A análise dos alimentos produzidos na América Latina e da disponibilidade desses produtos para a população consumiu cinco anos de pesquisas da engenheira de alimentos Maria de Fátima Archanjo Sampaio, com andanças por todos os institutos, centros e núcleos de pesquisa da Unicamp envolvidos com a questão alimentar e da fome, o que assegurou um caráter multidisciplinar ao trabalho. A pesquisadora apresentou os resultados na Faculdade de Engenharia Agrícola em 13 de maio, quando defendeu tese de doutorado orientada pelo professor João Luiz Cardoso.
“A partir de um conjunto de 16 produtos, procurei analisar o que cada país oferecia em termos de calorias e de produção”, justifica. Os produtos selecionados são açúcar, arroz, batata, carne bovina, carne de frango, carne suína, feijão, frutas, hortícolas, leite, mandioca, milho, óleos vegetais, ovos, pescados e trigo. Segundo Fátima Sampaio, os dados indicam a quantidade potencial média de alimentos disponível para consumo humano em cada país, considerando produção, importação, exportação, processamento de produtos alimentares e perdas, além da quantidade utilizada como sementes e ração animal.
A pesquisa abrange 23 países latino-americanos e estabelece parâmetros com a África em seu conjunto, China, Estados Unidos, Japão, Índia e países que compõem a União Européia. “A América Latina deve ser focada como parte de um sistema maior, único e interativo, seria impossível tratar de seus problemas separadamente. Notamos dois grupos, um deles com países que são exemplos de economias avançadas e, o outro, com países menos engajados dos circuitos comerciais. Mas é preciso advertir que países que apresentam níveis de disponibilidade alimentar superiores nem sempre atingem aos objetivos da Cúpula Mundial da Alimentação, caso este progresso seja conquistado com base na disparidade entre grupos sociais, étnicos ou regionais, uns progredindo e outros ficando para trás”, observa.
Fátima Sampaio também associa os resultados de sua pesquisa, referentes ao triênio 1999-2001, ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU. Mostra, por exemplo, que Argentina, Uruguai, Chile e Costa Rica apresentavam então um IDH próximo de países do primeiro mundo, e sugere que o Brasil atente para o que coloca na mesa da população. “Certamente a situação na Argentina mudou depois da crise no final de 2001, mas aquele país, juntamente com o Uruguai, disponibilizava para cada habitante o dobro de proteína animal e de trigo do que a média dos países latino-americanos. Chile e Costa Rica também chamam atenção pela oferta de pescados e frutas. Esses produtos devem ser avaliados com outros olhos na elaboração de políticas de desenvolvimento”, afirma a engenheira de alimentos.
Calorias As disparidades em termos de oferta de calorias levou à divisão dos 23 países em seis grupos diferentes. O Brasil compõe o grupo 1, juntamente com Cuba, Costa Rica, República Dominicana e Equador, todos com valores superiores aos demais para a disponibilidade de arroz, feijão, óleos vegetais, frutas e açúcar. O arroz, por exemplo, apresenta uma disponibilidade média de 466 calorias/dia por habitante, quase o dobro da média na América Latina. “Os produtos de origem animal possuem valores bastante próximos da média, mas os pescados deveriam ter peso bem maior devido à localização geográfica desses países, principalmente o Brasil com uma costa tão extensa”, compara Fátima Sampaio.
São os pescados que fazem a diferença no grupo 2, onde Chile, Jamaica, Trinidad & Tobago e Venezuela mostram o dobro da média latino-americana. Também mostram homogeneidade na disponibilidade de trigo, hortícolas e carne de frango de um lado, e de óleos vegetais e açúcar do outro. Argentina e Uruguai, no grupo 3, registraram uma oferta quatro vezes maior de carne bovina e o dobro em relação a outros produtos provenientes da pecuária, como ovos e leite; a oferta de trigo também é duas vezes maior.
Os grupos 4 (Bolívia, Colômbia, Haiti, Panamá e Peru) e 5 (El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e México) apresentam os valores médios disponíveis mais baixos, principalmente em calorias de origem animal; a mandioca ganha relativo destaque no grupo 4 e o milho revela-se como base da alimentação no grupo 5, oferecendo 791 calorias/dia nesses países. Isolado no grupo 6, o Paraguai traz significativa disponibilidade de milho e mandioca, pouca fruta, mas o diferencial está mesmo na carne suína e ovos.
“Pode-se dizer que os produtos da pecuária (carnes, leite e ovos) são a diferença marcante entre os grupos, não somente em termos quantitativos como qualitativos. Com exceção das proteínas de origem animal, as demais de origem vegetal ou de fontes não convencionais apresentam deficiências em um ou mais aminoácidos essenciais, trazendo ainda o risco de problemas nutricionais por estarem acompanhadas de substâncias tóxicas ou de inibidores de enzimas proteolíticas”, explica Fátima Sampaio.
Produção Outro aspecto analisado é se os países produzem os 16 alimentos pesquisados, comparando-se os padrões de produção com os padrões de disponibilidade calórica. Brasil e México, reunidos agora no grupo 2, apresentaram os maiores valores de produção por habitante para feijão, carne de frango e ovos, além de valores significativos de milho. “Apesar de produzirem vários outros produtos com valores próximos aos da América Latina, eles ainda dependem da importação de alimentos básicos para amplas camadas da população, como de arroz e trigo em ambos os países e de milho no caso do México. No Brasil, o milho não é tão disponível, provavelmente por seu uso como ração animal, fazendo parte da cadeia indireta”, explica Fátima Sampaio.
Bolívia, Colômbia, Guatemala, Jamaica, Panamá, República Dominicana e Venezuela, países do grupo 1, não mostraram elevado destaque para a produção de nenhum dos produtos, embora estejam próximos à media para a batata, hortícolas, carne de frango, arroz, açúcar, frutas e ovos. O grupo 3, com El Salvador, Haiti, Honduras, Nicarágua e Trinidad & Tobago, apresenta menores valores para 9 dos 16 produtos analisados, principalmente em relação aos de origem animal.
Os maiores valores na produção de frutas estão nos grupos 4 (Costa Rica, Cuba e Equador) e 5 (Chile e Peru); no grupo 4, a produção de frutas é o dobro da média na América Latina. O grupo 5 ainda se destaca pelos pescados, com oito vezes a média. O Paraguai manteve-se isolado no grupo 6, com produção expressiva de mandioca e carne suína, mas com os menores valores para a batata e carne de frango. O grupos 7 (Uruguai) e 8 (Argentina), apresentaram as maiores quantidades de produção por habitante de produtos de origem animal e de cereais. O Uruguai trouxe os melhores indicadores por habitante de leite, carne bovina e arroz, enquanto a Argentina apresentou os melhores valores de trigo, milho e óleos vegetais, além de se destacar em leite e carne bovina.