Tese vira livro definitivo sobre a Guerra do Contestado,
um dos episódios mais sangrentos (e ignorados) do Brasil
CONTESTADO
A história bem-contada
LUIZ SUGIMOTO
Maria Rosa, uma "virgem" bonita de 15 ou 16 anos, que se vestia de branco e montava um cavalo branco, era a líder espiritual de um reduto sertanejo no planalto catarinense chamado Caraguatá, palco de um dos combates mais ferozes da Guerra do Contestado. O saldo foi de 24 mortos, 21 feridos e 3 desaparecidos nas tropas oficiais, e 37 mortos entre os defensores do reduto. Deve ter sido dela a idéia de usar táticas inspiradas em traquinagens adolescentes, que se mostraram decisivas para a expulsão do inimigo e por isso ecoaram pelo planalto como proezas de batalha. "Durante a refrega, os sertanejos empregaram todos os seus ardis de lutadores do mato. Uma coluna de sertanejos vestidos com roupas de mulheres distraía os soldados, enquanto vários franco-atiradores, escondidos em ocos de imbuias e em galhos elevados de araucária, dizimavam a coluna militar. (...) Soldados eram atraídos, por determinados caminhos, para o interior da mata e emboscados em locais sem saída, cheios de espinheiros de inhapindaí", escreve Paulo Pinheiro Machado, no livro Lideranças do Contestado, lançado pela Editora da Unicamp (2004).
O livro é uma versão modificada da tese de doutorado defendida por Paulo Machado em 2001, junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. A Guerra do Contestado, que durou de 1912 a 1916, foi assunto proibido entre os catarinenses até há quatro décadas e permanece ignorado na historiografia brasileira porque não teria passado de um movimento de fanáticos religiosos, bandoleiros e desordeiros. O professor Cláudio Henrique de Moraes Batalha, que orientou a tese de doutorado, lembra na orelha do livro que "já houve quem dissesse que faltou ao Contestado seu Euclides da Cunha, que pudesse torná-lo tão conhecido quanto Canudos".
Paulo Machado, evidentemente, não demonstra qualquer pretensão euclidiana, apesar de seu talento literário. Mas o estudo, riquíssimo em documentação e em depoimentos orais, já é considerado definitivo por alguns historiadores, tendo provocado a reinterpretação de vários aspectos do conflito publicados anteriormente. Ele próprio, no entanto, defende os outros autores, afirmando que teve a sorte de localizar 22 sobreviventes ou descendentes de sobreviventes da guerra (de ambos os lados), durante as doze viagens que fez à região entre 1998 e 2000. Outra sorte foi que, por conta do centenário de Canudos, o Arquivo Histórico do Exército (Ahex) liberou farta documentação, inacessível até 1996, em meio à qual ele encontrou 32 caixas referentes à campanha das tropas no Contestado.
O grande palco - "O Contestado é uma extensa região de planalto na divisa entre Santa Catarina e Paraná, que ganhou esse nome porque tinha sua jurisdição disputada pelos dois Estados", explica Paulo Machado, hoje professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Segundo o historiador, em que pesem as características messiânicas do movimento que amealhou crentes de toda a região e de fora dela, a guerra foi gerada por problemas de diferentes origens. "Os conflitos ocorreram paralelamente a uma política de terras do governo catarinense que facilitava a fraude e a legitimação, por um número pequeno de fazendeiros, das posses de populações caboclas. Acontecia o mesmo no resto do país, mas no planalto de Santa Catarina, uma região de fronteira agrícola, a disputa pela terra era particularmente violenta", afirma.
Os conflitos se intensificaram com a inauguração em 1910 da Ferrovia São PauloRio Grande. "Na concessão para construção da estrada de ferro, o governo doou à Brazil Railway faixas de terras até 15 quilômetros de cada lado da linha. Consideradas oficialmente como terras devolutas, na verdade eram ocupadas por posseiros havia muitas gerações. Como o título de propriedade, na prática, não impediria que um coronel os expulsasse a qualquer momento, a população cabocla defendia a posse no braço", conta o pesquisador. É num solo semeado por tragédias, portanto, que crescerá o movimento trazendo de volta uma esperança.
São João Maria - Paulo Machado ocupa a primeira parte do livro para uma descrição minuciosa e consistente do processo de ocupação do planalto catarinense, desde os bugres, tropeiros e birivas no caminho das tropas, até inserir no cenário a figura do monge João Maria, ou são João Maria, como foi santificado pela população. "Pelo menos dois indivíduos assumiram o papel de João Maria na região. O primeiro a perambular por lá foi um italiano, João Maria de Agostinho, por volta de 1849. Dizendo-se um penitente, andava de Santa Maria (RS) a Sorocaba (SP) com seu cajado, roupas de riscado simples e um boné de pele de jaguatirica", conta o professor.
