades desse objeto.
Tal tendência também é verificada no Brasil. Para ficar num exemplo sustentado por números, basta recorrer ao volume de dissertações de mestrado e teses de doutorado produzido nas universidades estaduais paulistas e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Levantamento feito para um estudo de mestrado na Unesp o diretor do IA integrou a banca de qualificação - contabilizou 227 trabalhos desenvolvidos nessas instituições tendo como tema a música popular. "Como a pesquisa ainda está em curso, a estimativa é que até o seu encerramento esse número suba para 300", revela Zan. Os estudos brasileiros, explica, colocam a música popular nos mais diversos contextos, entre eles: migração, identidade cultural, movimentos sociais, violência, indústria cultural e mercado.
No ambiente acadêmico, diz o sociólogo, os pesquisadores demonstram uma série de preocupações no momento de trabalhar com o tema. Um exemplo é o esforço para entender a relação entre a música popular e o mercado de discos. Há também quem se ocupe de analisar como a linguagem é trabalhada e de que forma ela expressa o contexto social em que é produzida e/ou veiculada. A" obra de arte deve ser identificada como uma espécie de mediação social. Vários pesquisadores estão empenhados em verificar como as diferentes formas artísticas podem traduzir a rede de conflitos presentes na sociedade. Como diz Adorno, é preciso reconhecer "como a sociedade se objetiva nas obras de arte". Isso exige um contínuo aprimoramento dos métodos de investigação", diz.
Embora o interesse em torno da música popular esteja em ascensão na academia, o tema está muito longe de ser esgotado, como faz questão de advertir Zan. Conforme o professor da Unicamp, existem assuntos quase inexplorados, como o caso do Clube da Esquina, movimento musical nascido em Minas Gerais nos anos 70. Na opinião do especialista, a temática ainda não foi tratada de maneira profunda. "Trata-se de um movimento que produziu uma obra extensa e exerceu influência nas gerações seguintes, mas que até agora não foi devidamente estudado", justifica. Parte do desafio de investigar a importância do Clube da Esquina foi assumida por duas pesquisadoras que realizaram suas dissertações de mestrado no IA, nos programas de Pós-Graduação em Multimeios e Música.
Zan lembra que o Clube da Esquina nasceu e ganhou força num período dramático e ao mesmo tempo importante do ponto de vista político, cultural e industrial. "O movimento desenvolveu-se na época do milagre econômico e no momento em que a ditadura apresentava-se especialmente truculenta. Paralelamente, a indústria nacional, mais especificamente o setor fonográfico, saía de um modelo de produção marcado ainda por uma certa artesanalidade para um processo de produção com forte integração sistêmica. Grandes investimentos no setor levaram ao incremento não apenas da infra-estrutura de produção, especialmente no que se refere aos suportes técnicos, mas a uma maior profissionalização dos setores de divulgação e marketing das gravadoras. Penso que estudos aprofundados podem nos revelar de que maneira o trabalho de Milton Nascimento, Beto Guedes, Lô Borges, Flávio Venturini e Wagner Tiso, entre outros, traduz aquele instante da nossa história".
Outros pontos interessantes e passíveis de abordagem em relação ao Clube da Esquina, acrescenta o diretor do IA, dizem respeito às letras herméticas, usadas muitas vezes como um recurso para burlar a censura, e à apropriação que movimento fez de elementos da linguagem pop, a despeito de manter um forte compromisso com o regionalismo. Este último aspecto pode ser percebido, por exemplo, nos versos da música "Para Lennon e MacCartney", de Lô Borges, Fernando Brant e Márcio Borges, que dizem o seguinte: Eu sou da América do Sul/ Eu sei vocês não vão saber/ Mas agora sou cowboy/ Sou do ouro, eu sou vocês/ Sou do mundo, sou Minas Gerais. "Será que eles não estariam anunciando um novo regionalismo articulado a linguagens universais?", instiga o sociólogo.