Pesquisadores sintetizam substância que age contra células cancerígenas
Droga testada no Instituto de Química mostra-se mais eficaz do a que similar natural
CARMO GALLO NETTO
Pesquisadores do Departamento de Química Orgânica do Instituto de Química (IQ) da Unicamp sintetizaram uma substância que combate células cancerígenas de forma mais eficiente que a congênere natural, visando eventual aplicação em quimioterapia. A informação certamente causará estranheza por que é corrente que o natural é bom e o que “tem química” não serve.
Com financiamento da Fapesp, orientação do professor Ronaldo Aloise Pilli, do IQ, e colaboração de Luciana Konecny Kohn e de João Ernesto de Carvalho, coordenador da Divisão de Farmacologia e Toxicologia do Centro Pluridisciplinar de Pesquisa Química, Biológica e Agrícola (CPQBA) da Unicamp, as pesquisas realizadas por Ângelo de Fátima deram origem à sua tese de doutorado, recentemente defendida, e levaram à solicitação de patente do processo de síntese.
Ainda durante o mestrado, em que se dedicou a sínteses de produtos naturais, um grupo de substâncias despertou o interesse de Ângelo por causa das propriedades biológicas descritas na literatura: as estiril lactonas, em especial um membro desta classe, a goniotalamina, isolada de várias espécies de Goniothalamus, porém em pequenas quantidades. Um estudo farmacológico de maior fôlego exige quantidades maiores e a síntese em laboratório seria uma alternativa de suprimento. O pesquisador conseguiu desenvolver uma rota de síntese muito curta, de poucas etapas, excelente rendimento e, mais importante, capaz de fornecer tanto o produto natural como seu enantiômero para avaliação farmacológica.
Chamam-se enantiômeros os compostos que guardam entre si a relação de um ser a imagem especular não superponível do outro, a exemplo do que acontecem com as mãos. Os enantiômeros apresentam em geral propriedades diferenciadas em relação, por exemplo, a sistemas biológicos. No caso da goniotalamina, como para a maioria dos produtos naturais, apenas um dos enantiômeros, designado (R)-goniotalamina, é produzido pelas espécies Goniothalamus. A rota sintética desenvolvida permite preparar ambas as formas da goniotalamina, variando apenas uma das etapas, o que leva a um processo de síntese catalítica assimétrica que, segundo os pesquisadores, constitui um objetivo nobre em trabalhos de sínteses orgânicas.
Estava aberto o caminho para estudar as propriedades biológicas dos enantiômeros e comparar-lhes as potencialidades. Foi aí que os pesquisadores descobriram que a ação do produto não-natural era mais efetiva. Esse fato, não tão raro, entusiasma o professor Pilli “A natureza dá pistas, o produto natural é o referencial de partida, fonte de inspiração, mas, muitas vezes, produtos não encontrados na natureza podem ser até mais eficientes. Esse é um testemunho a favor da síntese orgânica, porque predomina a falsa idéia de que tudo que não é natural é nocivo. E isso é falso. Há exemplos de produtos naturais extremamente tóxicos. Neste caso, um produto não encontrado na natureza tem se mostrado mais efetivo do que o congênere natural no combate às células do câncer renal”.
Saída e chegada O grande interesse despertado pela (R)-goniotalamina estava relacionado ao seu potencial citotóxico que a qualifica como protótipo para o desenvolvimento de compostos com potencial atividade contra o câncer. Os pesquisadores esclarecem que em função da considerável atividade antiproliferativa apresentada pela (R)-goniotalamina e a total ausência de informações sobre as atividades do seu enantiômero (S)-goniotalamina, propuseram-se a desenvolver uma rota de síntese eficiente. Foram avaliadas suas atividades antiproliferativas sobre as células tumorais humanas.
O sucesso das sínteses dos enantiômeros e de substâncias derivadas a partir da mesma estrutura básica permitiu caracterizar os grupos e estruturas responsáveis pelas atividades biológicas e propor possíveis mecanismos de ação. Testados em nove linhagens de células tumorais humanas, os compostos sintetizados da série S mostraram-se de alta atividade para a linhagem renal quando comparados com os da série R, além de se mostrarem altamente seletivos a baixas concentrações. João Ernesto de Carvalho acrescenta: “A goniotalamina natural e a não-natural foram colocadas em contato com nove linhagens de células tumorais humanas. Depois de dois dias de incubação, verificamos os resultados. A metodologia que utilizamos é a mesma do Instituto Nacional do Câncer dos EUA. As linhagens usadas abrangem vários tipos de tumores entre os mais recorrentes (pulmão, rim, mama, estômago, próstata, colo, ovário, leucemia). O produto não-natural mostrou-se mais potente, atuou em baixas concentrações e seletivamente, o que constitui um fator de suma importância, pois em geral a droga que mata as células de todas as linhagens provavelmente vai matar as células normais também”.
Constatada a potência e a seletividade da droga, principalmente de sua forma não-natural, tomou-se a decisão de obter vários análogos, como explica Ângelo: “Para quem está acostumado com a diversidade estrutural dos produtos naturais, a estrutura da goniotalamina é muito simples. Fizemos então várias modificações na molécula, mantendo-se a estrutura básica, o que nos levou a oito análogos ou derivados, com o objetivo de verificar a possibilidade de obter atividade e seletividade ainda maiores e também mapear os grupos farmacológicos, que são as regiões da molécula essenciais na atividade. Outro objetivo do projeto foi o de esclarecer um possível mecanismo de ação. Mas esse estudo ainda está em andamento”, finalizou.