João Maria de Agostinho dedicava-se a convencer as populações sertanejas de que deveriam erguer cruzes em certos locais (normalmente 14, o número de estações da Via Sacra de Cristo), usar fontes especiais de águas curativas, não comer carne aos sábados e guardar uma vida de respeito e penitência. Identificado pela falta de dois dedos na mão direita, nunca mais foi visto depois de 1870. "Apesar dos relatos de outros João Maria e em épocas distintas, para os crentes do planalto só existiu um. Relatam-se aparições suas em 1938, 1954 e 1961, e a população acha que ele ainda vive, "encantado" no morro do Taió, com mais de 200 anos de idade", diz o historiador.
Início da saga - Em 1912, na cidade de Curitibanos, surgiu o curandeiro José Maria, logo associado ao monge João Maria. Convidado para a Festa do Bom Jesus na comunidade de Taquaruçu, em 6 de agosto daquele ano, José Maria atraiu um grande número de doentes e a aglomeração, ao invés de se dispersar ao final da festa, foi aumentando. "O prefeito de Curitibanos desconfiou que José Maria estivesse a serviço do maior adversário político local e chamou a polícia de Florianópolis para dispersar os sertanejos, acusando-os de fanáticos e monarquistas", recorda Machado. Expulso, o curandeiro foi seguido por um grupo de sertanejos até Irani, no centro do Contestado, região então administrada pelo Paraná.
A imprensa de Curitiba protestou imediatamente, acusando os catarinenses de enxotar o grupo até território paranaense para provocar confusão e justificar uma intervenção federal. “A vinda de uma força do Exército serviria de pretexto para execução da sentença de limites, visto que Santa Catarina já havia obtido três vitórias no Tribunal Federal”, observa o pesquisador. Decidida uma ação relâmpago, a força estadual, além de armas e munições, levava cordas para amarrar os sobreviventes e exibi-los como troféus em Curitiba. A tropa foi dizimada. “Os paranaenses carregavam uma metralhadora com tripé, a Maxim, que deveria fazer um grande estrago na época, mas ela caiu num riacho e engasgou na hora do combate. No corpo-a-corpo, os sertanejos eram em muito maior número”, relata Paulo Machado. Os “fanáticos” venceram, mas José Maria morreu no combate.
Comunismo - De acordo com relatórios militares sobre a batalha, a morte de José Maria significava o fim do movimento, pois os sertanejos perderam sua principal liderança mística. Assim tinha sido com Antonio Conselheiro na Bahia e com a sacerdotisa Jacobina na revolta gaúcha dos Muckers. "Mas, no Contestado, a guerra começa justamente por causa da morte desta liderança. José Maria é santificado, sob a profecia de que voltaria no ano seguinte à frente de um exército "encantado", afirma Machado.
Se, no primeiro combate em Irani, os sertanejos nem rebeldes eram, e não entendiam o porquê da agressão, no ano seguinte passaram a disseminar um projeto de sociedade por toda a área de devotos do primeiro monge João Maria. O projeto era de uma vida em comunidade, no "quadro santo" ou "cidade santa", onde as pessoas detinham a posse comum sobre terras, rebanhos e lavouras. Na praça central das cidadelas, marcada por quatro cruzes, a população se reunia para rezar e receber as tarefas distribuídas pelos comandantes. "Há relatos sobre um reduto com 5.500 casas, 27 igrejas e mais de 20 mil habitantes, sendo10 mil os homens de briga", lembra Paulo Machado.
O grande cerco - Para o Contestado foram deslocados oito mil soldados do Exército (mais da metade do efetivo) e contingente semelhante com forças paranaense, catarinense e vaqueanos (capangas contratados). O Exército, contudo, evitou os confrontos diretos, preferindo promover cercos através de colunas chegando pelos quatro cantos dos redutos. "O objetivo era reprimir todo o comércio dos sertanejos, que geralmente trocavam erva-mate e couro por armas, munições e mantimentos. A fome levou a rendições em massa de sertanejos no início e no final de 1915, e no começo de 1916", relata o professor.
A perseguição dos rebeldes que restaram foi feita por capangas dos coronéis, financiados pelo Estado. "Os vaqueanos literalmente caçavam caboclos no mato, sendo pagos pelo número de orelhas que apresentavam. É uma época da guerra chamada de "açougue", diz Paulo Machado. As estatísticas, muito imprecisas, variam de 3 mil a 30 mil mortos. "Em combate, não chegariam a mil. Mas a fome matou famílias inteiras nos redutos, seguramente mais de 10 mil pessoas", estima o historiador.